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Duas ou três questões sobre a sentença no CPC/15

No Código de 2015, adotou-se um conceito que retoma o critério classificatório original do Código anterior, aperfeiçoando-o, e ainda agrega o critério de conteúdo que havia sido introduzido pela lei 11.232/05.

14/3/2016

1. O conceito de sentença e suas implicações no âmbito do cabimento recursal

Nos termos do art. 203, § 1º, “sentença é o pronunciamento por meio do qual o juiz, com fundamento nos arts. 485 e 487, põe fim à fase cognitiva do procedimento comum, bem como extingue a execução”. O mesmo dispositivo ressalva a possibilidade de que regras expressas qualifiquem também outros atos como sentença no âmbito dos procedimentos especiais.

É mais fácil compreender-se o sentido – e a boa qualidade – dessa disposição legal à luz das variações havidas no conceito legal de sentença nos últimos anos.

Na redação original do Código anterior, sentença era definida como “o ato pelo qual o juiz põe termo ao processo, decidindo ou não o mérito da causa” (CPC/73, art. 162, § 1º). Os demais atos decisórios de primeiro grau seriam decisões interlocutórias (CPC/73, art. 162, § 2º).

Esse conceito de sentença, se comparado com o modelo vigente no CPC/1939, simplificava a identificação das sentenças, e, consequentemente, diminuía as incertezas quanto ao recurso a utilizar. Mas esse dispositivo era alvo de críticas. Por exemplo, ponderava-se não ser a sentença que encerra necessariamente o processo, pois, se houvesse recurso contra ela, o processo continuaria. Além disso, sempre houve casos em que a sentença é executada no próprio processo em que foi proferida (é o que se passa com as sentenças mandamentais e executivas). Então, se a sentença é executada naquele mesmo processo, isso significa que ela não teria posto fim ao processo. De todo modo, e especialmente para o fim de definição do recurso adequado, o efeito mencionado pelo § 1.º do art. 162 sempre serviu de norte para a identificação da sentença.

Assim, na vigência do conceito original de sentença adotado pelo CPC/73:

(i) se o juiz, no saneamento do processo, excluísse do processo um litisconsorte, por reputá-lo carente de legitimidade para a causa, e determinasse a instrução probatória no continuidade do procedimento entre aqueles que permaneceram como partes, essa decisão seria interlocutória, portanto, agravável. Isso porque o processo não se encerrava ali. Apenas a relação jurídica processual sofria uma redução, sob o aspecto subjetivo;

(ii) se o juiz reconhecesse a prescrição relativa a um dos pedidos e determinação a produção de provas em relação a outro, também não se teria sentença. Afinal, o processo prosseguia ainda em primeiro grau – tendo apenas seu objeto sido reduzido. O capítulo de reconhecimento da prescrição seria, tanto quanto a determinação de produção de provas, decisão interlocutória (sim, eram admissíveis, já na redação original do CPC/73, interlocutórias de mérito!). Caberia, também nesse caso, agravo de instrumento;

(iii) se o juiz, logo depois da citação de todos os litisconsortes passivos simples (não-unitários), homologasse transação entre um deles e o autor, tal pronunciamento homologatório também não seria sentença. Ter-se-ia a redução do objeto do processo (com a resolução da pretensão dirigida ao litisconsorte que transigiu) e a exclusão de um de seus sujeitos (o litisconsorte transigente). Mas, também nesse caso, o processo iria adiante, relativamente aos demais litisconsortes. De novo, tratava-se de interlocutória (também de mérito), agravável.

Mas, se na origem do CPC/73 o princípio geral era o de que a sentença seria executada em um processo subsequente àquele em que ela fora proferida, sucessivas reformas legislativas alteraram essa diretriz. Assistiu-se à multiplicação dos casos em que a sentença era executada na própria relação processual em que proferida. Foi o que aconteceu com a sentença que impunha cumprimento de deveres de fazer e não fazer (1994), depois com as que determinavam entrega de coisa (2002) e, por fim, também com as que condenavam ao pagamento de quantia (2005).

Diante desse panorama, reputou-se preferível alterar o conceito de sentença (Lei 11.232/05). Sentença passou a ser definida como o ato do juiz que implicasse alguma das situações previstas no art. 267 ou no art. 269 do CPC/73. O art. 267, equivalente ao art. 485 do atual CPC, tratava dos casos em que o juiz declara a impossibilidade de julgar o mérito da causa. O art. 269, correspondente ao art. 487 do atual diploma, previa as hipóteses de resolução do mérito. Então, a partir da Lei 11.232/05, a sentença deixava de ser identificada exclusivamente por sua aptidão de pôr fim ao processo (com as ressalvas acima feitas). A lei passava a dar relevância ao conteúdo do ato. Se o ato decisório do juiz reconhecesse a existência de um defeito que impedisse, em termos absolutos, o julgamento do mérito ou se procedesse à resolução do mérito, seria sentença – ainda que não pondo fim ao processo.

Mas tal conceito também se mostrou inadequado, por implicar a existência de sentenças parciais (i.e., pronunciamentos que julgavam – ou afirmavam a impossibilidade de julgar – apenas uma parte do mérito da causa, com o processo indo adiante para a instrução do restante do mérito) que, pela letra da lei, seriam apeláveis – o que, se aplicado à risca, geraria graves confusões procedimentais. Considerem-se os três exemplos antes dados: pela letra da lei, em todos aqueles três casos, caberia apelação (contra a “sentença parcial” que excluiu o litisconsorte; que reconhece a prescrição de uma das pretensões cumuladas; que homologou a transação entre o autor e um dos litisconsortes). A remessa do processo ao tribunal, nesse momento, seria desarrazoada, pois ele tinha de prosseguir em primeiro relativamente ao resto de seu objeto e aos sujeitos remanescentes. Daí a doutrina haver cogitado de apelação “por instrumento” e de “sentença agravável”.

No Código de 2015, adotou-se um conceito que retoma o critério classificatório original do Código anterior, aperfeiçoando-o, e ainda agrega o critério de conteúdo que havia sido introduzido pela Lei 11.232/05. Assim, em regra, sentença é o pronunciamento que encerra a fase cognitiva do processo ou a execução (com o que, em princípio, estará, daí sim, encerrando o processo como um todo) e que tem por conteúdo alguma das hipóteses dos arts. 485 ou 487.

Assim as sentenças classificam-se em:

a) processuais (ou terminativas): aquelas proferidas nos casos elencados pelo art. 485 do CPC, em que o juiz não entra no mérito, mas interrompe prematuramente a marcha procedimental, sem alcançar a solução do mérito.

b) de mérito (ou definitivas): as que julgam o mérito, ou que endossam (homologando) manifestação de vontade das partes, resolvendo a lide. São prolatadas nas hipóteses enumeradas no art. 487 do CPC, e representam o alcance do escopo da jurisdição.

Voltando aos três exemplos antes dados, sob a égide do CPC/15, em todos aqueles casos tem-se decisão interlocutória. Poucas são as interlocutórias recorríveis de imediato, no Código novo. Mas aqueles três casos enquadram-se em hipóteses que comportam agravo de instrumento (arts. 354, par. ún.; 356, § 5º; e 1.015, II e VII).

2. Sentença e mérito da causa

Não há uma relação absoluta e necessária entre sentença e resolução do mérito da causa.

Por um lado, nem toda a sentença resolve o mérito da causa. Como visto, na fase de conhecimento do processo, há as que resolvem o mérito (art. 487) e as que afirmam a impossibilidade de sua resolução (art. 485). Essas últimas são designadas sentenças meramente terminativas (ou sentenças processuais). Aquelas primeiras são chamadas de sentenças definitivas (ou sentenças de mérito). Ademais, a execução também é encerrada mediante sentença – que, todavia, não se pronuncia sobre o mérito do crédito executado.

Por outro lado, nem todo o pronunciamento que em primeiro grau resolve o mérito da causa é sentença. Como já destacado, é possível que uma parcela do mérito da causa seja resolvida por decisão interlocutória (art. 356), com a parcela restante sendo submetida à instrução probatória, para só depois ser sentenciada.

3. Decisão interlocutória com conteúdo do art. 485 ou 487

Como dito, o Código admite decisões com o conteúdo do art. 485 ou 487 mas que não põem fim ao processo nem à sua fase de conhecimento. São as decisões interlocutórias que reconhecem a parcial impossibilidade de julgamento do mérito (art. 354, par. ún.) ou julgam antecipadamente apenas uma parte do mérito (art. 356 – v. texto anterior nesta série: clique aqui).

Tais pronunciamentos submetem-se em linhas gerais aos mesmos elementos (requisitos) da sentença e em geral são aptos a produzir os mesmos efeitos e a revestir-se da mesma autoridade (coisa julgada formal e material, conforme o caso).

Como visto, tais capítulos decisórios comportam agravo de instrumento. Mas, assim como essas decisões tem “conteúdo de sentença” (i.e., conteúdo normalmente atribuído às sentenças), o agravo de instrumento contra elas cabível igualmente deve seguir alguns parâmetros da apelação. Por exemplo, em regra não se previu sustentação oral na sessão de julgamento de agravo de instrumento, mas sim na da apelação (art. 937, I). Apenas o agravo contra decisão a respeito de tutela provisória foi incluído entre os recursos que comportam sustentação (art. 937, VIII). Mas, ainda que sem igual previsão expressa, se o agravo versa sobre o mérito da causa ou sobre a parcial negativa de resolução do mérito, também se justifica a possibilidade de sustentação oral pelas partes. Nesse caso, no que tange ao conteúdo e efeitos, a disputa recursal identifica-se com a havida na apelação, que comporta, em regra, sustentação oral.

4. Primazia da resolução de mérito

O art. 488 estabelece que, se a despeito de haver um fundamento para negativa de solução do mérito, for também possível resolver o mérito favoravelmente àquele a quem aproveitaria a sentença meramente terminativa (normalmente o réu), deve-se proferir a sentença de mérito. Em outras palavras, o juiz constata haver um fundamento para a extinção da fase cognitiva sem solução de mérito – o que seria bom para o réu –, mas também conclui que é possível julgar o mérito em favor do próprio réu: sempre que possível, deverá adotar essa segunda alternativa.

Os propósitos dessa regra são louváveis: prestigiar a instrumentalidade das formas; dar à parte um resultado mais estável do que aquele que ela teria sem o julgamento de mérito (a decisão de mérito faz coisa julgada material; a sentença terminativa, não); diminuir a carga de trabalho do judiciário ao se evitar a duplicação de processos etc.

No entanto, são mais restritos do que se poderia supor os casos em que tal norma é aplicável. Em muitas oportunidades, a falta de pressuposto de admissibilidade para a tutela jurisdicional inviabiliza completamente a prolação de uma sentença de mérito.

Por exemplo, se o juiz constata já haver coisa julgada material, cabe-lhe apenas extinguir a fase cognitiva sem julgar o mérito. Não é possível tornar a decidir o mérito, ainda que favoravelmente ao réu (a quem aproveitaria a sentença terminativa). Tornar a decidir o mérito, nesse caso, implicaria renovar a possibilidade de ação rescisória, reabrir os prazos prescricionais da pretensão de execução da sentença etc. Nada disso é admissível. Outro exemplo: o juiz constata que o autor é parte ilegítima; mas averigua também que é possível julgar improcedente o pedido formulado. Nessa hipótese, o julgamento de improcedência é despido de maior utilidade, pois, se futuramente o verdadeiro legitimado ativo resolver formular o mesmo pedido e causa de pedir em face do mesmo réu, não se poderá opor ao novo autor a coisa julgada do processo anterior, de que ele não foi parte (art. 506).

De todo modo, há casos em que a regra será utilmente aplicável. Se o réu é parte ilegítima, mas o juiz constata caber julgamento de improcedência, deve assim julgar o mérito. Nesse caso, se o autor pretender depois tornar a formular a mesma pretensão (pedido e causa de pedir) contra o verdadeiro legitimado, a coisa julgada do processo anterior ser-lhe-á oponível, pois ele, autor, lá foi parte (sendo irrelevante a ausência, naquele primeiro processo, do ora réu). Ainda outro exemplo: se o juiz verificar a inépcia da petição inicial, porque indeterminado o pedido, e ao mesmo tempo constatar a ocorrência da prescrição, em vez de proferir sentença processual, encerrando a fase cognitiva sem resolução do mérito, deverá, se possível, julgar liminarmente improcedente o pedido, proferindo decisão definitiva apta a fazer coisa julgada material.

_____________

*Eduardo Talamini é advogado, sócio do escritório Justen, Pereira, Oliveira & Talamini - Advogados Associados. Livre-docente em Direito Processual (USP). Mestre e doutor (USP). Professor da UFPR.

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