1) Introdução
O agronegócio é essencial para a economia brasileira, uma vez que representa 23% do PIB1. O setor é marcado por grande intervenção estatal, tendo quase que a totalidade de seu financiamento decorrente de recursos do governo federal. Tendo em vista que esses recursos são escassos, logo passaram a não suportar a demanda do agronegócio por financiamento. Diante dessa situação, o poder público entendeu a necessidade da participação de investidores privados para o melhor desenvolvimento do setor.
Neste contexto, a lei 8.929/94 introduziu a Cédula de Produto Rural (CPR), que logo passou a fazer parte do cotidiano no mundo do agronegócio. Uma vez que apresenta a possibilidade de que sua liquidação se dê de maneira física ou financeira, como veremos a seguir, esta se mostra um importante instrumento por conta de sua flexibilidade, podendo ser utilizado para diversas finalidades: aquisição de produtos e insumos, financiamento de produção, prestação de garantia, dentre outras.
2) Cédula de Produto Rural
De acordo com o art. 1º da lei antes mencionada, a CPR é um título líquido e certo que representa a "promessa de entrega de produtos rurais" feita por seu emitente. A CPR de liquidação física não apresenta um preço, simplesmente descrimina a quantidade e qualidade de um produto rural, que deverá ser entregue pelo emitente.
Por produto rural podemos entender não somente os produtos agrícolas ou pecuários in natura, mas também os beneficiados e industrializados. Sendo assim, todo produto de origem agropecuária pode ser objeto de CPR, sendo os mais comuns aqueles que tem maior liquidez no mercado.
Estão aptos para emitir esse título os produtores rurais, suas associações e cooperativas, nos termos do art. 2º da lei supramencionada.
Para que seja um instrumento válido, a CPR deverá conter: a denominação "Cédula de Produto Rural"; a data da entrega; o nome do credor e cláusula à ordem; promessa pura e simples de entregar o produto, sua indicação e as especificações de qualidade e quantidade; o local e as condições da entrega; a descrição dos bens cedularmente vinculados em garantia; a data e lugar da emissão; a assinatura do emitente.
Importante ressaltar que, visando trazer segurança ao título, de acordo com o art. 11º da lei da CPR, não pode o emitente invocar caso fortuito ou força maior para se eximir da obrigação inscrita no título.
Tal disposição, encontra-se acatada na jurisprudência, como no recente julgado do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, a seguir:
AÇÃO REVISIONAL DE CONTRATO - CEDULA DE PRODUTO RURAL - LEI 8.929/94 -CASO FORTUITO - ART. 11 DA LEI 8.929/94 - SENTENÇA MANTIDA. Nos exatos termos do art. 11 da lei 8.929/94, o emitente de uma Cedula de Produto Rural responde pela evicção, não podendo 'invocar em seu benefício o caso fortuito ou de força maior'.
(TJ-MG - AC: 10694050224641001 MG , Relator: Wanderley Paiva, Data de Julgamento: 26/08/2015, Câmaras Cíveis / 11ª CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 01/09/2015) (Grifo nosso)
Na CPR a existência de uma garantia não é obrigatória, entretanto, caso se faça presente alguma garantia, esta poderá ser feita na própria CPR, ou em um documento à parte assinado pelo emitente. Para garantir uma CPR poderá se constituir hipoteca, penhor ou alienação fiduciária. Uma vez que a CPR é regida pelas normas do direito cambial, também é aceita a constituição de garantia de aval.
No vencimento determinado pelo título, o titular da CPR poderá exigir do emitente o produto, na quantidade e qualidade estabelecidas. É possível, ainda, o cumprimento parcial da obrigação de entrega, sendo este anotado no verso do título, tornando-se exigível apenas o restante.
Para que tenha eficácia perante terceiros, a CPR deverá ser registrada no Cartório de Registro de Imóveis do domicílio do emitente e, caso haja penhor, hipoteca ou alienação fiduciária, deverá ser registrada, também, no Cartório de Registro de Imóveis no qual os bens estão empenhados ou alienados fiduciariamente, ou o imóvel está hipotecado ou alienado fiduciariamente. Visando trazer segurança para a operação, a lei determinou que os bens vinculados à CPR não poderão ser penhorados ou sequestrados por outras dívidas do emitente ou terceiro prestador de garantia real.
O endosso da CPR é possível, sendo aplicáveis as normas do direito cambial, com algumas especialidades, são elas: não é permitido o endosso em branco, devendo ser completamente identificado o novo titular do direito; o endossante não responde pelo cumprimento da obrigação de entregar o produto, mas somente por sua existência; e não se exige o protesto do título para se assegurar o direito de regresso contra os avalistas.
3) Cédula de Produto Rural Financeira (CPRF)
Com a lei 10.200/01, foi incluído à lei 8.929/94 o Artigo 4-A, que criou a Cédula de Produto Rural Financeira. Enquanto a CPR Física apenas descrimina a quantidade e a qualidade de um produto a ser entregue, a CPR Financeira vai além e apresenta um método para a obtenção de um valor, com base em um preço ou índice de preços a ser multiplicado pelos produtos descritos na mesma, que deverá ser desembolsado pelo emitente para a liquidação do título.
Com relação à definição da CPRF, explica Renato Buranello:
"A CPR Financeira (CPRF) é uma modalidade de CPR que foi criada pela Medida Provisória nº 2.042/2000, convertida em lei 10.200, de 14 de fevereiro de 2001, que incluiu o art. 4º-A à lei 8.929/94. À semelhança da CPR Física, contém a descrição do produto e da quantidade negociada; a diferença reside na forma de liquidação da CPR. Na CPR Financeira, não se prevê a entrega física do produto, apenas a liquidação com o pagamento, no vencimento, do valor correspondente à multiplicação da quantidade especificada pelo preço fixado ou índice de preços adotado no título."2
Nos termos do Artigo 4-A, a CPR-F exige que: estejam presentes os requisitos necessários para a "identificação do preço ou do índice de preços a ser utilizado no resgate do título, a instituição responsável por sua apuração ou divulgação, a praça ou o mercado de formação do preço e o nome do índice"; sejam nomeadas apenas instituições idôneas e de credibilidade com divulgação periódica da cotação dos produtos objetos da CPR; as partes tenham fácil acesso aos dados a serem utilizados para fixação do preço; esteja presente a palavra "financeira" após a denominação "Cédula de Produto Rural".
Logo, podemos notar que a maior diferença entre a CPR Física e a CPR Financeira reside na forma de liquidação. Enquanto na CPR Física ocorre a liquidação através da entrega dos produtos na quantidade e qualidade descritas na mesma, na CPR Financeira a liquidação se dá com o pagamento em dinheiro do valor obtido através da multiplicação dos produtos descriminados pelo preço ou índice de preço constante no título.
4) Desnecessidade de Contraprestação
Existem juristas que defendem ser requisito essencial de validade da CPR a existência de uma contraprestação, apesar de não haver nenhuma disposição legal nesse sentido.
Os que defendem a necessidade de contraprestação justificam sua teoria afirmando que a CPR é a principal alternativa para que os produtores rurais, emitentes de CPR, obtenham o capital de giro necessário para o desenvolvimento de suas atividades. Afirmam, ainda, que a falta de tal contraprestação implica na nulidade do título, por descumprimento de requisito de validade. Alguns, até mesmo, sustentam que a contraprestação deve ser uma antecipação do preço do produto prometido na CPR em dinheiro e na emissão do título3.
Arnaldo Wald esclarece dizendo que a CPR é definida como um título representativo de promessa de entrega de produtos rurais, com ou sem garantia cedularmente constituída, de acordo com a lei 8.929/94, e que a lei em questão nada dispôs sobre a necessidade de adiantamento da quantia correspondente ao preço da mercadoria descrita na CPR para que o título seja válido.4
A exigência da antecipação do preço do produto à época da emissão do título restringe operações de financiamento agropecuário.
Nesse sentido, escreveu Renato Buranello:
"Supondo-se que a obrigação de antecipação do preço do produto prometido em dinheiro fosse realmente necessária, as chamadas "operações de troca por insumos", desenvolvidas em grande escala pelos produtores agropecuários, estariam prejudicadas, o que não é interessante para as empresas de insumos. Porém, essas operações causariam prejuízos, principalmente para os emitentes da Cédula de Produto rural, já que esses deixariam de contar com excepcional modalidade de antecipação de insumos por meio da promessa de entrega futura de produto de sua lavoura ou rebanho, contrariando a própria finalidade indicada pela legislação que criou o título em questão, na medida em que não há operação financeira, mas apenas entrega de insumos como contrapartida à emissão da CPR. Ainda, com relação à necessidade do pagamento, à época da emissão da Cédula de Produto Rural esse procedimento pode ser rebatido pela possibilidade de o próprio emitente da cédula desejar receber o preço do produto prometido em data posterior à emissão, podendo conseguir melhores condições de preço de mercado que, em se tratando de commodities agrícolas, é muito oscilante para seu produto agropecuário, além de operações estruturadas, que podem exigir o pagamento posterior à emissão." 5
Para por fim a eventuais dúvidas quanto à viabilidade da CPR sem prévia contraprestação, exponho um recente julgamento da Ministra Nancy Andrighi sobre o tema:
RECURSO ESPECIAL. PROCESSO CIVIL. DIREITO AGRÁRIO. CEDULA DE PRODUTO RURAL (CPR). DESNECESSIDADE DE ANTECIPAÇÃO DO PAGAMENTO DO PREÇO PELO PRODUTO, POR AUSÊNCIA DE DETERMINAÇÃO LEGAL. NECESSIDADE DE SE DAR AO TÍTULO SUA MÁXIMA UTILIZAÇÃO. 1. Embargos do devedor opostos em 30/06/09, do qual foi extraído o presente recurso especial, concluso ao Gabinete em 03/05/12. 2. Discute-se a validade de Cedula de Produto Rural (CPR) na falta de pagamento antecipado do preço dos produtos agrícolas nela representados. 3. A lei 8.929/94 não impõe, como requisito essencial para a emissão de uma Cedula de Produto Rural, o prévio pagamento pela aquisição dos produtos agrícolas nela representados. A emissão desse título pode se dar para financiamento da safra, com o pagamento antecipado do preço, mas também pode ocorrer numa operação de 'hedge', na qual o agricultor, independentemente do recebimento antecipado do pagamento, pretende apenas se proteger contra os riscos de flutuação de preços no mercado futuro. 4. Recurso especial improvido.
(STJ - REsp: 1320167 SP 2011/0294211-5, Relator: Ministra NANCY ANDRIGHI, Data de Julgamento: 08/05/14, T3 - TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 26/05/14) (Grifo nosso).
5) Conclusão
Ainda há grande dependência do agronegócio dos escassos recursos públicos direcionados ao financiamento desta atividade. Entretanto, medidas como a criação da CPR, instrumento precursor no estímulo ao financiamento privado no agronegócio, e, mais recentemente, os instrumentos introduzidos pela lei 11.076/04, possibilitam o caminho para essa desvinculação e colaboram para o desenvolvimento deste setor de fundamental importância para a economia brasileira.
Deve o Estado buscar sempre encorajar o financiamento privado para as operações do agronegócio de nível profissional, aquele, em grande escala, voltado para o comércio interno e para a exportação, ficando o financiamento público responsável por financiar o pequeno produtor e a agricultura de menor porte.
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1 - Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada - ESALQ/USP, Perspectivas para o Agronegócio em 2015. Disponível em: <https://www.cepea.esalq.usp.br/comunicacao/Cepea_Perspectivas%20Agroneg2015_relatorio.pdf> Acesso em 28 de agosto de 2015.
2 - BURANELLO, Renato M. Sistema Privado de Financiamento do Agronegócio: Regime Jurídico. 2. ed. São Paulo: Quartier Latin, 2011, p. 468.
3 - RODRIGUES, R. M. Da Desnecessidade de Contraprestação para Validade da Cédula de Produto Rural. In: BURANELLO, Renato Macedo; SOUZA, André Ricardo Passos de; PERIN JUNIOR, Ecio (Coord.). Direito do Agronegócio: Mercado, Regulação, Tributação e Meio Ambiente. São Paulo: Quartier Latin, 2011. p.447.
4 - WALD, Arnoldo. Da desnecessidade de pagamento prévio para caracterização da Cédula de Produto Rural. Revista Forense, Rio de Janeiro, ano 100, n. 374, p.9, jul./ago. 2004.
5 - PERIN JUNIOR, E; BURANELLO, R. Constituição Econômica, Política Agrícola e Sistema Privado de Financiamento do Agronegócio. In: BURANELLO, Renato Macedo; SOUZA, André Ricardo Passos de; PERIN JUNIOR, Ecio (Coord.). Direito do Agronegócio: Mercado, Regulação, Tributação e Meio Ambiente. São Paulo: Quartier Latin, 2011. p.58.
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Bibliografia:
BELLINI JUNIOR, L. C. Cédula de Crédito Bancário (CCB) e Instrumentos Típicos do Financiamento Agrícola. In: BURANELLO, Renato Macedo; SOUZA, André Ricardo Passos de; PERIN JUNIOR, Ecio (Coord.). Direito do Agronegócio: Mercado, Regulação, Tributação e Meio Ambiente. São Paulo: Quartier Latin, 2011. p.381-417.
BELLINI JUNIOR, L. C; WINTER, M. F. Regime Jurídico da Cédula de Produto Rural (CPR) e Alguns Aspectos Controversos. In: BURANELLO, Renato Macedo; SOUZA, André Ricardo Passos de; PERIN JUNIOR, Ecio (Coord.). Direito do Agronegócio: Mercado, Regulação, Tributação e Meio Ambiente. São Paulo: Quartier Latin, 2011. p.419-440.
BURANELLO, Renato M. Sistema Privado de Financiamento do Agronegócio: Regime Jurídico. 2. ed. São Paulo: Quartier Latin, 2011, p. 728.
BURANELLO, Renato M. Manual de Direito do Agronegócio. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 286.
COELHO, F. U. Títulos do Agronegócio. In: BURANELLO, Renato Macedo; SOUZA, André Ricardo Passos de; PERIN JUNIOR, Ecio (Coord.). Direito do Agronegócio: Mercado, Regulação, Tributação e Meio Ambiente. São Paulo: Quartier Latin, 2011. p. 365-380.
MAGNO, F. R. V. A Cédula de Produto Rural Como Instrumento de Hedge: Breve Análise da Evolução do Entendimento do Superior Tribunal de Justiça. Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais, São Paulo, v. 56, p. 13-24, abr./jun. 2012.
PERIN JUNIOR, E; BURANELLO, R. Constituição Econômica, Política Agrícola e Sistema Privado de Financiamento do Agronegócio. In: BURANELLO, Renato Macedo; SOUZA, André Ricardo Passos de; PERIN JUNIOR, Ecio (Coord.). Direito do Agronegócio: Mercado, Regulação, Tributação e Meio Ambiente. São Paulo: Quartier Latin, 2011. p.41-64.
RODRIGUES, R. M. Da Desnecessidade de Contraprestação para Validade da Cédula de Produto Rural. In: BURANELLO, Renato Macedo; SOUZA, André Ricardo Passos de; PERIN JUNIOR, Ecio (Coord.). Direito do Agronegócio: Mercado, Regulação, Tributação e Meio Ambiente. São Paulo: Quartier Latin, 2011. p.441-453.
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*Lucas Gonçalves Ruiz é colaborador do escritório Demarest Advogados.