Só quem vive no mundo da lua (Iiteral ou figuradamente) não sabe que a economia brasileira está pior do que a peste negra ao tempo da Idade Média. A crise tem contaminado todo mundo num sopro, de empregados a patrões; de donas de casa a estudantes; de ricos a remediados; de banqueiros a bancários; de fabricantes de carro a motoristas; e por aí vai.
O nível de endividamento empresarial e pessoal ultrapassa a cada dia os níveis máximos históricos e o fundo do poço é mais profundo e avassalador do que um buraco negro no espaço. Nunca se deveu tanto a tanta gente. E trabalho não se acha de forma alguma em lugar algum. Só o “Boca”, famoso personagem do Veríssimo, não está preocupado. Ao menos enquanto o pai da namorada ainda tiver alguma grana para sustentá-lo.
Santa Edwiges, protetora dos endividados já anda tão tonta com tantos pedidos de salvamento que precisou instalar um call center nas regiões celestiais, de forma a que possa atender os pedintes. A aquela frasesinha “você será atendido em poucos minutos” já virou horas.
Soluções, há soluções? Claro! Cortem os endividados seus gastos supérfluos (tudo o que você não precisa para simplesmente sobreviver) e pague somente o absolutamente necessário. Ao menos no verão dá para viver vestido de tanga e comer umas miseras calorias por dia, o suficiente para emagrecer até mostrar as costelas.
Mas esperem! Nosso solerte governo encontrou uma solução maravilhosa. É “governo sapiens”! No tempo de Machado de Assis a classe privilegiada ia toda festiva aos bailes. “E tome polca”, se dizia. Era o ritmo do momento. Vem agora o nosso governo e em ato salvador e nos convida a tomar mais dívidas, e cobradas direto da fonte, sem intermediário que possa interferir no recebimento do que será devido.
Ora, pois, na data de anteontem (dia 13, será coincidência?), o presidente em exercício nos brinda com a MP 681/15, que permite o endividamento contratual do empregado CLT até 35% (isso mesmo, trinta e cinco por cento) sendo que cinco por cento disto será destinado exclusivamente para a amortização de despesas contraídas por meio de cartão de crédito.
Assim, além de financiamento bancário, do arrendamento mercantil (aquele seu carrinho que está lhe custando os olhos da cara), agora você, minha querida vítima, tem mais cinco por cento de limite para cobrir o seu cartão de crédito.
O cartão de crédito foi uma das melhores invenções do século passado. Me parece que o primeiro deles foi o Diners, lançado e utilizado inicialmente nos Estados Unidos da América apenas para o pagamento de contas em restaurantes. Mas ele generalizou-se e evoluiu e hoje está na carteira ou na bolsa de praticamente todo mundo. De outro lado também essa oitava maravilha frequentemente se transforma em uma cobra coral que se solta do seu receptáculo e pica o peito do dono levando-o a uma morte mais ou menos longa e muito dolorosa. É só deixar de pagar uma futura. Esta ocorrência será seguida de outra igual no próximo mês e o pobre do devedor vira uma bola de neve que desce o Everest mais depressa do que a velocidade da luz, esborrachando-se o incauto inadimplente lá em baixo. A via crucis que começa por uma cartinha não muito educada do banco termina nos cadastros de inadimplentes e aí, adeus vida inteligente na terra. E a culpa não é dele que, que quando assume uma dívida somente pensa (e nem tanto assim) se a prestação cabe no seu bolso.
Mas, terá pensado o governo, a economia precisa gira e asim é preciso injetar mais dinheiro no mercado. Os industriais têm que continuar produzindo; os comerciantes que continuar vendendo; e os consumidores têm de continuar comprando. É a maravilha do moto perpétuo que somente passa pela cabeça de gregos e brasilianos.
O art. 1º da pérola produzida pelo governo diz que essa operação será contratada de forma irrevogável e irretratável, mediante desconto em folha da remuneração disponível do devedor. O que é esta remuneração disponível, o líquido que ele recebe na sua conta quando do pagamento do seu salário? E como funcionará a hierarquia? Pelo visto, no primeiro lugar da fila estará a dívida relativa ao cartão de crédito, depois o resto. E se a tal da dívida continuar rolando como sói acontecer, o trabalhador será dela um escravo eterno, pois é irrevogável e irretratável.
E preste atenção, caro candidato a esse suicídio “voluntário”, as taxas são livremente estabelecidas pelo carrasco fornecedor do vil metal, e sabemos que elas no Brasil são contadas entre as mais altas do mundo, talvez perdendo agora para a Venezuela que, como sabemos, não é um bom exemplo.
A “vítima” tem que ser empregado CLT (pois a fonte da cobrança está em lugar bem certo e sabido) e o empregador que tome cuidado porque eventualmente ele poderá ser responsabilizado pela dívida se o repasse ao credor deixar de ser feito por sua falha ou culpa (falha é uma forma de culpa, caro legislador).
A cama está feita e se sobre ela está uma espada presa por um fio de linha que pode romper e lhe cortar a cabeça, a culpa é toda sua, senhor consumidor desenfreado.
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*Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa é professor de Direito Comercial da USP e consultor de Mattos Muriel Kestener Advogados.