1. Contextualização Histórica.
De acordo com o artigo 5º, XXXV da Constituição Federal, a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça de direito. Trata-se de máxima prevista em nossa Carta Maior com o escopo de deixar claro a toda a sociedade a impossibilidade de quem quer que seja impedir o acesso à justiça por qualquer jurisdicionado.
Muito embora nos dias atuais pareça extremamente óbvia esta redação que prevê tal inafastabilidade de acesso ao judiciário, tal inserção em nosso ordenamento, na própria Constituição, se mostrou imprescindível, principalmente ao considerarmos o momento histórico vivido pelo País nas décadas de 1960, 70 e 80.
Enfrentamos longos e árduos anos regidos por uma ditadura militar, nos quais muitos direitos, hoje assegurados e cujo afastamento sequer podemos cogitar, foram tolhidos da sociedade como um todo. O famoso e famigerado Ato Institucional 5, de 13/12/1968, impingiu verdadeiro Estado de exceção, afrontando diretamente normas constitucionais.
Observe-se, por oportuno, que as normas contidas no AI5 eram inconstitucionais, já que outorgadas por autoridades incompetentes para modificar a Constituição e contrariavam expressamente normas constitucionais positivadas, tal como o próprio direito de ação, esculpido no artigo 150, § 4º da Constituição de 1967.
Durante o indigitado período, aquele direito de ação inicialmente previsto foi rechaçado, já que, em conformidade com o disposto no art. 11 do AI5, os atos praticados em consonância com o mesmo estavam excluídos de apreciação pelo poder judiciário.
Findo este nebuloso período da história brasileira, passamos a vivenciar uma nova era do Estado Democrático de Direito e, por via de consequência, para a necessidade de uma maior percepção e absorção do acesso à justiça em seu mais alto grau de concepção.
2. O acesso à justiça em sua plenitude.
Para uma maior compreensão do acesso à justiça, em sua plenitude, não podemos deixar nos socorrer aos ensinamentos de CAPPELLETTI e GARTH1, assim como de GALANTER2, onde assinalou o mesmo as reformas do sistema de Justiça seguiram a estruturação em etapas denominadas por "ondas renovatórias".
De acordo com a referida estruturação, podemos destacar uma "primeira onda", através da qual se buscou o fortalecimento da assistência judiciária. Entendeu-se, em tal momento, que a imperiosa necessidade de contratação de advogados para que os jurisdicionados pudessem ir a juízo deduzir pretensão se mostraria como óbice, sob o caráter econômico, aos menos favorecidos.
Temos uma "segunda onda" que busca amoldar o acesso à justiça sob uma ótica de relações – e, por via de consequência, conflitos – massificados. Para tanto, não mais podemos/devemos nos ater ao tradicional conceito de processos individuais, mas sim a busca pela tutela coletiva de direitos. Trata-se, pois, de enfrentamento a um obstáculo organizacional.
Já a terceira onda trouxe novo amoldamento ao conceito de acesso à justiça, através do qual o foco principal passou a ser a sua respectiva efetividade, já que a solução tradicional obtida, por vezes, não se mostrava a mais adequada, denotando verdadeiro obstáculo processual.
Insta consignar que na maioria dos países desenvolvidos as ondas renovatórias obedeceram, em regra, uma estruturação sequencial. Desta feita, cada onda surgiu após a consolidação da onda anterior.
Temos no Brasil, contudo, uma situação anômala. Justamente em razão do espúrio período ditatorial enfrentado, estas três ondas foram enfrentadas em momentos bem próximos, no curso da década de 1980, ante o fervilhar político, social, econômico, cultural e jurídico vivenciado.
O Brasil dos anos 80 clamava por mudanças e vivenciou profundas modificações. O intenso êxodo rural trouxe uma nova configuração aos grandes centros e ensejou a necessidade de se proceder com a permissão de acesso da classe menos abastada ao sistema judiciário. O contexto econômico igualmente era favorável a mudanças, já que a crise da dívida externa trazia igual esperança por novidades na Nova República.
Nossa Constituição de 1988 trouxe, então, importantes elementos aptos ao alcance maior ao acesso à justiça. Ao mesmo passo em que reforçou este conceito ao inserir o inciso XXXV no artigo 5º, já antes mencionado, igualmente tratou de importantes temas, como a criação dos juizados especiais (art. 98, I); da tutela coletiva; da promoção da defesa do consumidor (art. 5º, XXXII); assim como ampliou a abrangência da assistência judiciária, tornando-a mais completa (art. 5º, LXXIV).
Nos anos seguintes, temos ainda a positivação do CDC (lei 8.078/90), da LC 80/94 (a qual organizou a Defensoria Pública) e dos próprios Juizados Especiais (lei 9.099/95).
Tais normas mostraram-se essenciais para a construção de um "novo" judiciário, mais amplo e acessível a todos.
3. Conscientização popular: a democratização do acesso à justiça.
Com o aparelhamento estatal e a criação de mecanismos de viabilização de acesso a uma justiça, por todos e para todos, iniciou-se um novo processo: o de conscientização e democratização do acesso à justiça.
Enquanto se mostrava inalcançável por muitos antes da evolução já anteriormente assinalada, a judicialização de uma série de assuntos passou a ser tida por algo tangível. Muitos dos direitos anteriormente ignorados ou deixados de lado passaram a ser objeto de lides.
Neste sentido, faz-se importante assinalar que, passadas aproximadamente três décadas de nossa Constituição, 25 anos do CDC e 20 anos da lei dos Juizados Especiais, temos, atualmente, o impressionante quantitativo de cem milhões de processos em curso perante o Poder Judiciário3, o que denota possuirmos, em números absolutos, um processo para cada dois habitantes, se levarmos em conta os dados estatísticos de uma população estimada em duzentos milhões de habitantes, de acordo com o IBGE.
Contudo, o fato de termos atingido tamanho grau de acessibilidade à justiça não representa, necessariamente, o regular e legítimo direito de ação. Uma das mazelas decorrentes deste incremento é, justamente, a abusividade do direito de litigar.
4. O abuso do direito de litigar.
Tendo-se o acesso à justiça como importante ferramenta democrática para a obtenção da prestação da tutela jurisdicional, exercida através do direito de ação, temos um novo e recente fenômeno vivenciado nos tribunais pátrios: o abuso do direito de litigar.
Consideremos por abuso de direito todo e qualquer ato jurídico praticado que possui um objeto lícito. Contudo, seu exercício realizado eivado de irregularidade faz com que seu resultado final seja ilícito. Assim, temos por ato abusivo de direito o seu exercício praticado de forma egoísta e anormal, "sem motivos legítimos, com excessos intencionais ou voluntários, dolosos ou culposos, nocivos a outrem, contrários ao destino econômico e social do direito em geral, e, por isso, reprovável pela consciência pública."4
Conforme anteriormente exposto, vivenciamos uma era de litigiosidade, com dezenas de milhões de processos em curso pelos tribunais de todo o país.
Evidenciemos que o quantitativo ora referenciado não representa a existência maciça e rotineira da prática de atos abusivos de direito. Todavia, não podemos deixar de assinalar que o precípuo objetivo do legislador pátrio ao ampliar e facilitar o acesso à justiça como consectário de um Estado Democrático de Direito não mais vem sendo levado exclusivamente em consideração.
Para tanto, basta uma simples verificação dos dados estatísticos de nossos tribunais. Enquanto no ano de 1996, imediatamente seguinte à criação dos Juizados Especiais, identificava-se apenas 10 % (dez por cento) das demandas em tramitação naqueles órgãos recém criados patrocinados por advogados, estudos realizados pelo Conselho Nacional de Justiça no ano de 2014 constataram que 93 % (noventa e três por cento) dos processos naquele ano possuíam advogados constituídos.
Por outro lado, vem crescendo cada vez mais o número de "ofertas" à prestação de serviços jurídicos de forma ostensiva e abusiva, tais como sítios eletrônicos que anunciam facilitações e resultados judiciais, através da elaboração de petições iniciais por modelos pré-concebidos.
À guisa de exemplo, mencionemos a existência de site contra o qual foi ajuizada ação, autuada sob o nº 0001142-50.2012.4.02.5101, pela Seccional do Rio de Janeiro da Ordem dos Advogados do Brasil, cuja tramitação se deu junto à Justiça Federal do mesmo Estado. Em Acórdão proferido pela 6ª turma Especializada do TRF da 2ª região (TRF-2), foi a sentença reformada, por unanimidade, para rechaçar a possibilidade de oferta de serviços advocatícios como se produtos de relação típica de consumo fossem, vedando a oferta, divulgação e anúncio de planos jurídicos.
Atrele-se a este elemento o significativo incremento de demandas advindas de captação indevida de clientela ou mesmo decorrente de prática de atos fraudulentos no ajuizamento de ações sem o consentimento e/ou conhecimento das partes em tese representadas. Muito embora pareçam absurdas as situações ora descritas, igualmente foi objeto de investigação e adoção de medidas no Estado do Rio de Janeiro, tal como se observa do Relatório Final apresentado pelo Grupo de Trabalho instituído pelo Ato Executivo 4.885/115 do Tribunal de Justiça daquele Estado.
Um terceiro viés a ser observado deste abuso de direito é o ajuizamento múltiplo de ações com identidade de partes que, muito embora possuam aparente causas de pedir e pedido distintos entre si, possuem clara intenção de obtenção de locupletamento indevido.
Neste ponto, atentemo-nos a algumas situações que melhor evidenciam esta prática: podemos citar, a título de exemplificação, a hipótese em que o locador de imóvel identifica a rotineira inadimplência do locatário e, com o escopo de constrangê-lo, intenta uma ação de cobrança para cada mês inadimplido. Observe-se que, diante de tal situação, irá o locatário receber um mandado de citação e arcará com custas processuais para cada ação/cobrança realizadas.
Outro exemplo que pode ser dado é observado com muito mais frequência em demandas de natureza consumerista. O consumidor, identificando o recebimento de cobranças indevidas em suas contas mensais, opta por ingressar, via de regra nos juizados especiais, com uma ação para cada cobrança, com o escopo de obter a devolução do valor pago ou a declaração de inexigibilidade da mesma e, em grande parte das vezes, com a cumulação de pedido de indenização a título de danos morais. Tal prática tem por objetivo a pretensa intenção de obtenção de indenizações em maiores valores, já que, caso ajuizada uma única ação englobando todos os títulos e, sem uma especial atenção dos fornecedores quando do recebimento e tratamento destas ações, dificilmente obter-se-iam provimentos judiciais favoráveis em todas as demandas.
Atualmente, com a modernização dos tribunais e de seus sistemas processuais, assim como ante à organização da sociedade como um todo, cada vez mais tem-se visto a utilização de medidas para combate de medidas como as ora descritas. Elementos como a conexão e litispendência de causas não apenas podem, como devem ser observados quando da constatação destas situações.
A tentativa de burlar e de se valer do sistema judiciário para pretensões indevidas merece especial reprimenda e já encontra guarida em nosso ordenamento, sendo previstas penalidades para o litigante de má-fé que se vale do processo para a obtenção de objetivo ilegal. É o que prevê o artigo 17 do atual Código de Processo Civil, cuja redação foi replicada no artigo 80 do Projeto Final do novo Código de Processo Civil, levado à sanção presidencial, assim como o artigo 18 do atual CPC6, que sofreu ajustes no artigo 81 também do projeto final do NCPC7.
5. Conclusões.
Diante das informações ora levantadas, podemos verificar que vivenciamos profundos avanços em nosso sistema judiciário.
Ao passo que enfrentamos aproximadamente duas décadas na segunda metade do século XX de repressão e opressão de direitos, com o manifesto impedimento de acesso à justiça de forma ampla, a década de 1980 mostrou-se de extrema relevância para permitir a alteração da concepção de acessibilidade à prestação de uma tutela jurisdicional mais efetiva.
A Constituição de 1988 foi, neste ponto, de fundamental importância, ao prever a inclusão de importantes princípios e garantias fundamentais, em especial, ao próprio acesso à justiça, mediante o exercício do direito de ação. A igual previsão de tutelas coletivas, da proteção e defesa dos direitos dos consumidores, assim como de criação dos juizados especiais foi mais um avanço para a ampliação desta importante acessibilidade à justiça.
Completados quase 30 anos de nossa Carta Maior atual, com a superação de mazelas históricas, passamos a enfrentar os consectários desta ampliação e facilitação de direitos. Temos um judiciário assoberbado de processos em tramitação, o que levou, inclusive, à preocupação do legislador, quando da redação da EC 45/04, inserindo o inciso LXXVIII ao artigo 5º, buscando assegurar a todos, no âmbito judicial e administrativo, "a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação".
A vista destes elementos, temos um Novo Código de Processo Civil projetado e aprovado, aguardando apenas a sanção presidencial, que busca encontrar alternativas para esta atual fase experimentada. Além da manutenção das penalidades acima evidenciadas, igualmente observamos a criação do incidente de resolução de demandas repetitivas, com o manifesto escopo de uniformizar a interpretação jurisprudencial e impingir a subsunção em julgamentos de instâncias inferiores ao entendimento consolidado em instâncias superiores. Ao mesmo passo, busca-se ainda a adoção, em maior escala, dos denominados métodos alternativos de resolução de conflitos, com o incremento de práticas de conciliação e mediação.
Contudo, estes elementos, isoladamente, não são o bastante. Para que saiamos de um círculo vicioso, donde se vislumbra o assoberbamento do judiciário com um sem número de demandas, e ingressemos em um círculo virtuoso, com um sistema entregando uma prestação jurisdicional justa e em tempo razoável, faz-se necessário revisar e reeducar a sociedade como um todo. As relações individuais e comerciais devem ser objeto de intenso aprimoramento, com o escopo de desjudicializar corriqueiros atritos que podem ser solucionados no dia-a-dia.
Some-se a tal ponto a urgente necessidade de aprofundamento nas avaliações estatísticas macro e microscópicas dos tribunais. Uma avaliação isolada de quantitativos de demandas ajuizadas contra empresas, por exemplo, não são indicadores capazes de demonstrar, de forma individualizada, a existência de uma pretensa má-prática comercial ou mesmo não observância de direitos de consumidores. O outro lado da moeda deve ser avaliado, justamente para evitarmos as patentes situações de abuso de direito de litigar, onde se observa a indevida captação de clientela e a manifesta tentativa de locupletamento indevido onde, ao final, toda a sociedade acaba pagando o preço.
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1 CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Access to Justice and the welfare state: an introducion. In: CAPPELLETTI, Mauro (Ed.). Alphen aan den Rijn: Sitjhoff; Bruxelas: Bruylant; Firenze: Le Monnier; Stuttgart: Klett-Cotta, 1981. p. 1-24.
2 GALANTER, Marc. Justice in many rooms. In: CAPPELLETTI, Mauro (Ed.). Access to Justice and the welfare state. Alphen aan den Rijn: Sitjhoff; Bruxelas: Bruylant; Firenze: Le Monnier; Stuttgart: Klett-Cotta, 1981. p. 174-181.
3 CNJ. Justiça em Números.
4 BRASIL. Tribunal da Apelação do Distrito Federal. Rio de Janeiro. 5ª Câmara. Voto do Presidente e Relator Saboia Lima, publicada no DJ em 1º de março de 1943. Revista dos Tribunais. [sl]: Revista dos Tribunais, ano 6, n. 24, jul.-set. 1998. p. 27-28.
5 (Clique aqui)
6 “Art. 17. Reputa-se litigante de má-fé aquele que:
I - deduzir pretensão ou defesa contra texto expresso de lei ou fato incontroverso;
II - alterar a verdade dos fatos;
III - usar do processo para conseguir objetivo ilegal;
IV - opuser resistência injustificada ao andamento do processo;
V - proceder de modo temerário em qualquer incidente ou ato do processo;
Vl - provocar incidentes manifestamente infundados.
VII - interpuser recurso com intuito manifestamente protelatório.
Art. 18. O juiz ou tribunal, de ofício ou a requerimento, condenará o litigante de má-fé a pagar multa não excedente a um por cento sobre o valor da causa e a indenizar a parte contrária dos prejuízos que esta sofreu, mais os honorários advocatícios e todas as despesas que efetuou.
§ 1º Quando forem dois ou mais os litigantes de má-fé, o juiz condenará cada um na proporção do seu respectivo interesse na causa, ou solidariamente aqueles que se coligaram para lesar a parte contrária.
§ 2º O valor da indenização será desde logo fixado pelo juiz, em quantia não superior a 20% (vinte por cento) sobre o valor da causa, ou liquidado por arbitramento.
7 "Art. 80. Considera-se litigante de má-fé aquele que:
I – deduzir pretensão ou defesa contra texto expresso de lei ou fato incontroverso;
II – alterar a verdade dos fatos;
III – usar do processo para conseguir objetivo ilegal;
IV – opuser resistência injustificada ao andamento do processo;
V – proceder de modo temerário em qualquer incidente ou ato do processo;
VI – provocar incidente manifestamente infundado;
VII – interpuser recurso com intuito manifestamente protelatório.
Art. 81. De ofício ou a requerimento, o juiz condenará o litigante de má-fé a pagar multa, que deverá ser superior a um por cento e inferior a dez por cento do valor corrigido da causa, a indenizar a parte contrária pelos prejuízos que esta sofreu e a arcar com os honorários advocatícios e com todas as despesas que efetuou.
§ 1º Quando forem 2 (dois) ou mais os litigantes de má-fé, o juiz condenará cada um na proporção de seu respectivo interesse na causa ou solidariamente aqueles que se coligaram para lesar a parte contrária.
§ 2º Quando o valor da causa for irrisório ou inestimável, a multa poderá ser fixada em até 10 (dez) vezes o valor do salário-mínimo.
§ 3º O valor da indenização será fixado pelo juiz ou, caso não seja possível mensurá-lo, liquidado por arbitramento ou pelo procedimento comum, nos próprios autos."
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