Migalhas de Peso

Atos de auto gestão podem contrariar a lei?

Tomo a iniciativa de escrever este artigo em virtude da recente publicação de outro, pelo site “Migalhas”, da lavra do advogado e Juiz do Tribunal de Impostos e Taxas Coriolano Aurélio de Almeida Camargo Santos, com o título “Atos de Auto Gestão e Organização do Tribunal”. Referido artigo trata de tema atinente ao Direito Administrativo e Tributário, o qual coincidentemente de meus estudos visando ao Trabalho de Conclusão de Curso na graduação em Direito, o que atraiu minha atenção, visto enfocar o tema de modo divergente de minhas conclusões

27/3/2006


Atos de auto gestão podem contrariar a lei?


Adermir Ramos da Silva Filho*


Tomo a iniciativa de escrever este artigo em virtude da recente publicação de outro, pelo site “Migalhas”, da lavra do advogado e Juiz do Tribunal de Impostos e Taxas Coriolano Aurélio de Almeida Camargo Santos, com o título “Atos de Auto Gestão e Organização do Tribunal” (clique aqui).

Referido artigo trata de tema atinente ao Direito Administrativo e Tributário, o qual coincidentemente de meus estudos visando ao Trabalho de Conclusão de Curso na graduação em Direito, o que atraiu minha atenção, visto enfocar o tema de modo divergente de minhas conclusões. Por isso, li-o com interesse e curiosidade, em busca de elementos jurídicos que pudessem estabelecer a polêmica em níveis que obrigassem à reformulação de conceitos e evolução no meu conhecimento acerca da Ciência do Direito. Infelizmente, não os encontrei. O que verifiquei, na verdade, foram opiniões que em última instância oferecem real perigo ao Estado Democrático de Direito, que relativizam a Lei em nome de supostos principios que na verdade mais equivalem a fetiches que pervertem o Direito e o subordinam a interesses menores. Daí, a motivação para rebater os argumentos ali expostos.

O ponto fulcral que sustenta a argumentação do autor é aquele segundo o qual a Administração Pública tem soberania para auto-organizar-se e que por isso pode dispor da competência de seus órgãos da maneira que lhe aprouver, em prol de sua eficiência.

O autor chega ao ponto, no artigo, de tecer rol de princípios no qual a “celeridade processual” e a “distribuição de trabalhos entre profissionais de mesmo nível técnico” são elencados antes mesmo de “princípios constitucionais impositivos”, em verdadeira subversão da ordem jurídica, cujas conseqüências são muito maiores do que se possa imaginar.

Abre-se aqui um parêntese para situar o leitor acerca do tema que se tratou naquele artigo. A questão que levou o autor a tecer seus comentários pode parecer, à primeira vista, árida, mas encerra valiosas lições acerca do funcionamento da Administração Pública, além de conduzir-nos à reflexão acerca dos princípios regentes do Direito Administrativo e do Direito Tributário, além de tangenciar temas atinentes ao Processo Civil e aos direitos fundamentais do cidadão.

Trata-se das Unidades de Julgamento de Pequenos Débitos, órgão criado pela legislação estadual paulista (Lei 10.941/01) para julgar processos tributários nos quais a exigência fiscal seja menor do que 2.000 (duas mil) UFESPs. Assim está expressa, na Lei, a criação dessas unidades:

“Artigo 40 - O julgamento em primeira instância administrativa será efetuado em juízo singular, por servidores das classes de Julgador Tributário e de Agente Fiscal de Rendas lotados em órgãos subordinados a Delegacias Tributárias de Julgamento, da estrutura da Coordenadoria da Administração Tributária da Secretaria da Fazenda, observado o disposto nesta lei.

§ 1º - Em cada Delegacia Tributária de Julgamento haverá Unidade de Julgamento e Unidades de Julgamento de Pequenos Débitos.

§ 2º - A Unidade de Julgamento será instalada no município em que tiver sede a Delegacia Tributária de Julgamento.

§ 3º - As Unidades de Julgamento de Pequenos Débitos serão instaladas uma em cada município em que houver sede de Delegacia Regional Tributária.

§ 4º - As Unidades de Julgamento de Pequenos Débitos julgarão preferencialmente os processos nos quais o débito fiscal exigido tenha valor que não exceda o equivalente a 2.000 (duas mil) Unidades Fiscais do Estado de São Paulo - UFESPs, considerada, para esse fim, a soma dos valores correspondentes a imposto, multa, atualização monetária e juros de mora, devidos na data da lavratura do auto de infração.

§ 5º - Tendo em vista a utilização plena dos recursos humanos e no interesse da celeridade processual, o Coordenador da Administração Tributária poderá atribuir a órgão de julgamento de primeira instância competência para a prática de atos de sua alçada independentemente de circunscrição, por tempo determinado, prorrogável se necessário, hipótese em que os prazos correrão no órgão de julgamento da competência originária”.

A regulamentação interna da Lei foi dada pelo Decreto 46.674/02 e pelas Portarias CAT 39 de 10/5/2002, 31 de 30/4/2002, 81 de 25/11/2002, 62 de 10/7/2003 e 9 de 9/2/2004 Como se vê, os atos administrativos de conformação das competências e das atribuições das Unidades de Julgamento de Pequenos Débitos estabelecem determinação de natureza obrigatória ao servidor público, que deveria encaminhar os processos administrativos às Unidades de Julgamento ou às Unidades de Julgamento de Pequenos Débitos conforme o valor do crédito tributário exigido, podendo no entanto, em duas circunstâncias especialíssimas e reguladas, por ato motivado, modificar a competência originária:

1) conforme disposto no parágrafo 5o já citado, para outro órgão da mesma alçada, mas de outra circunscrição; e

2) para as Unidades de Julgamento, processos que preferencialmente seriam julgados pelas Unidades de Pequenos Débitos.

O texto legal, nesse ponto, é indiscutível. Ocorre que, eventualmente por interpretação extensiva desses atos normativos, começaram a ser distribuídos processos de valor maior do que 2.000 UFESPs para serem julgados pelas UJPDs, originando protestos dos contribuintes que se sentiram lesados por terem sidos julgados por órgãos incompetentes para esse fim.

Não é escopo deste artigo discutir a questão em si, que é apresentada ao leitor até esse ponto para que tome conhecimento do assunto que motivou a redação do texto criticado. Não se vai, aqui, advogar a competência ou a incompetência desses órgãos. O que se visa é analisar o texto que foi publicado, em função dos erros conceituais que encerra, motivo pelo qual se fecha o parêntese então aberto.

Na opinião do autor, “sob o prisma organizacional, a tese daqueles que propugnam prega a incompetência absoluta das UJPDs em razão do valor levaria a morosidade processual, o retardamento na obtenção de créditos tributários legítimos, acentuados de custos elevadíssimos do Estado para reapreciar matérias já por vezes, exaustivamente apreciada por julgador de escol”(sic). Para ele, essa “morosidade” “acarreta falha no sistema de arrecadação”, gerando “concorrência desleal” e levando o poder público “às barras do CADE” (sic).

Contrapondo-se a esses problemas, entende o autor que “é o próprio ato governamental de auto organização do poder executivo, determina nova ordem de preferência a UJPD de modo a tornar esta unidade mais produtiva. Neste sentido, em função da necessidade e utilidade, a UJPD, é obrigada a analisar processos fora da recomendação ou preferência inicial, uma vez que, processos, acima de duas mil UFESPs teriam preferência para serem apreciados”. (sic)

O fato da legislação expressamente referir-se a alçada parece atrapalhar tais objetivos, entendendo o autor que “não podemos interpretar o dispositivo de alçada, de modo a se constituir numa verdadeira ‘âncora’, capaz de ferir a autonomia e celeridade do processo administrativo e a soberania constitucional dos estados membros, a ponto de perderem a total capacidade de formar atos de organização interna que impulsionem o célere julgamento dos processos”. E, mais adiante, afirma: “nem mesmo o Poder Judiciário poderia interferir nos atos de auto organização interna de um tribunal administrativo fazendário, ou órgão judicante de primeiro grau que não gerem prejuízo ao Contribuinte”.

A confusão conceitual aqui trazida é evidente. Em primeiro lugar, parece o autor desconhecer o próprio texto constitucional, que dentre os direitos e garantias fundamentais estabelece que “A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito” (CF art 5o, XXXV), que fundamenta a apreciação pela justiça contra qualquer ato do poder público que possa constituir ameaça a direito do cidadão – e o que a lei determina a título de competência constitui direito do cidadão, que deve ser julgado por quem tem investidura para tanto.

Em segundo lugar, estabelece que a Administração Pública tem o poder – e o dever – de auto-organizar-se, o que é indiscutível, mas parece esquecer-se que esse poder-dever não permite qualquer arbitrariedade. Na verdade, a auto organização da Administração é um conjunto de atos que não escapa de se submeter aos princípios da legalidade, motivação, finalidade e interesse público (art. 37, CF), princípios esses que, ao contrário do que advoga o autor, não estão em posição hierárquica inferior à “celeridade processual”. Além do mais, os próprios atos de auto organização devem obedecer ao regramento legal, devendo ser estabelecidos por meio de leis, decretos, portarias, resoluções, regulamentos, dentre outros específicos. Dito de outro modo: a Administração Pública pode e deve organizar-se, mas deve fazê-lo obedecendo à forma prescrita em lei. Do contrário, instaura-se o arbítrio e viola-se o princípio da legalidade. Além do mais, deve expor os motivos de seus atos, quando discricionários. Acontece que a distribuição de processos não é ato discricionário à disposição do agente público. É ato que se encontra regulamentado, e portanto, vincula o servidor à sua obediência.

A auto organização da Administração Pública consiste exatamente nesse ato regulamentador, que vem a ser o Decreto 46.674/02. Os atos governamentais de auto gestão, portanto, não são aqueles que quer fazer crer o autor em seu texto.

Quando um servidor público destina um processo para este ou aquele órgão, está executando um ato administrativo que deve estar respaldado na fundamentação legal. Se tem interesse em apressar o processo, aplicando o princípio da celeridade, deve também obedecer aos limites que a lei impõe à aplicação desse princípio. Caso contrário, não temos celeridade: temos açodamento e arbitrariedade.

Em última palavra, violação ao direito. Portanto, quando diz o autor que o contribuinte não está sendo prejudicado, faz afirmação subjetiva, juízo de valor injustificado e atribuição indevida. O fato de um agente ter a mesma capacitação técnica (competência em sentido vulgar) não o autoriza à realização de ato para o qual não está investido (competência em sentido técnico-jurídico). Aliás, a competência não pertence ao agente, mas sim ao órgão, e sua distribuição não é fruto de vontade de agentes, mas decorre da Lei. E aqui verifica-se mais uma confusão conceitual que não pode deixar de ser apontada. Para o autor, “o ato governamental de auto organização determina nova ordem de preferência” ao passo que a lei recomenda... em se tratando de Direito Administrativo, nada mais impróprio.

Qualquer graduando em direito sabe que, se para o cidadão “pode-se fazer tudo que não seja vedado em lei”, para o agente público a máxima inverte-se para “nada se pode fazer que não esteja previsto em lei”. Portanto, a lei, quando se dirige ao agente público, não tece “recomendações”, mas sim ordens. Ao mesmo tempo, o “ato governamental de auto organização” não é um ato qualquer, uma decisão tomada ao sabor das circunstâncias, mas sim um ato de aplicação da norma organizativa ao fato concreto que se apresenta, ato este que deve obedecer fielmente à forma prescrita em lei. No caso em tela, das UJPDs, foi tudo que não se fez. E ao não se fazer, para afastar ameaça ao crédito fiscal em virtude de uma eventual morosidade, criou-se uma ameaça ainda maior ao interesse público. Afinal, o custo da sucumbência judicial e do eventual perecimento do crédito constitui um risco infinitamente maior do que qualquer atraso na sua constituição possa proporcionar.

Em terceiro lugar, o texto confunde a natureza jurídica dos atos administrativos, não distinguindo atos vinculados de atos discricionários, e confunde também esses últimos com atos de vontade. O procedimento administrativo é vinculado, ou seja, obrigatório, a não ser que a lei disponha em contrário. A discricionariedade, na Lei 10.941/01, está prevista, quando se fala que “no interesse da celeridade processual o coordenador da administração tributária poderá...”, proporcionando a este agente a condição de escolher, mediante juízo de conveniência e oportunidade, a melhor ocasião para a execução – ou não – do ato de redistribuir os processos.

Mas essa permissão não dá liberdade para distribuir os processos a seu bel prazer, e quando aquele agente usa de sua faculdade, o faz determinando normas – decretos regulamentares, portarias - para que outros agentes públicos a ele subordinados, vinculadamente, procedam a distribuição em conformidade com a norma. Portanto, não há qualquer espontaneidade nem se delegam poderes decisórios a qualquer outro funcionário público, devendo, todos eles, agir de acordo com o determinado por ato de quem é competente para exercê-lo.

Em suma, ato discricionário não é ato espontâneo, nem ocasional. É ato ao qual a lei confere ao agente a possibilidade de julgar a conveniência e oportunidade de exercê-lo. De se lembrar, por fim, que a função do tribunal administrativo não é a de ser parte do sistema de arrecadação, mas sim a de controlar atos do poder público de modo a conferir certeza, segurança e liquidez ao título executivo representante do crédito tributário.

A missão do Tribunal de Impostos e Taxas corresponde ao direito constitucional da ampla defesa contra atos da administração, evitando a arbitrariedade e servindo de controle de qualidade do lançamento tributário. Assim, o tribunal não arrecada, mas sim serve ao cidadão, garantindo seus direitos, e à Administração Pública, corrigindo seus atos.

Mas o próprio Processo Administrativo Tributário é um conjunto de atos administrativos que devem obedecer à forma prescrita em lei, sob pena de invalidade – a qual é muito mais prejudicial aos interesses fazendários do que qualquer demora. Princípios não são valores absolutos. São guias para avaliação dos atos jurídico administrativos, em sentido amplo que enquadra qualquer ato público, como sentenças e decisões administrativas. Por isso mesmo, o direito freqüentemente se faz conhecer diante do choque de princípios que obriga o exegeta a ponderá-los, para aplicar a norma do modo mais condizente com a justiça.

A superestimação de um princípio em detrimento de outros, como se faz aqui com a celeridade, é freqüentemente fonte de atos arbitrários, até mesmo em desacordo com a lei. Além disso, os princípios dirigem-se principalmente ao legislador, para que este os observe na produção normativa – o que, diga-se de passagem, aconteceu em relação à Lei introdutora do Processo Administrativo Tributário paulista, tanto é que o princípio da celeridade foi contemplado no parágrafo 5o do artigo 40 acima citado.

A responsabilidade acometida aos servidores públicos é muito grande para ser tratada com o açodamento que se vê. Ao definir questão de enorme complexidade como essa de modo tão pouco fundamentado, o administrador público expõe o Fisco e, em última análise, a própria população, a perigo cujas conseqüências podem ser nefastas.
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*Psicólogo, graduando em direito






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