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Terão os contribuintes que devolver os incentivos fiscais de ICMS obtidos?

Dúvida decorre do projeto de súmula vinculante 69, que bane em definitivo os benefícios fiscais concedidos pelas Unidades da Federação sem aprovação do Confaz.

24/3/2015

Esta é a dúvida de muitos contribuintes que, atendendo ao aceno de muitos Estados para investir em seus territórios e levados pela necessidade de reduzir custos tributários e melhorar a competitividade, obtiveram incentivos fiscais para instalar, ampliar ou modernizar parques industriais. Enquanto busca acordo para aprovação de projeto de lei que ponha fim às divergências entre os Estados a respeito dos incentivos fiscais de ICMS concedidos por uns e outros, o Senado da República, “temendo os efeitos catastróficos de uma decisão do Supremo Tribunal Federal”, encaminha ofício ao Ministro Presidente da Corte pedindo mais tempo para resolver a questão no âmbito do Poder Legislativo.

O temor manifestado pelo Senado, e que também é de muitos empresários, decorre da possível colocação em pauta para aprovação do projeto de súmula vinculante 69, que bane em definitivo os benefícios fiscais concedidos pelas Unidades da Federação sem aprovação do Conselho de Política Fazendária - Confaz e, com isso, force os Executivos estaduais que concederam tais benefícios a buscar o seu ressarcimento junto aos contribuintes que deles usufruíram.

Conquanto a modulação dos efeitos da súmula, para ter validade apenas para o futuro, possa resolver a questão da devolução dos benefícios obtidos, convém lembrar que, para isso, são necessários 8 votos dos 11 ministros que compõem a Corte Constitucional e, atualmente, o Tribunal conta com apenas 10 ministros, o que dificulta a obtenção do quórum qualificado necessário para a modulação. Em que pese louvável a preocupação do Senado em preservar, mediante provimento legislativo, os benefícios até o momento concedidos e aproveitados, não é socialmente justo, tampouco jurídico, que os contribuintes que obtiveram incentivos para instalar, ampliar ou modernizar seus empreendimentos, tenham de devolver ou pagar o imposto dispensado ou reduzido.

Com efeito, a maior parte dos incentivos fiscais concedidos pelos Estados tem caráter oneroso, exigem reciprocidade, ou seja, estão vinculados e foram utilizados para investimentos em instalações industriais, em máquinas, equipamentos e tecnologia, além de condicionados à contratação de mão de obra e à manutenção de elevado nível de emprego, fatos que acarretaram em sensíveis melhorias nas condições sociais e econômicas, e cumpriram função extrafiscal precípua de reduzir as desigualdades regionais. Pretender agora a devolução de valores que foram empregados nos fins antes mencionados e que proporcionaram imensuráveis melhorias nas condições sociais e econômicas das regiões em que os empreendimentos foram instalados, seria atribuir aos detentores de incentivos fiscais um ônus desproporcional, que os levaria, certamente, à quebra, gerando, de fato, efeitos catastróficos para a comunidade local, para a Municipalidade, para os Estados e, por último, também para a União.

Por outro lado, é de se observar que os benefícios fiscais concedidos travestem, para as partes envolvidas, a condição de ato jurídico perfeito, pois concedidos mediante atos ou contratos editados ou celebrados com base em leis estaduais aprovadas na forma prevista pelo ordenamento jurídico e vigentes quando da sua concessão. Sequer havia questionamento da validade da norma na ocasião em que os incentivos fiscais foram aprovados. Em tais circunstâncias, não tinham os contribuintes o dever de perquirir acerca da validade da lei com base na qual os incentivos foram concedidos. Disse certa vez Otto Von Bismarck que “leis e salsichas é melhor não saber como são feitas”. No caso aqui analisado, não se pode atribuir aos beneficiários de incentivos fiscais responsabilidade por não terem realizado investigação para saber como as leis concedentes foram feitas, se respeitaram ou não a prévia autorização do Confaz.

Cabe referir aqui que a CF consagrou como garantia do cidadão, em matéria de direito intertemporal, o ato jurídico perfeito, assim entendido o ato que se aperfeiçoou, que reuniu todos os elementos necessário à sua formação à luz da lei então vigente, vale dizer, da lei estadual que autorizou a concessão do incentivo fiscal. Celso Ribeiro Bastos (Curso de Direito Constitucional, Saraiva, 2000, p. 220) alerta-nos para que “se alguém desfruta de um direito por força de um ato que cumpriu integralmente as etapas para sua formação debaixo da lei velha, não pode ter este direito negado só porque lei nova exige outra exteriorização do ato.”

Observe-se ainda que, se aos contribuintes não cabia perquirir sobre a validade das leis com base nas quais os incentivos lhes foram concedidos, o Poder concedente era ciente da inexistência de aprovação prévia no âmbito do Confaz e, mesmo assim estimularam os contribuintes a fazer altos investimentos em seus territórios mediante a concessão créditos fiscais ou reduções de impostos. Diante disso, para pleitear o ressarcimento do valor dos incentivos o Estado concedente teria de arguir a nulidade de seus próprios atos e isso atentaria contra os princípios da boa-fé, da lealdade e da segurança jurídica. Nesta linha, o acórdão proferido no REsp 1.396.544/CE, em que foi relator o ministro Hermann Benjamin, resume que “os precedentes do STJ consagram valores que enobrecem e contribuem para o progresso de uma sociedade pautada nos ideais da justiça e da lealdade, pois impedem que a parte se valha da própria torpeza para burlar o ordenamento jurídico.”

Na mesma direção, o TJ/SC (AC 724.984), ao decidir pela presunção de legitimidade e legalidade dos atos administrativos, aduz que “... se o ato administrativo era inválido, isto significa que a Administração, ao praticá-lo, feriu a ordem jurídica. Assim, ao invalidar o ato, estará, ipso fato, proclamando que fora autora de uma violação da ordem jurídica. Seria iníquo que o agente violador do direito, confessando-se tal, se livrasse de quaisquer ônus que decorreriam do ato e lançasse sobre as costas alheias todas as consequências patrimoniais gravosas que daí decorreriam, locupletando-se, ainda, à custa de que, não tendo concorrido para o vício, haja procedido de boa-fé.” Vemos que a jurisprudência de nossos tribunais não acolhe pretensões de declaração de nulidade dos próprios atos manifestadas pela Administração Pública para exigir pagamento imposto ou restituição de benefícios concedidos.

Por fim, mas não menos importante, é a aplicação ao caso da teoria do fato consumado em relação aos benefícios fiscais concedidos pelos Estados e aproveitados pelos contribuintes. Sobre o tema o ministro Mauro Campbell, do STJ, assentou “É que a teoria do fato consumado tem como objetivo principal, além de resguardar a estabilidade das relações sociais, também garantir que aquele que, confiando em provimento judicial (e, portanto, de boa-fé), não seja prejudicado pela morosidade e pela burocracia judiciais.” (EDcl no REsp 675.026/PR). Em resumo, os riscos irreversíveis e excepcionais à ordem jurídica, econômica e social resultantes da aprovação da súmula vinculante 69 pode levar o STF a modular seus efeitos. Contudo, ainda que isso não ocorra, os princípios da segurança jurídica, da lealdade e da boa-fé, bem assim a teoria do fato consumado, darão guarida ao direito dos contribuintes na eventual exigência de ressarcimento, restituição ou pagamento de benefícios fiscais auferidos.

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*Gilson J. Rasador é advogado sócio do escritório Piazzeta e Boeira Advocacia Empresarial.

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