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Arbitragem com o Poder Público no Brasil: Ondas evolutivas e prospecção

Passaremos a vivenciar uma nova onda, a qual se desenha com a efetiva especialidade dos litígios, especialização dos árbitros e até mesmo das câmaras.

15/9/2015

Considerando uma análise em perspectiva histórica, das oportunidades em que a Administração Pública teve contato com a arbitragem, é possível identificar ao menos três grandes momentos, que serão denominadas "ondas" da arbitragem com o Poder Público.

A primeira onda: caso Lage (STF) e reabertura democrática e econômica

A primeira onda contextualiza-se por eventos ocorridos previamente à Constituição de 1988, marcados pela representação do célebre "caso Lage"1, vendo-se nele uma postura positiva do STF quanto à aceitação e cabimento da arbitragem envolvendo o Poder Público. É certo que a relevância dada a esse caso, vista até como marco no estudo do tema, não pode deixar de lado o fato de que algumas outras arbitragens envolvendo o Poder Público sequer chegaram ao conhecimento público, embora se tenha notícia de que, em algum momento, realmente existiram.

Nesse período ainda, interessante perceber que a agenda de desenvolvimento vai se deslocando de um terreno exclusivamente econômico para ganhar espaço no campo jurídico, sobretudo por meio de arranjos regulatórios. Várias causas explicam este deslocamento, mas a principal delas decorreu da evolução da economia como ciência de mensuração de desenvolvimento.

A segunda onda: organismos multilaterais de financimento e legislação pró-arbitragem

A segunda onda passa a estar mais delineada a partir da década de 90, principalmente por força da tomada de empréstimos estrangeiros de organismos multilaterais de financiamento, principalmente diante de episódios de um país cuja economia não estava amadurecida o suficiente para viabilizar os grandes projetos de infraestrutura2 e que, portanto, dependia da tomada de empréstimo do capital estrangeiro por meio dos principais financiadores de projetos. Tais instituições, por sua vez, condicionavam o financiamento dos projetos à previsão de compromisso arbitral para resolução de eventuais litígios decorrentes destes contratos, como se percebeu com algumas posturas adotadas por organismos como FMI e Banco Mundial. O último deles, a propósito, ganhou destaque quando se visualizou sua transformação de banco financiador de infraestruturas, passando a ser um banco financiador de arranjos institucionais, o que fez com que a arbitragem alcançasse o status de gestão estratégica contratual.

Apesar de a pressão internacional ter influenciado a adoção da lei geral de arbitragem (lei 9.307/96) e a previsão da arbitragem nos setores regulados (TELECOM, petróleo e gás) ou nos serviços públicos (leis 8.987/95 e 11.079/04), ainda persistia a insegurança do gestor em sua adoção, não só em razão do posicionamento refratário e divergente dos órgãos de controle (como posicionamentos do próprio TCU3, que reconhecia a necessidade de autorização legal expressa), mas, sobretudo, pelas dúvidas com relação a quais matérias poderiam ou não estar submetidas à arbitragem, ou melhor, quais os litígios envolvendo o Poder Público poderiam ser resolvidos por esse meio de solução de conflitos.

Em meio a isso, o STJ buscou exercer papel importantíssimo para proporcionar um cenário mais seguro, especialmente na tentativa de reduzir a preocupação dos gestores públicos e ampliar a utilização da arbitragem nos contratos administrativos, pois procurou resguardar a validade e aplicabilidade das convenções arbitrais das quais eram parte a Administração Pública, conferindo o respaldo jurisprudencial necessário para tanto4.

A terceira onda da arbitragem: reforma da lei de arbitragem e a escolha pela arbitragem

Ato contínuo, uma terceira onda pode ser identificada pela ideia de escolha da Administração Pública, notabilizada pelo advento da lei 13.129/15, que reforma a lei de arbitragem e coloca em cena a abertura, até então incerta, conferida por autorização legal para que conflitos com o Poder Público sujeitem-se à arbitragem. Isso, pois, a partir da reforma empreendida, parece não restarem dúvidas de que a Administração Pública poderá submeter seus conflitos – atendidos os requisitos de arbitrabilidade objetiva e subjetiva – à arbitragem, o que sinaliza um estado de escolha, opção, por parte dela (v. §1º do artigo 1º).

A respeito dessa abertura e da escolha, é importante consignar que, ao contrário do que se poderia imaginar, importantes iniciativas já são adotadas para revelar a intenção do Poder Público aderir à cultura da arbitragem. Um bom exemplo disso está na atuação da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo, que vem trabalhado frequentemente com modelagens de cláusulas compromissórias, no intuito de reforçar a compliance contratual e tornar a relação com o particular mais estável.

Como forma de sintetizar todo esse panorama evolutivo, o quadro a seguir procura expressar as razões pelas quais se consegue enxergar três ondas da arbitragem com o Poder Público:

Onda

Período

Cenário

Pré-Constituição de 1988

Existência, mas incipiência e desinformação quanto às arbitragens com o Poder Público

Década de 90

Convenção arbitral surge como exigência dos organismos multilaterais para concessão de financiamentos.

Legislação geral disciplina a arbitragem, legislação setorial passa a prever a arbitragem em contratos administrativos, o STJ afirma a possibilidade da arbitragem com o Poder Público, mas os órgãos de controle ainda são refratários.

Reforma da Lei de Arbitragem

A reforma da Lei de arbitragem passa a criar um cenário de escolha para a Administração Pública eleger a arbitragem para a solução de conflitos.

A prospecção: a arbitragem como compensação dos riscos políticos e incertezas regulatórias do setor de infraestrutura pública

Independentemente das novas indagações sobre como a Administração Pública poderá lançar mão da arbitragem em seus contratos - matéria esta que não foi resolvida pela reforma da legislação - prospectivamente verifica-se que as peculiaridades que envolvem as instituições submetidas ao regime jurídico de direito público merecem maiores reflexões, ainda mais quando colocadas em xeque as premissas basilares da arbitragem, tais como a confidencialidade e a autonomia da vontade das partes.

Em meio a esse cenário, outro grande pilar que passa a se erguer é necessidade de, em uma maior medida, o critério da especialidade dos árbitros ser fator de estímulo da Administração Pública em reconhecer que a arbitragem é um meio adequado para a solução dos conflitos aos quais está envolvida. Isso se deve ao fato de que existem elementos típicos da arbitragem envolvendo Poder Público que não costumam surgir em outros tipos de litígios, como o dever de publicidade, o interesse de terceiros na solução do conflito (como poderia ser o MP e o Amicus Curiae), além das fiscalizações dos órgãos de controle.

Ademais disso, para a iniciativa privada, a arbitragem passa a representar importante mecanismo compensatório dos riscos políticos e de um ambiente de incertezas regulatórias, que hoje certamente influenciam negativamente o empreendedorismo voltado à geração de infraestrutura pública em nosso país.

Diante de tudo isso, é importante perceber que passaremos a vivenciar, de modo mais intenso, uma nova onda – a terceira –, a qual passa a se desenhar, agora, com a efetiva especialidade dos litígios, especialização dos árbitros e até mesmo das câmaras, não sendo conveniente, portanto, ignorar o conhecimento aprofundado do funcionamento do aparato estatal em todas as suas dimensões.

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1 STF - RE: 71467 GB, Relator: BILAC PINTO, Data de Julgamento: 14/11/1973, TRIBUNAL PLENO, Data de Publicação: DJ 15-02-1974.
2 FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. 32ª ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2003.
3 Acórdão TCU 2.145/2013, Plenário, Relator Min. Benjamin Zymler, julgado em 14/08/2013.
4 Cf., p. ex., STJ, 3ª T., REsp 904.813/PR, rel. Min. Nancy Andrighi, j. 20/10/2011, DJe 28/2/2012; MS 11.308/DF, Rel. Ministro LUIZ FUX, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 09/04/2008, DJe 19/05/2008; REsp 606.345/RS, Rel. Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, SEGUNDA TURMA, julgado em 17/05/2007, DJ 08/06/2007, p. 240; REsp 904.813/PR, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 20/10/2011, DJe 28/02/2012.

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*Gustavo Justino de Oliveira é advogado do escritório Justino de Oliveira Advogados. Professor doutor de direito administrativo da Faculdade de Direito da USP e árbitro especializado em Direito Público.

*Elie Pierre Eid é advogado do escritório Justino de Oliveira Advogados. Mestrando em Direito Processual Civil pela Faculdade De direito da USP.

*Caio Cesar Figueiroa é advogado do escritório Justino de Oliveira Advogados. Especialista em Direito Administrativo e Econômico pela Faculdade de Direito da FGV-SP.

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