A lei 11.343/06, mais comumente conhecida como a "lei de tóxicos", tece importante procedimento processual e concomitante aos artigos 125 a 144 do CPP, ligando a atividade do juiz, o Ministério Público e a representação da autoridade policial, cada um na sua competência.
Diz o art. 60, da lei 11.343/06:
"Art. 60. O juiz, de ofício, a requerimento do Ministério Público ou mediante representação da autoridade de polícia judiciária, ouvido o Ministério Público, havendo indícios suficientes, poderá decretar, no curso do inquérito ou da ação penal, a apreensão e outras medidas assecuratórias relacionadas aos bens móveis e imóveis ou valores consistentes em produtos dos crimes previstos nesta Lei, ou que constituam proveito auferido com sua prática, procedendo-se na forma dos arts. 125 a 144 do decreto-lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 - Código de Processo Penal."
Tem-se assim, um importante instrumento legal conferido ao Estado para a sua satisfação quanto à apreensão de bens (móveis ou imóveis) e de valor (dinheiro).
Porém, tem nos chamado a atenção as práticas utilizadas pelos Delegados de Polícia na apreensão de bens e valores fruto da aplicação da lei de tóxicos. Alguns casos que temos conhecimento são flagrantemente ilegais por contrariarem tanto a lei processual quanto algumas disposições dos artigos 60 a 64, senão todas, da lei de tóxicos. Vejamos dois casos reais que recentemente atuamos:
1º caso real – O agente foi surpreendido em batida policial portando pequena quantidade de entorpecente. Alegando uso e consumo, a autoridade policial deu voz de prisão em flagrante ao agente e o conduziu ao distrito policial. Com os procedimentos de praxe, a autoridade policial tomou o depoimento do agente, efetuando a apreensão da droga bem como de seu veículo, entendendo que o mesmo estava sendo utilizado para prática ilícita, transporte de substâncias consideradas a luz da lei, ilegais.
Pois bem. Recentemente o TJ/SP, em parceria com o CNJ e a Secretaria de Justiça, editou provimento 3/15, que determina aos magistrados do Estado de São Paulo a realização de “audiências de custódia” para que o preso em flagrante seja ouvido em Juízo em até 24h da ocorrência, devendo o magistrado, neste ato, e na presença do MP e de um defensor, decidir pela conversão da prisão em flagrante em prisão preventiva, pela imposição de medidas cautelares diversas da prisão ou pela concessão da liberdade provisória.
Convertida a prisão em flagrante em preventiva e inadmitida fiança a luz do art. 44, da lei 11.343/06, o agente fora detido. Os bens permaneceram de posse da autoridade policial que efetuou a apreensão.
Sucede, entretanto, que o agente conseguiu fazer prova de que o bem apreendido, no caso em tela, seu veículo, tinha origem lícita e fora devidamente registrado em seu patrimônio, conforme sua DIRPF e comprovante de renda. Instado a liberação do veículo junto a autoridade policial, ainda sem representação ao juiz, a autoridade negou a restituição. É o fato.
2º caso real – O agente também fora surpreendido portando substâncias químicas de uso restrito em veiculo de propriedade de terceiro. Com a voz de prisão, foi conduzido ao distrito policial para as averiguações e depoimentos de praxe, lá permanecendo detido. Por conta de audiência de custódia ocorrida perante o Poder Judiciário, tem-se a prisão em flagrante convertida em preventiva, o agente fora detido e encaminhado ao Centro de Detenção Provisória. O veículo de terceiro permaneceu apreendido no Distrito Policial, conforme auto de apreensão expedido. Até o momento não houve representação da autoridade policial.
Feita a prova de que o veículo apreendido é de terceiro e foi adquirido através de recursos lícitos e com origem devidamente comprovada, a autoridade policial, também sem representação ao juiz – o que já configura ilegalidade por afronta ao parágrafo segundo do art. 60, da lei 11.343/06 -, permanece com o bem apreendido. De igual turno, nada mais ilegal.
Ora, a lei 11.343/06 bem como os artigos 125 a 144 do CPP são claríssimos quanto aos procedimentos para a apreensão e gozo de produto apreendido em fato ilícito.
Em ambos os casos (reais, diga-se de passagem), observamos a mesma conduta da autoridade policial – apreender simplesmente o bem antes sequer de haver representação ao juiz, conforme obrigação constante do art. 60, acima transcrito. Não há maior ilegalidade.
Ora, cabe apenas ao juiz, de ofício ou a requerimento do Ministério Público ou mesmo por representação da autoridade policial, decidir pela apreensão ou não de bens e valores. Não há na lei adjetiva tampouco na extravagante nenhuma disposição que deixe ao alvedrio da autoridade policial decidir, sozinha, e a sua discricionariedade, o destino do produto da apreensão policial.
Chamamos a atenção daqueles que comungam e respeitam o devido processo legal, amiúde os profissionais do direito, que tais práticas devem ser repelidas pela defesa dos acusados ab initio, quer impetrando um Mandado de Segurança ou levando ao conhecimento do juiz a discricionariedade atacada. Ora, a própria legislação em seu parágrafo segundo do art. 60 determina obrigação legal do juiz liberar o bem apreendido quando o seu proprietário ou a quem possa interessar em sua posse comprovar, com meios cabais a origem licita do produto. Entendemos mais. Não compete discricionariedade ao juiz decidir pela liberação ou não. É seu dever liberar o produto apreendido se houver provas cabais da origem lícita. A lei foi clara e assim diz em todos os seus termos: § 2º. Provada a origem lícita do produto, bem ou valor, o juiz decidirá pela sua liberação.
Outra ilegalidade cometida pela autoridade policial tem a ver com a simples inércia em representar em juízo a apreensão de produto. De fora a parte da prevaricação da autoridade policial, é certo que tal fato caracteriza exercício arbitrário das próprias razões, ou até mesmo abuso de autoridade. Sem falar na infringência ao inciso XXII, do art. 5º, da Carta Máxima da República que diz: "é garantido o direito de propriedade".
Tem-se assim, ao remetermos ao comando dos artigos 125 a 144 do CPP, e os artigos 60 a 64, da lei 11.343/06, o suficiente para que, cumprido o devido processo legal, possa o infrator fazer valer seu direito inalienável a comprovar que tais produtos apreendidos possuem origem lícita, sendo todas as provas admitidas em direito para o deslinde da questão.
Em conclusão, age mal a autoridade policial que, sem representação ao juiz, apreenda os bens ou valores e os levam in continenti utilização de seus pares ou mesmo da sua instituição, sem comunicação prévia ao juiz, o qual deverá analisar o caso concreto e decidir, com as provas em mãos o destino ou uso do produto apreendido.
Levamos ao conhecimento dos profissionais do direito que tal fato, além de ilegal transmite uma sensação de imoralidade anunciada, na medida em que há legislação própria que tece ás minúcias os procedimentos legais para a sua apreensão e gozo das coisas provenientes de apreensão policial. A lei excepciona um fato que obsta a apreensão: comprovação da origem. E essa só se dá através de um processo que ao final reúna condições para uma decisão judicial, séria, coerente e, acima de tudo legal.
Basta de ilegalidades!
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*Taise Galvani Rayes é advogada do escritório Rayes Advogados Associados.
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