Uma das grandes preocupações relacionadas a operações de M&A no Brasil envolve a análise da necessidade de apresentar a operação ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), autarquia responsável pela defesa da concorrência e a análise do exercício de poder de mercado por agentes econômicos. Quando estas operações envolvem instituições financeiras, pode ainda haver mais uma etapa a ser percorrida: a análise do Banco Central (BACEN), responsável por fiscalizar a atuação das instituições financeiras com o objetivo de proteger o sistema financeiro nacional e evitar situações prejudiciais à economia do país, como o risco sistêmico e a desvalorização da moeda.
Portanto, em fusões e aquisições no mercado bancário, os agentes envolvidos se deparam com o seguinte impasse: quem deve analisar e aprovar a operação? Recorrendo aos textos legais, nos deparamos com o aparente conflito entre a lei 4.595/64, que determina as competências do Banco Central, e a lei 12.529/11, que estrutura o sistema brasileiro de defesa da concorrência. A primeira lei, do BACEN, afirma competir privativamente a este conceder autorização às instituições financeiras, a fim de que possam (i) ser transformadas, fundidas, incorporadas ou encampadas; ou (ii) alienar ou, por qualquer outra forma, transferir o seu controle acionário. Prevê ainda que “o Banco Central da República do Brasil, no exercício da fiscalização que lhe compete, regulará as condições de concorrência entre instituições financeiras”. Por outro lado, a lei 12.529/11 atribui ao CADE a função de analisar quaisquer atos de concentração econômica, sem fazer distinção quanto à natureza dos mesmos.
Esse foi o conflito com o qual o Grupo Finasa1 se deparou em 2000, ao submeter um ato de concentração ao CADE. À época, alguns conselheiros foram contrários à análise da operação pela autarquia, entendendo que a lei 4.595/64, por tratar do sistema financeiro nacional, seria mais específica do que a Lei do CADE e deveria prevalecer, cabendo exclusivamente ao BACEN a análise do ato. Esse entendimento foi ainda corroborado por parecer2 emitido pela Advocacia Geral da União (AGU), defendendo a competência exclusiva do BACEN para a análise da operação e determinando a vinculação do CADE ao parecer.
Ao final do processo, o CADE decidiu, por maioria, que não se vincularia ao entendimento da AGU com o fim de preservar a sua independência e autonomia, atributos essenciais à atuação das autarquias. Com relação ao aparente conflito, preponderou a tese do compartilhamento de competências entre o BACEN e o CADE, sendo o primeiro responsável por analisar atos de concentração sob um viés regulatório, observando a aplicação da política monetária nacional e da legislação específica do setor bancário e evitando circunstâncias que gerem risco sistêmico. Por outro lado, caberia ao CADE analisar os aspectos concorrenciais da operação, zelando pela aplicação da lei de defesa da concorrência. Dessa forma, não haveria conflito de competências, mas sim, complementaridade das funções.
A discussão foi ainda retomada em casos posteriores, merecendo destaque a operação envolvendo o Banco Bradesco e o Banco BCN, em 2001. O Bradesco, ao comprar o BCN, não informou a operação ao CADE, por entender que a análise caberia exclusivamente ao BACEN. O CADE, então, multou o banco por não haver apresentado a operação tempestivamente, e a discussão chegou ao Judiciário. O STJ, no Recurso Especial nº 1094218/DF - que acabou se tornando um importante precedente sobre o tema - entendeu que o parecer da AGU vincularia a atuação do CADE, e que a competência para a análise da operação seria, de fato, exclusiva do BACEN. O CADE recorreu ao STF no ano passado, mas ainda não houve decisão do Supremo sobre o caso, e a pergunta continua sem uma resposta certa.
Com o objetivo de sanar a insegurança que se instaurou sobre o tema, foi apresentado no Senado, em junho deste ano, projeto de lei3 que propõe o compartilhamento das funções entre as duas autarquias para a análise de fusões e aquisições no mercado bancário. Conforme o texto em tramitação, atos de concentração envolvendo instituições financeiras devem, primeiramente, ser submetidos ao Banco Central. Caso este entenda que a operação traz prejuízos ao sistema financeiro nacional, indeferirá a operação e notificará o CADE, que deverá se abster de realizar o controle de concentração. A contrario sensu, caso a operação seja aprovada pelo BACEN, será submetida à análise concorrencial do CADE, que poderá aprová-la ou não.
A matéria também é objeto de um projeto de lei complementar apresentado em 20034, já aprovado pelo Senado, agora sendo analisado pela Câmara, no qual se propõe a atuação complementar das autarquias, sendo o BACEN incumbido de verificar se o ato apresentado afeta a confiabilidade e segurança do sistema financeiro nacional.
As propostas, caso aprovadas, podem representar um grande avanço na matéria, assegurando o papel do BACEN, de proteger a saúde financeira do país, e o do CADE, de zelar pela defesa da concorrência.
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1 Ato de Concentração no. 08012.006762/2000-09.
2 Parecer AGU/LA 01/2001.
3 Projeto de Lei nº 350 de 2015, de autoria do Senador Antonio Anastasia.
4 Projeto de Lei Complementar nº 265 de 2007, de autoria do Senador Antônio Carlos Magalhães.
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*Pedro Paulo Salles Cristofaro é sócio do escritório Lobo & Ibeas Advogados. Mestre em Direito do Comércio Internacional pela Université de Paris X, Nanterre.
*Luisa Shinzato de Pinho é associada do escritório Lobo & Ibeas Advogados.