O princípio da boa-fé
O princípio da boa-fé sempre permeou todas as relações jurídicas, sejam elas de direito contratual, de família, das coisas, sucessões etc.
A boa-fé sempre foi analisada sob o prisma subjetivo, entendida como a ignorância de vícios que inquinam determinada relação jurídica. Assim, v.g., é terceiro de boa-fé aquele que adquire algo sem saber de vícios que pairam sobre o direito de propriedade de quem vende .
Com a massificação da economia e aumento exponencial das relações contratuais, bem como a maneira pela qual essas relações, com a criação de contratos-padrão e utilização desses contratos para uma quantidade indeterminada de pessoas, passou-se a perquirir outro aspecto da boa-fé nas relações contratuais: o aspecto objetivo.
Enquanto a boa-fé subjetiva era investigada na psique da pessoa, a boa-fé objetiva demanda condutas externas à pessoa. A boa-fé objetiva é aferida a partir das condutas de qualquer sujeito de uma relação contratual.
Em que pese a jurisprudência já mencionasse o dever de guardar condutas que caracterizem boa-fé antes da promulgação do Código Civil de 2002, foi só a partir do novo diploma normativo que a previsão passou a ser textual em dispositivo que regula as relações contratuais: o art. 422.
Ocorre que esse não é o único dispositivo que obriga a prática de condutas de boa-fé. O Código Civil de 2002, erigiu a boa-fé objetiva a três categorias jurídicas, senão vejamos.
A boa-fé como elemento de interpretação do contrato
Nos termos do art. 113, a boa-fé deve ser elemento balizador da interpretação do contrato, pelo que tanto as partes, como qualquer pessoa que tenha contato com uma relação contratual, deve apreender tal situação a partir de um dever de boa-fé.
Nesse sentido é a lição de Maria Helena Diniz, para quem o princípio da boa-fé deve estar ligado “ao interesse social das relações jurídicas, uma vez que as partes devem agir com lealdade, retidão e probidade, durante as negociações preliminares, a formação, a execução e a extinção do contrato” (2014, p. 195).
Como deixa claro a lição da renomada civilista da PUC-SP, a boa-fé deve estar presente desde antes, até depois do contrato, vale dizer: desde as negociações pré-contratuais até o momento posterior à extinção da própria avença, de maneira que não represente elemento de prejuízo para qualquer das partes, mas elemento fomentador de benefícios para as partes e crescimento da atividade econômica de um país.
A boa-fé como elemento controlador do exercício dos direitos contratuais
Se é certo que o contrato faz lei entre as partes, tão certo quanto é a necessidade de que essa lei seja exercida dentro dos ditames da boa-fé, de maneira que o desrespeito à boa-fé quando do exercício de um direito contratualmente estabelecido gera conduta civilmente ilícita e ensejadora de responsabilidade civil, que, in casu, ocorre na modalidade objetiva, dispensando-se a perquirição do elemento subjetivo da conduta, como se depreende do quanto disposto no art. 187 do CC.
Os enunciados 24 e 37 das Jornadas de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal são claros no sentido de que a violação da boa-fé objetiva caracteriza inadimplemento cuja responsabilidade deve ser aferida de maneira objetiva.
Maria Helena Diniz, citando farta jurisprudência, ratifica a objetividade da responsabilidade civil daquele que abusa de um direito:
A ‘ilicitude’ do ato praticado com abuso de direito possui, segundo alguns autores e dados jurisprudenciais, natureza objetiva, aferível, independentemente de culpa ou dolo (RJTJRS, 28:373, 43:374, 47:345, 29:298; RT, 587:137; RSTJ, 120:370, 140:396, 145:446; RF, 379:329) (2014, p. 252)
Nas palavras de Flávio Tartuce, “a quebra ou desrespeito à boa-fé objetiva conduz ao caminho sem volta da responsabilidade independentemente de culpa” (2013, p. 93).
Da boa-fé objetiva como norma de conduta da parte contratante (deveres anexos ou laterais)
A boa-fé objetiva é norma de conduta. Impõe aos sujeitos de direito uma determinada conduta, seja omissiva ou comissiva, quando de suas relações obrigacionais.
Indefectíveis, nesse sentido, as palavras de Maria Helena Diniz:
A boa-fé subjetiva é atinente ao dato de se desconhecer algum vício do negócio jurídico. E a boa-fé objetiva, prevista no artigo sub examine, é alusiva a um padrão comportamental a ser seguido baseado na lealdade e na probidade (integridade de caráter), proibindo o comportamento contraditório, impedindo o exercício abusivo de direito por parte dos contratantes, no cumprimento não só da obrigação principal, mas também das acessórias, inclusive do dever de informar, de colaborar e de atuação diligente (2014, p. 418)
Para Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho a boa-fé objetiva “consiste em uma verdadeira regra de comportamento, de fundo ético e exigibilidade jurídica” (2011, p. 101), de maneira que as condutas (omissivas e comissivas) que dão conteúdo à boa-fé objetiva devem ser respeitadas, o que é ratificado pelo enunciado n. 168 das Jornadas de Direito Civil.
E prosseguem Stolze e Pamplona explicando o caráter lateral e anexo dos deveres que compõem a boa-fé objetiva:
(...) o contrato não se esgota apenas na obrigação principal de dar, fazer ou não fazer.
Ladeando, pois, esse dever jurídico principal, a boa-fé objetiva impõe também a observância de deveres jurídicos anexos ou de proteção, não menos relevantes, a exemplo dos deveres de lealdade e confiança, assistência, confidencialidade ou sigilo, confiança, informação etc. (2011, p. 103)
Com a percuciência que lhe é peculiar e a profundidade de uma dissertação de mestrado, posteriormente publicada como livro, Renata Domingues Balbino Munhoz Soares esclarece que:
Desde 1900, quando entrou em vigor o BGB, os alemães conhecem a separação de boa-fé subjetiva (guter Glauben) e objetiva (Treu und Glauben).
A boa-fé objetiva possui dois sentidos diferentes: um sentido negativo e um positivo. O primeiro diz respeito à obrigação de lealdade, isto é, de impedir a ocorrência de comportamentos desleais; o segundo, diz respeito à obrigação de cooperação entre os contratantes, para que seja cumprido o objeto do contrato de forma adequada (2008, p. 83)
Nesse sentido, o comportamento que se exige de ambas as partes contratantes, ante a boa-fé objetiva, é a omissão quanto ao que possa prejudicar a parte contrária e a imposição de ações que cooperem para que a parte contrária possa adimplir, da melhor forma possível, a prestação a que está obrigada.
Tais deveres são chamados de deveres anexos ou laterais, justamente porque ladeiam a obrigação principal. Como exemplo cite-se um contrato bancário em que o Banco, maliciosamente, deixa seu crédito crescer exponencialmente para, quando já gigante o crédito, exercer seu direito de cobrança. Age com má-fé, porquanto deveria ter cobrado logo que inadimplido, o que a doutrina denomina duty to mitigate the loss (dever de mitigar as perdas).
Flávio Tartuce, com apoio em Clóvis do Couto e Silva ensina que “o contrato e a obrigação trazem um processo de colaboração entre as partes decorrente desses deveres anexos ou secundários, que devem ser respeitados pelas partes em todo o curso obrigacional” (2013, p. 92)
O próprio Conselho da Justiça Federal reconhece a firme condução do Código Civil para a exigência de cumprimento dos deveres laterais do contrato, decorrentes da boa-fé objetiva, sob pena de atuação jurisdicional para a respectiva correção, consoante enunciados n. 26 e 363.
Ainda Tartuce (2013, p. 92), agora apoiado em Judith Martins-Costa e Clóvis do Couto e Silva exemplifica deveres anexos / laterais, de observância cogente: a) cuidado, respeito, informar, agir conforme confiança, lealdade, probidade, colaboração, cooperação etc.
Pablo Stolze e Rodolfo Pamplona (2011, p. 106), iniciando sua fala salientando o caráter exemplificativo de qualquer rol que se proponha da demonstrar o conteúdo da boa-fé objetiva citam lealdade e confiança recíprocas, assistência, informação e sigilo.
Com a percuciência que lhe é peculiar, o preclaro Carlos Roberto Gonçalves, desembargador aposentado do E. TJSP ensina:
“A boa-fé enseja, também, a caracterização do inadimplemento mesmo quando não haja mora ou inadimplemento absoluto do contrato. É o que a doutrina moderna denomina violação positiva da obrigação ou do contrato. Desse modo, quando o contratante deixa de cumprir alguns deveres anexos, por exemplo, esse comportamento ofende a boa-fé objetiva e, por isso, caracteriza inadimplemento do contrato” (2012, p. 59)
Confiram-se os ensinamentos de Judith Martins-Costa em magistral obra acerca da boa-fé, em que estrutura, de maneira concatenada, científica e profunda, as consequências da incidência da boa-fé no direito privado, onde destaca que os deveres laterais constituem “‘deveres de adoção de determinados comportamentos, impostos pela boa-fé em vista do fim do contrato’” (2000, p. 437-440).
O E. TJSP, em decisões de 2015, reconhece a violação positiva do contrato, consubstanciada na não observância dos deveres laterais ao contrato, em decorrência da boa-fé objetiva, consoante se verifica nos seguintes julgados:
Não obstante isso, ainda que não houvesse inadimplemento de cláusula expressa (e há), é importante consignar que houve violação positiva do contrato, em razão da inobservância dos deveres anexos decorrentes da probidade e da boa-fé objetiva. Com efeito, viola às claras os deveres laterais de lealdade, colaboração, cooperação e cuidado, que os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução (art. 422 do Código Civil)
Assim, apesar de não se poder afirmar um inadimplemento pelo descumprimento da obrigação imputada à ré, que se limitava ao pagamento pela quantidade efetivamente transportada, vislumbra-se a violação positiva do contrato, consistente em um desrespeito à boa-fé objetiva.
Neste sentido, resume Jorge Cesa Ferreira da Silva: ‘A boa-fé expande as fontes dos deveres obrigacionais, posicionando-se ao lado da vontade e dotando a obrigação de deveres orientados a interesses distintos dos vinculados estritamente à prestação, tais como o não-surgimento de danos decorrentes da prestação realizada ou a realização do melhor adimplemento’ (A Boa-fé e a Violação Positiva do Contrato, p. 270). Como consequência, amplia-se o suporte fático do inadimplemento obrigacional, considerando-se violação ao contrato o descumprimento de deveres laterais, a dar lugar não apenas à pretensão ressarcitória, mas igualmente, àqueles outros remédios próprios ao inadimplemento .
O C. STJ também protege o respeito à boa-fé objetiva, reconhecendo o inadimplemento contratual em sua modalidade violação positiva, consoante se depreende do AREsp 718.523, Rel. Min. Maria Isabel Gallotti, julgado em 22/06/2015, em que assentou: “Ora, facilmente se observa que os réus descumpriram os deveres anexos à Boa-fé objetiva, tendo praticado a chamada violação positiva do contrato”.
Em outra oportunidade o STJ ratifica a objetividade da responsabilidade, conforme se depreende do AREsp 262.823, Rel. Min. Maria Isabel Gallotti, julgado em 29/04/2015:
Da boa-fé objetiva contratual derivam os chamados deveres anexos ou laterais, entre os quais o dever de informação, colaboração e cooperação. A inobservância desses deveres gera a violação positiva do contrato e sua consequente reparação civil, independente de culpa.
Como visto, a excelência da evolução doutrinária e jurisprudencial acerca dos consectários da boa-fé objetiva no direito contratual deixa clara a impositiva observância de deveres contratuais, ainda que não estejam expressa e textualmente estabelecidos na avença.
Os deveres de probidade, boa-fé, colaboração, informação e cuidado decorrem da boa-fé objetiva e só são observados se o sujeito da relação contratual atuar para além da simples consecução do objeto contratual.
Mister se impõem condutas de ajuda recíproca entre as partes para, além do objeto contratual, permitir o cumprimento do contrato da maneira que mais beneficie cada uma das partes, impedindo prejuízos da parte contrária para o cumprimento do contrato, contribuindo para que a parte contrária consiga adimplir suas obrigações, não criando empecilhos, bem como mitigando suas perdas para que o ressarcimento impacte o menos possível a parte contrária.
A não observância desses deveres, ainda que cumprido o objeto primário do contrato (a prestação contratualmente estabelecida) gera inadimplemento contratual. É exatamente a chamada violação positiva do contrato, que é tratada como inadimplemento, com o consequente dever de indenizar por parte daquele que praticou tal violação.
Essa responsabilidade decorrente da violação positiva do contrato, consoante entendimento fartamente demonstrado, deve ser aferida de maneira objetiva, ou seja, não se investigará a ocorrência de culpa ou dolo por parte daquele que violou positivamente.
O reconhecimento da objetividade da responsabilidade civil impede a alegação de excludentes de responsabilidade civil que baseiem na quebra do elemento subjetivo da conduta, ou seja, ainda que o sujeito passivo de eventual ação de ressarcimento prove que não praticou a indigitada violação positiva por culpa ou dolo, será condenado a ressarcir a parte contrária que sofreu os prejuízos.
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Referências
DINIZ, Maria Helena. Código Civil anotado, 17.ed. São Paulo: Saraiva, 2014.
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro. V.3, contratos e atos unilaterais, 9.ed., São Paulo: Saraiva, 2012.
MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no processo obrigacional, 1.ed. 2 tir., São Paulo: RT, 2000.
SOARES. Renata Domingues Balbino Munhoz. A boa-fé objetiva e o inadimplemento do contrato: doutrina e jurisprudência, São Paulo: LTr, 2008.
STOLZE, Pablo; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil, v.IV, T1, contratos: teoria geral 7. Ed., São Paulo: Saraiva, 2011.
TARTUCE, Flávio. Direito Civil, v.3, Teoria geral dos contratos e contratos em espécie, 8.ed., São Paulo: Método, 2013.
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*Antonio Sanches é advogado do escritório Antonio Sanches Advocacia e Consultoria Empresarial. Professor universitário.