Migalhas de Peso

A arbitragem no setor de infraestrutura portuária e as jabuticabas

O Decreto consolida uma espécie de arbitragem de segunda categoria para o setor portuário.

11/8/2015

1. Com o intuito de desenvolver a infraestrutura portuária, foi editada a Lei 12.815/2013, que trata da exploração de portos e instalações portuárias pela União. O parágrafo 1º do art. 62 da referida Lei estipulou que para dirimir litígios relativos a débitos de tarifas portuárias e outras obrigações financeiras perante a administração do porto e a Agência Nacional de Transportes Aquaviários, poderá ser utilizada a arbitragem, nos termos da Lei 9.307/96.

2. O estímulo para a utilização da arbitragem parece natural e adequado para o desenvolvimento da atividade de infraestrutura, na medida em que este método de solução de controvérsias tende a entregar a solução de litígios especializados a um corpo de julgadores (escolhido pelos próprios litigantes) que entenda deste tipo específico de conflito e que tenha a habilidade e conhecimento técnico para melhor decidir. Em suma, qualidade e rapidez para solucionar litígios é fator que pode intensificar a participação dos particulares em licitações e concessões. Até aí, a iniciativa do legislador é louvável.

3. A surpresa, porém, veio dois anos depois da edição da Lei 12.815/2013: a Presidente da República, inusitadamente, resolveu regulamentar o art. 62 da Lei, editando o Decreto 8.465/2015, publicado poucos dias depois da promulgação da Lei de Reforma da Arbitragem (Lei 13.129/2015). Criou-se então uma espécie de arbitragem de segunda classe para atender os litígios ligados ao setor portuário, iniciativa infeliz e – desconfio – inconstitucional.

4. A iniciativa governamental é estranha e atécnica, mas creio que possa ser explicada: durante a tramitação da reforma da lei de arbitragem, houve tentativa de emenda, na Câmara dos Deputados, para que constasse do art. 1º, parágrafo 1º da Lei de Arbitragem que a Administração Pública (direta e indireta) pudesse submeter litígios relativos a direitos patrimoniais à arbitragem, "desde que previsto no edital ou nos contratos da administração, nos termos do regulamento". Esta tentativa de impor uma regulamentação à arbitragem em que fosse envolvida a Administração Pública soou despropositada, enfrentando oposição ferrenha da comunidade arbitral brasileira, que não queria permitir que o governo de plantão pudesse arruinar a experiência arbitral editando regulamentos, portarias ou decretos que estabelecessem desnecessárias diferenças entre a arbitragem disciplinada na Lei 9.307/96 (com as atualizações aportadas pela Lei 13.129/2015) e outras arbitragens "reguladas", que certamente atenderiam setores do governo ou interesses momentâneos, criando diferenciações inconvenientes para o desenvolvimento do instituto no Brasil.

5. O Senado Federal rejeitou a proposta da Câmara dos Deputados, de modo que o art. 1º, parágrafo 1º da Lei 9.307/96 (com a redação que lhe deu a Lei 13.129/2015) determinou simplesmente que a Administração Pública, direta ou indireta, poderia submeter-se à arbitragem. Redação curta, direta e adequada.

6. Ao que parece, o governo ficou vencido, mas não convencido: duas semanas depois da promulgação da Lei 13.129/2015, a Presidente da República edita um Decreto cujo objetivo seria regulamentar o parágrafo 1º do art. 62 da Lei 12.815/2013. Mas quem lê o Decreto entende perfeitamente que o diploma faz bem mais que isso.

7. Com efeito, o parágrafo 1º citado trata da possibilidade de instauração de arbitragem para dirimir litígios relativos a inadimplemento no que se refere a tarifas portuárias ou outras obrigações financeiras perante a administração do porto e a Agência Nacional de Transportes Aquaviários. A rigor, a lei que tratou da infraestrutura portuária não precisava autorizar a arbitragem para aqueles litígios (nem para qualquer outro litígio relativo à infraestrutura portuária): aplica-se à Lei 12.815/2013 a regra geral, que nunca proibiu a Administração Pública (direta ou indireta) de estipular cláusulas compromissórias ou compromissos arbitrais. Entendo o art. 62, parágr. 1º, portanto, apenas como um estimulador ao desenvolvimento da arbitragem no setor portuário, sem que tal dispositivo signifique uma limitação para as questões arbitráveis ligadas aos contratos de concessão, autorização, arrendamento, fornecimento e serviços portuários em geral.

8. Em outros termos, a arbitragem no setor portuário não dependia – para sua implementação – de qualquer regulamentação.

9. O governo, entretanto, usou técnica totalmente esdrúxula – e, repito, inconstitucional – para criar uma arbitragem diferente para o setor portuário: enganchando (de forma arbitrária) no parágrafo em questão um regulamento desnecessário, criou um decreto tecnicamente torto. Explico: o Decreto Presidencial afirma que regulamentará o parágrafo 1º do art. 62 (que trata de disputas tarifárias e outras obrigações financeiras), mas avança em outros litígios que nenhuma ligação têm com tarifas e obrigações financeiras: basta ler o art. 2º do malfadado texto para perceber que o regulamento impõe uma arbitragem diferente para litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis que dizem respeito inadimplência de obrigações contratuais por qualquer das parte (não apenas financeiras!), bem como questões ligadas à recomposição do equilíbrio econômico financeiros dos contratos e ainda "outras questões" relacionadas ao inadimplemento no recolhimento de tarifas portuárias ou "outras obrigações financeiras". Ao fim e ao cabo, o Decreto afirma que os contratos de concessão, arrendamento e autorização ligados ao setor portuário podem conter cláusulas compromissórias, desde que sejam observadas as excêntricas disposições impostas pela Presidência da República.

10. Em substância, o Decreto consolida uma espécie de arbitragem de segunda categoria para o setor portuário, impondo algumas modificações importantes em relação ao padrão estabelecido pela Lei de Arbitragem, o que tenderá a manter os operadores de sobreaviso (e em atitude de justificada desconfiança).

11. Para provar meu ponto de vista (ou seja, que se está criando uma arbitragem diferente e de qualidade inferior para o setor portuário), selecionei algumas disposições infelizes introduzidas pelo Decreto (são muitas as esquisitices, de modo que vou me deter a apenas algumas delas): a) em caso de o valor econômico do litígio superar a casa dos 20 milhões de reais, a causa deve ser dirimida por um colégio de no mínimo 3 árbitros; b) o prazo de defesa deve ser no mínimo de 45 dias; c) as despesas com a arbitragem devem ser adiantadas pelo contratado; d) não se aplica o sistema de sucumbência quanto a honorários advocatícios; e) se a arbitragem for institucional, a entidade deverá ter sede no Brasil; f) se o árbitro for estrangeiro, deve ter visto que autorize o exercício da atividade no Brasil; e g) os árbitros devem ser escolhidos de comum acordo entre as partes.

12. Começo meu ataque ao infausto Decreto mostrando a inconveniência de estipular um quantum que norteie a composição colegial ou monocrática do órgão julgador: a arbitragem – sabem todos (menos quem redigiu o Decreto) – é fruto da vontade dos contratantes. Trata-se de mecanismo de solução de litígios que leva em conta o desejo dos contendentes de escolher um modo diferente daquele padronizado pelo Estado para a resolução de conflitos, sejam eles eventuais (futuros e incertos, com previsão no contrato de uma cláusula compromissória), sejam eles atuais e concretos (com a celebração de um compromisso arbitral). Deste modo, cabe às partes escolher o modo de composição do órgão julgador, que pode ser singular ou colegiado, mantendo-se apenas a exigência de número ímpar de componentes. Qual a importância do valor da causa para a composição do órgão julgador? Haverá certamente causas de valor maior do que 20 milhões de reais que sejam de grande simplicidade, enquanto poderão ocorrer conflitos de valor menor, que ensejem maiores dificuldades técnicas. Cabe às partes – e apenas a elas – a formatação do órgão julgador. E sabendo-se que a União (direta ou indiretamente) participará destas demandas, cumpre aos seus representantes, ao prepararem os editais de licitação (que conterão a previsão para a realização de arbitragem), ao redigirem as cláusulas compromissórias ou ao celebrarem os compromissos arbitrais, escolher – de acordo com a hipótese concreta – qual a melhor composição do tribunal arbitral. Não há necessidade de imposição regulamentar, que serve mais para engessar do que para proteger um resultado confiável e adequado do processo arbitral.

13. Regulamentar o procedimento é péssima política legislativa: para que serve a determinação de que o prazo para a defesa seja de pelo menos 45 dias? As partes devem escolher o procedimento que melhor lhes aprouver, e que garanta – no caso específico – o direito das partes de explorar de modo conveniente todos os seus argumentos. O Decreto, neste ponto, parece um tanto bisonho: advogados que atuam como árbitros sabem que em muitas oportunidades (rectius, quase sempre!) as peças mais importantes do processo arbitral são a réplica e a tréplica, ou seja, as petições em que o demandante ataca a defesa do demandado e a peça em que o demandado responde o ataque. É normalmente nestas peças que as partes concentram seus melhores argumentos, explorando as evidências que já possuem acerca dos temas que os julgadores (ou o julgador) devem dirimir. E sobre as réplicas e tréplicas o Decreto não disse nada. Melhor seria se tivesse calado sobre tudo o que diz respeito ao procedimento, confiando na expertise dos operadores do processo (advogados da União, de suas autarquias, empresas públicas, fundações e advogados dos contratados), que saberão estabelecer o melhor critério – para o caso concreto – em termos de prazos. É realmente espantoso que no exato instante em que o Novo Código de Processo Civil trata, para o processo estatal, dos negócios jurídicos processuais (que permitem que os advogados estabeleçam a forma de desenvolvimento do processo) tente um Decreto trilhar o caminho inverso, tolhendo a possibilidade dos advogados de criarem o procedimento ideal para o caso concreto, com a imposição de prazos mínimos que podem ser inconvenientes para este ou para aquele procedimento.

14. O adiantamento das despesas com o processo arbitral pelo contratado é dispositivo que beira a indecência: quer o Decreto guerreado que, havendo arbitragem (mesmo que seja iniciada pelo Poder Público), as despesas relativas sejam antecipadas pela parte privada (o contratado). Se for derrotada a União (ou suas autarquias), os valores antecipados pela parte privada serão devolvidos num prazo sempre confortável e incerto, expedindo-se o competente ofício requisitório (art. 12).

15. O Decreto quis também impedir que os árbitros utilizassem o critério de sucumbência para atribuição de verba honorária a favor da parte vencedora: de acordo com o inc. IX do art. 3º, cada parte deverá necessariamente arcar com os honorários de seu próprio advogado (e assistentes técnicos). Mais uma vez, a intervenção legislativa é inadequada: seria mais razoável que as partes decidissem que critério preferem ver aplicado para o reestabelecimento do equilíbrio da situação litigiosa que o tribunal arbitral deve solucionar. Parece injusto impedir que a parte vencedora, especialmente se for o particular (que não conta com serviços organizados de advogados), tenha o ônus de pagar (sem direito a alguma reposição) os honorários de seu advogado sempre que tiver que instaurar um procedimento contra a União por conta de conflito que pode até mesmo ser causado por ela (o que, aliás, é muito comum entre nós). Em suma, trata-se de inimaginável injustiça e desequilíbrio processual: uma coisa é deixar que as partes estabeleçam o critério que quiserem para as verbas advocatícias; outra, bem diferente, é impor à parte que tenha razão que arque com o custo do exercício de seus direitos. Existe aqui um verdadeiro estímulo à União para que crie todo o tipo de resistência (indevida) aos pleitos (legítimos) do contratado. Afinal, o que a União terá a perder?

16. A arbitragem pode ser ad hoc ou institucional: será ad hoc quando as partes decidirem criar uma estrutura apenas e tão somente para um caso concreto, não havendo órgão responsável pela administração do procedimento (o que será feito pelo próprio árbitro ou pelo tribunal arbitral, com a eventual ajuda de um secretário); será institucional quando as partes escolherem uma entidade pré-constituída, com um regulamento próprio (e eventualmente com instalações próprias) para organizar o procedimento. O Decreto, de modo aleatório e sem qualquer explicação, dá preferência à arbitragem institucional (art. 4º, parágr. 1º), mas determina que a instituição escolhida, entre outros predicados, tenha que ter sede no Brasil. Isso exclui, desde logo, a intervenção de entidade de longa tradição e experiência em arbitragens envolvendo órgãos públicos, como a CCI (Câmara de Comércio Internacional, com escritório central em Paris). Estabeleceu-se assim uma reserva de mercado (injustificável), secundada de outra exigência (preocupante), qual seja, a necessidade de que o árbitro estrangeiro tenha visto para o exercício da atividade no Brasil. Francamente, não creio que os eventuais árbitros estrangeiros consigam a curiosa autorização das autoridades imigratórias, que não parece ser um visto de trabalho (se for, sua obtenção inviabilizará a assunção do encargo no Brasil, pois todos conhecemos a proverbial dificuldade burocrática para a obtenção da permissão). Considerando que o árbitro não exerce uma profissão (de árbitro), mas sim uma função, não vejo sentido na exigência de visto (a não ser mais uma reprovável reserva de mercado, que só prejudicará a reputação já periclitante de nosso país no concerto das nações).

17. O coroamento de todas estas exigências exóticas do Decreto Presidencial fica por conta da afirmação, contida no parágrafo 3º do art. 3º, de que os árbitros devem ser escolhidos de comum acordo entre as partes. Dito de outro modo, parece que o regulamento exige que todos os árbitros sejam escolhidos em conjunto pelas partes. Provavelmente isso nunca ocorrerá. É da natureza da arbitragem que as partes possam se envolver da formação do tribunal arbitral, o que revela uma verdadeira participação delas na administração da justiça. Mas é natural que cada parte escolha o árbitro que quiser, respeitadas as restrições previstas em lei (imparcialidade, por exemplo) e no regulamento que escolherem (se a arbitragem for institucional). Não seria natural que fossem obrigadas a negociar para conseguir, à unanimidade, o apontamento de um colégio de três julgadores, por exemplo. Se Nelson Rodrigues pudesse ter contribuído para a redação do Decreto, certamente o dispositivo não teria sido incorporado: afinal, toda unanimidade é burra!

18. Estes apontamentos que fiz, a voo de pássaro, servem apenas para mostrar algumas (são muitas!) das incongruências contidas no Decreto 8.465/2015, que presta grave desserviço à nação. A reestruturação da infraestrutura portuária, com o objetivo claro de melhorar a exploração dos portos organizados e das instalações portuárias, procurou atrair investimentos e estimular a participação privada na modernização de uma estrutura arcaica. A atração de investimentos – com o incentivo da participação privada em concessões, arrendamentos e na exploração de instalações portuárias mediante autorização – não poderia tropeçar numa tentativa mal disfarçada de fazer com que a solução de litígios envolvendo a União (e suas entidades) se tornasse engessada, desequilibrada e pouco funcional. O regulamento em questão é simplesmente assustador, mostrando que a poderosa União poderá furtar-se impunemente ao cumprimento dos contratos que vier a firmar, repetindo o modelo de comportamento que levou ao colapso do sistema judiciário.

19. O título deste ensaio, em conclusão, é uma injustiça para com as doces e saborosas jabuticabas, produto genuinamente brasileiro (dizem!). Considerando que a arbitragem desenvolveu-se muito bem em nosso país nos últimos 20 anos, não convém reinventar a roda. Melhor seria que o Decreto fosse imediatamente revogado, ficando reservado nosso exotismo às frutas, não às leis.

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*Carlos Alberto Carmona é Professor Doutor do Departamento de Direito Processual da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e advogado de Marques Rosado, Toledo Cesar & Carmona Advogados.

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