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Aplicativos para serviços de táxi: os defeitos da regulação do município de São Paulo (lei 16.345/16)

Referida lei constitui exemplo claro de tentativa frustrada (e desastrosa) de regulação estatal de atividades privadas.

8/1/2016

1. Introdução

No último dia 4 de janeiro de 2016, foi publicada a lei 16.345, do município de São Paulo, cujo objeto consiste na “regulamentação do atendimento ao serviço de Transporte Individual Remunerado de Passageiros – Táxi, em casos de solicitação por aplicativo (APP) ou internet”.

A referida lei constitui exemplo claro de tentativa frustrada (e desastrosa) de regulação estatal de atividades privadas. Ela padece de vários defeitos que acarretam a sua inconstitucionalidade.

2. Os evidentes defeitos da lei 16.345

2.1. A pretensão de regular atividade que não constitui serviço passível de regulação pelo Município

Em primeiro lugar, a lei municipal pretendeu regular serviços que não são passíveis de regulação pelo Município. Ela confunde o próprio serviço de transporte individual remunerado de passageiros (táxis), que é objeto de regulação municipal, com a intermediação desses serviços por meio de aplicativos ou pela internet.

O fato de o Município deter competência legislativa para regular os serviços de táxi não significa que ele pode regular a atividade que envolve os meios para a obtenção dos serviços de táxi.

Os aplicativos ou sites na internet mantidos por empresas que funcionam como intermediários para a solicitação de serviços de táxi não se confundem com estes. A atividade destes constitui na mera intermediação dos serviços de táxi, de modo a facilitar a sua solicitação e agendamento por parte dos usuários. Eles estabelecem uma ponte entre os prestadores do serviço e os usuários, fundada nas novas tecnologias e na ubiquidade da computação móvel por meio de telefones celulares.

Assim, a competência legislativa municipal a respeito do serviço de transporte individual remunerado não se estende automaticamente para os eventuais intermediários desse serviços (aplicativos e sites que permitem a aproximação do usuário com os prestadores). Sob o ponto de vista do usuário, tais empresas até podem vir a ser responsabilizados sob o ponto de vista da legislação de proteção ao consumidor, no caso de defeitos na prestação do serviço, mas isso não significa que o Município possa pretender regular tais serviços como se fossem serviços de táxi.

A atividade de intermediação é específica e vem sendo desenvolvida há algum tempo, de forma dissociada da própria prestação do serviço que é objeto da intermediação. Mais do que isso, trata-se de atividade econômica em sentido estrito, protegida pelas garantias da livre iniciativa e liberdade empresarial asseguradas pela Constituição Federal.

Basta verificar os sites e aplicativos para reservas de hotéis ou os aplicativos de viagens que permitem a reserva e compra de passagens aéreas e terrestres. Em todos esses casos, os sujeitos e empresas que prestam esse serviço de intermediação não são equiparados aos prestadores do serviço cuja contratação é objeto da intermediação.

Seu papel é de aproximar os usuários e os prestadores de serviço, de modo a facilitar a contratação e obtenção dos serviços. É nisso que reside o cerne dos referidos negócios. Muitas vezes, essa atividade de intermediação acaba agregando serviços adicionais ou outras facilidades que estimulam o usuário a utilizar o serviço. Alguns agregam conteúdo publicitário.

Portanto, não há competência municipal para regular a prestação de tais serviços de intermediação por parte de aplicativos e sites de internet, mesmo que eles se refiram a serviços de táxi (que são regulados pelo município). Não se está diante das hipóteses de competência estabelecidas pelo art. 30, da Constituição Federal.


2.2. A ausência de finalidade específica

Em segundo lugar, a lei 16.345 não parece ter qualquer finalidade específica relacionada ao interesse coletivo que deve necessariamente permear a regulação por parte do poder público.

Não há qualquer finalidade que se possa extrair da necessidade de credenciamento e apresentação de contrato ou estatuto social e, muito menos, da circunstância de que as empresas deverão ter sede na cidade de São Paulo.

Qual o objetivo de tais exigências? O exame do inteiro teor da norma publicada não revela qualquer finalidade útil para essas exigências. Afinal, se o serviço de intermediação é prestado através da internet, seja por meio de aplicativos, ou através de sites específicos, não há qualquer vantagem para o usuário (e mesmo para os prestadores de serviço de táxi) em que a empresa esteja sediada no Município de São Paulo.

Por outro lado, não há qualquer diferença entre a empresa sediada na região metropolitana de São Paulo, no Rio de Janeiro, em Manaus ou no próprio Município de São Paulo. A exigência até mesmo viola o princípio da isonomia e fere o princípio federativo – o que será examinado de modo mais específico a seguir.

2.3. Incompletude e ausência de regulação efetiva

Depois, as normas estabelecidas pela lei 16.345 são evidentemente imprestáveis para qualquer finalidade. Constituem regulação incompleta e defeituosa por parte do poder público municipal.

Por um lado, ela não estabelece quaisquer regras ou condições específicas para o funcionamento dos aplicativos ou sites destinados à solicitação de serviços de táxi – o que, de certo modo, apenas revela que o Município não detém competência legislativa para regular tais atividades.

Por outro lado, ela remete apenas aos requisitos que serão – eventualmente e no futuro – estabelecidos pelo poder público. O art. 2º a referida lei limita-se a indicar que “As empresas interessadas na prestação do serviço previsto no art. 1º de que dispõe esta lei deverão atender os requisitos exigidos pelo Poder Público, tendo como seus prestadores exclusivamente os taxistas”.

Portanto, a lei deixou de definir qualquer regulação específica para tais atividades. São mencionados os requisitos exigidos pelo Poder Público, mas não se sabe quais são esses requisitos. Estima-se que serão estabelecidos por meio de atos infralegais (decretos, regulamentos ou mesmo portarias) o que, por si só, já constitui evidente inconstitucionalidade, tendo em vista as exigências derivadas do princípio da legalidade e os limites constitucionais à regulamentação da atividade econômica.

Do modo como foi publicada, a lei 16.345 apenas se presta a estabelecer grave insegurança jurídica, atingindo atividades (privadas) que vêm sendo prestadas de modo regular e eficaz.

2.4. A impossibilidade de restrição dos prestadores dos serviços de intermediação

Outro grave defeito da lei 16.345 consiste na previsão de que os serviços de aplicativos e sites para a solicitação do serviço de táxi deverão ter como prestadores “exclusivamente os taxistas” (art. 2º).

Trata-se de reserva de mercado inválida, eis que (a) fere os princípios da livre iniciativa e da liberdade econômica e (b) não há competência legislativa municipal para a regulação específica de tais serviços de intermediação.

Para além de sua invalidade, a regra estabelecida pela lei 16.345 é extremamente confusa. Não existe clareza se as empresas que irão prestar os serviços de intermediação devem ter como prestadores do serviço objeto dessa mesma intermediação apenas taxistas; ou, ainda, se apenas os taxistas poderão prestar o serviço de intermediação de seus serviços.


2.5. A inconstitucionalidade da exigência de sede no Município de São Paulo

Por outro lado, é evidente a invalidade da exigência de que a sede da empresa de intermediação seja na cidade de São Paulo.

A previsão é manifestamente inconstitucional. Ofende os princípio da isonomia, da liberdade de trabalho e da livre iniciativa, consagrados pela Constituição Federal. Também viola a estrutura federativa estabelecida pela Constituição e a vedação a que sejam criadas “distinções entre brasileiros ou preferências entre si” (art. 19, inc. III)

Note-se que a discussão a respeito da possibilidade de se exigir que sede da empresa esteja em determinado local é frequente no âmbito das licitações. Não raro, a entidade licitante pretende inserir no edital a exigência de que os licitantes deverão ter sede em determinada localidade. Esse tipo de exigência é expressamente vedado pela lei 8.666/93 (art. 3º, §1º, inc. I), que prevê que “É vedado aos agentes públicos: I – admitir, prever, incluir ou tolerar, nos atos de convocação, cláusulas ou condições que comprometam, restrinjam ou frustrem o seu caráter competitivo, inclusive nos casos de sociedades cooperativas, e estabeleçam preferências ou distinções em razão da naturalidade, da sede ou domicílio dos licitantes ou de qualquer outra circunstância impertinente ou irrelevante para o específico objeto do contrato, ressalvado o disposto nos §§ 5.º a 12 deste artigo e no art. 3.º da Lei 8.248, de 23 de outubro de 1991”.

Ademais, exigências dessa natureza vêm sendo sistematicamente reputadas inválidas pelos tribunais e tribunais de contas, justamente por ofender o princípio da isonomia e o sistema federativo (ex. ADI 3.583/PR, Plenário, rel. Min. Cezar Peluso, DJ de 14.03.2008; TCU, Acórdão 6.798/2012, 1.ª C., rel. Min. José Múcio Monteiro).

Com muito maior razão, em se tratando de atividade econômica em sentido estrito (como é o caso dos serviços prestados pelos aplicativos e sites de intermediação de táxis), é manifestamente inconstitucional exigir-se que a sede das empresas esteja no município de São Paulo. Aliás, se não fosse inválida em razão de sua inconstitucionalidade, a exigência seria absolutamente anacrônica, considerando-se que se trata de serviços prestados por meio da internet, o que não exige qualquer estrutura física no local em que os serviços são prestados.

Nem se diga que a exigência se prestaria a dar segurança aos usuários. Por um lado, o fato de a sede da empresa intermediadora ser no próprio Município não agrega segurança alguma. Depois, se a preocupação fosse essa, bastaria ao Município estabelecer que as empresas devem manter escritório local para atendimento físico de eventuais reclamações ou solicitações dos usuários. Mas mesmo essa última alternativa, a despeito de mais razoável do que a exigência absoluta estabelecida pela lei 16.345, também seria de constitucionalidade duvidosa, tendo em vista o que já foi exposto acima.

2.6. O intuito meramente arrecadatório

A previsão de multas em valores elevados (R$ 50.000,00 para empresas e R$ 3.800,00 para pessoas físicas), com previsão de cobrança dobrada em caso de reincidência revela o nítido intuito arrecadatório da regulação instituída.

Considerando a inexistência de qualquer finalidade coletiva que ampare a edição da referida lei, a estipulação dessas penalidades é claramente inválida.

A previsão de apreensão do veículo e bloqueio no licenciamento junto ao Detran até a quitação da multa é igualmente desproporcional e desarrazoada. Primeiro, porque as empresas de intermediação não são titulares, elas mesmas, de veículos. Os veículos são de titularidade de taxistas ou pessoas que destinam tais veículos aos serviços de táxi. Segundo, porque há muito o STF reconhece a inconstitucionalidade de previsões legais de supressão de atividade econômica ou apreensão de bens como forma de coercitiva de cobrança de tributos ou multas (Súmulas 70, 323 e 547 do STF e julgados posteriores como RE 62.047/SP e, mais recentemente, o AI 623.739 AgR/RS). Terceiro, e pelo mesmo motivo, porque não há como se bloquear o licenciamento do veículo para o fim de se obter o pagamento da multa eventualmente aplicada.

2.7. A evidente ausência de avaliação de impacto regulatório e da consideração do interesse dos usuários dos serviços de táxi

Tudo isso revela a absoluta ausência de ponderação e análise prévias à edição da citada norma. Os graves defeitos presentes na referida lei demonstram que não houve qualquer esboço ou tentativa de análise de impacto regulatório (sobre o tema, confira-se o texto do autor intitulado A Constituição Brasileira e a Análise de Impacto Regulatório, publicado na Revista de Direito Administrativo Contemporâneo – ReDAC, ed. Revista dos Tribunais, vol. 3/2013, p. 135 – 158, Out - Dez/2013).

Não foram sopesados ou considerados os custos e benefícios que derivariam da edição desse tipo de norma. Não foram considerados os prejuízos e benefícios que seriam impostos aos diversos interessados (aos prestadores do serviço, aos usuários, às empresas intermediadoras e à coletividade em geral). Muito menos foram considerados os efeitos que derivariam da não edição da norma.

A ausência de consideração e ponderação de questões relevantes relacionadas à atividade que se pretendeu regular constitui razão que igualmente conduz à sua invalidade e inconstitucionalidade.

3. Considerações finais

Enfim, a lei 16.345 constitui exemplo claro de tentativa açodada de regulação de atividades pelo poder público, que podem conduzir a desvios e prejuízo à coletividade.

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CARDOSO, André Guskow. Aplicativos para serviços de táxi: os defeitos da regulação do Município de São Paulo (Lei nº 16.345/2016), Informativo Justen, Pereira, Oliveira e Talamini, Curitiba, n.º 107, janeiro de 2016, disponível em https://www.justen.com.br/informativo, acesso em [data].

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*André Guskow Cardoso é advogado da banca Justen, Pereira, Oliveira & Talamini - Advogados Associados. Mestre em Direito do Estado pela UFPR.

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