Migalhas de Peso

Equívocos na origem do novo CPC

É certo que o projeto traz alguns avanços. Contudo, sopesando as modificações, em termos de celeridade e duração razoável do processo, o saldo será negativo.

2/3/2015

1. Da qualidade do CPC de 1973 e da situação atual do Judiciário

A primeira observação a ser feita se refere a algumas críticas que temos observado em manifestações de processualistas e juristas feitas ao atual CPC, alguns até mencionando ser o texto autoritário ("da época da ditadura militar"), por ter sido redigido quase que exclusivamente por uma única pessoa (Ministro Alfredo Buzaid – professor catedrático de processo civil da USP e da PUC-SP – ministro da Justiça e ministro do STF).

No entanto, se voltarmos no tempo, quando da edição do CPC de 1973, este fato era mencionado por alguns como uma das virtudes da lei, justamente por ter permitido uma elaboração tecnicamente e teoricamente mais apurada.

O CPC de 1973 era e é um bom código. Não se pode sequer afirmar que ele envelheceu. Na verdade, ele aos poucos se tornou incompatível com a nossa realidade.

É importante lembrar qual era o mundo em que vivíamos em 1973. Não existia nem fotocópia ("xerox"), quando mais "fax" (fac-símile - hoje também não existe mais), telefone celular, computador ou internet.

O número de processos era quase vinte vezes menor do que o que tramita hoje no Judiciário Brasileiro; sendo que o procedimento sumaríssimo tinha duração de 120 dias (incluindo o primeiro e o segundo grau); nem se cogitava de Juizado Especial, não era necessário, o processo comum dava conta da situação.

Só para se ter uma ideia, o nosso CPC de 1973 foi utilizado como modelo para mais de 20 países como legislação processual.

No entanto, o CPC de 1973 acabou atropelado pela crescente procura da tutela jurisdicional, acompanhada pela lenta evolução da estrutura dos serviços judiciários, levando ao congestionamento e lentidão que temos hoje.

A desproporção do crescimento da distribuição das ações para o crescimento da estrutura do Judiciário é brutal.

Só a título de exemplo, recentes dados divulgados pelo STF e pelo TJ/SP dão conta que em 2014 o número de recursos ao STF cresceu 10% e quanto ao TJ/SP cresceu 22%, sendo certo que o número de ministros e desembargadores é o mesmo há décadas.

Evidentemente que é impossível imaginar que a estrutura do Judiciário possa acompanhar tal crescimento.

Como resolver o problema ?

Primeiro é necessário desmistificar o pensamento ainda hoje defendido por vários juristas de que procurar o Judiciário é ótimo. Não é. Ajuizar demanda não é simplesmente sinal de cidadania e estado de direito, mas também um sinal de que litígios existem e que as pessoas não conseguem resolver tais problemas, como seria desejável.

O serviço Judiciário é necessário, tal qual o serviço de Saúde. No entanto, tal qual este tipo de serviço, temos que dar atendimento às situações problemáticas, mas temos que tomar medidas preventivas, para evitar que tais situações surjam; o que praticamente não ocorre em relação ao serviço judiciário.
Além disso, é necessário vislumbrar a prestação do serviço judiciário como serviço público colocado à disposição da população. O dinheiro público deve ser bem gasto, de forma adequada e eficiente, o que nem sempre ocorre hoje.

Só a título de exemplo, um processo de juizado especial, de R$ 100,00, pode chegar ao STF, ou seja, todos nós vamos custear tal demanda, que será julgada por nove juízes (um em primeiro grau, três no colégio recursal e cinco na turma do STF). É razoável ?

Parece mau uso de dinheiro público. É necessário deixar de lado o excesso de idealismo e preciosismo, estabelecendo limitação e adequação.

Assim, a questão deve ser enfrentada em três vertentes.

A primeira, a necessidade de melhoria e modernização dos serviços judiciários, com a introdução, como vem ocorrendo, do processo eletrônico. É necessário, ainda, criar mecanismos de soluções extrajudiciais e pré-processuais de conflitos de interesses. Por fim, é imperiosos melhorar e adequar a legislação processual.

Aí se encaixa a ideia do projeto do novo CPC.

No entanto, desde a ideia do novo CPC até a edição do texto aprovado, entendemos que houve alguns equívocos que procuraremos expor.

2. Da falta de fixação de metas e de pragmatismo

Durante quase cinco anos vários juristas, parlamentares e a sociedade civil, ainda que de forma tímida, participaram da elaboração do projeto de novo CPC.

Apesar disto é importante ressaltar que o substitutivo aprovado pelo Senado Federal, do senador Vital do Rego, está distante da proposta apresentada pela comissão ao Congresso Nacional.

O projeto de lei foi enviado para sanção ao Palácio do Planalto em 24/2/15 (PLC 8.046/10, PLS 166/10 e Parecer da Comissão Diretora 1.111/14).

Lamentável notar que pouco se tem escrito em referência ao projeto aprovado, sendo que os poucos artigos destacam algumas modificações que o projeto traz em relação à situação atual.

Infelizmente consideramos que foram cometidos na elaboração do projeto alguns erros.

Sempre que se procurou fazer alterações na legislação processual o procedimento adotado era o mesmo, se buscava uma comissão de juristas para elaboração do projeto, que acabava submetido ao Congresso.

Nunca procuramos fazer previamente um quadro da efetiva situação do Judiciário e do serviço prestado, para analisar as mudanças necessárias.

Nunca nos debruçamos em dados estatísticos do movimento dos Tribunais, para verificar as mudanças necessárias, procurando analisar a repercussão das modificações sugeridas.

Antigamente isso era inviável. Nos não dispúnhamos de números, de dados. No entanto, com o advento do CNJ, já há alguns anos temos dados que poderiam ter sido utilizados como norte para as modificações legislativas.

Vários Tribunais de outros países fazem incessantes estatísticas de sua atuação, para poder sugerir alterações legislativas do processo.

Por exemplo, se um recurso é pouco utilizado e se eventualmente, quando utilizado, ele é improvido na imensa maioria dos casos; é de se pensar da conveniência da manutenção dele ou não, ou alternativamente, mantê-lo sem efeito suspensivo.

No entanto, não se observou o trabalho com dados estatísticos concretos para orientar o projeto, que manteve somente o traço da experiência dos envolvidos em suas proposições.

3. Da falta de perspectiva futura (processo eletrônico)

Aqui outro capítulo a parte.

Os processualistas não têm tratado adequadamente do processo eletrônico. Ainda é comum verificar vários juristas tratando o processo eletrônico como uma mera desmaterizalização do processo físico. Não é.

O processo eletrônico envolverá três "ondas".

A primeira, que estamos vivendo, é a mera desmaterizalização do processo, que passará do meio físico para o eletrônico.

Na sequência virá a segunda "onda", onde será necessário repensar e adequar as estruturas administrativas do serviço judiciário. A estrutura arcaica e secular a qual estamos acostumados de vara-cartório desaparecerá, sendo que o próprio fórum como conhecemos hoje tende a desaparecer. O contato do juiz com as partes e advogados diminuirá, será esporádico. O cartório ou secretaria nem saberemos onde ficará. Não teremos mais cartas precatórias. Teremos apenas fóruns para realização de audiências e atendimentos de plantão, de urgência.

Por fim, veremos a terceira "onda", onde a legislação processual deverá ser modificada, pois o processo eletrônico é regido por princípios distintos do processo físico, como os princípios da imaterialidade, da conexão, da interação, da hiper-realidade, da instantaneidade e da desterritorialização.

O projeto elaborado, que aguarda sanção, foi feito para o processo físico.

Apesar do projeto contemplar e mencionar em várias passagens "meios eletrônicos", toda a estrutura processual prevista foi concebida considerando o processo físico.

Só a título de exemplo, o art. 340 do projeto prevê que o réu que alegar incompetência, pode protocolar a contestação no foro de seu domicílio (ora, qual o sentido da regra, se temos o protocolo integrado para o processo físico e o processo eletrônico, que é digital ?).

Quanto as sessões dos Tribunais, por exemplo, o projeto só contempla a atual sistemática de sessões, não cogitando de julgamentos na forma eletrônica (sem a realização de sessões) ou sessões virtuais.

A consequência deste quadro, considerando que em alguns Tribunais, como no TJ/SP, teremos predominantemente processos eletrônicos já em alguns anos (a estimativa é que em cinco ou sete anos só tenhamos processos eletrônicos), é que o novo CPC envelheça rapidamente e em cinco ou dez anos tenhamos que nos debruçar e pensar num novo código.

4. Da Celeridade

Quando da constituição da comissão para elaboração do projeto se mencionava como objetivos a duração razoável do processo, a redução dos recursos e a celeridade processual.

Efetivamente pouco se avançou neste quesito.

Fazendo um exame ainda que superficial do texto aprovado, ao contrário do que mencionou o Ministro Luiz Fux em seu discurso, quando da aprovação do texto no Congresso, não acreditamos que o processo tramitará na metade do tempo que atualmente leva.

Ao contrário, pelas introduções feitas, estimamos que o processo deverá ficar 30% ou 40% mais lento.
É possível verificar tal situação, pois uma das diretrizes adotados pelo novo CPC foi a uniformização dos prazos, que foram praticamente padronizados em 15 dias úteis, ou seja, equivalem a três semanas (20 dias corridos no mínimo, podendo chegar a 22 ou 24 dias corridos ser houver algum feriado).

Apesar de alguns aplaudirem, entendemos ser sem sentido a situação colocada.

No CPC vigente, onde o processo é físico e o processo não está plenamente disponível, o prazo é contado em dias corridos. Agora, em tempos de processo eletrônico, disponível 24 horas por dia, 7 dias da semana, os prazos são ampliados e contados em dias úteis (art. 219).

Qual a lógica da alteração ? Parece que é apenas facilitar a atuação dos advogados e não buscar celeridade processual.

Note-se, a título de exemplo, o prazo para que a parte se manifeste sobre qualquer documento juntado pela outra, que atualmente é de 05 dias corridos, passará a ser de 15 dias úteis (art. 437, § 1º).

Além disso, alguns sujeitos do processo, como o Ministério Público, a Fazenda Pública, a Defensoria Pública (inclusive os advogados que atuam por força de convênio) e litisconsortes com advogados distintos, contam com prazo em dobro durante todo o processo (arts. 180, 183, 186 e 229 do projeto).
Além disso, por conta da adoção do princípio do diálogo no projeto, praticamente em nenhuma situação o juiz ou relator poderá agir de ofício, devendo sempre previamente colher manifestação das partes (art. 10 e 927 § 1º).

Também por força do princípio do saneamento, praticamente todas as formalidades, especialmente no sistema recursal, podem e devem ser supridas ou sanadas, sempre com a concessão de prazo à parte (arts. 932, § único, 1.007).

Como pode o processo ficar mais célere ?

Além disso, acreditamos que haverá um incremento de, no mínimo, 20% a 30% nos recursos.

Isto porque, a redução recursal que era uma das bandeiras, quando da constituição da comissão de juristas, não vingou.

Basicamente houve a redução de hipóteses do agravo de instrumento (excluídas as questões relativas a preliminares e algumas relativas a provas).

Note-se que os embargos infringentes que teriam sido “excluídos”, em verdade se tornaram “automáticos”, pois não sendo unânime o julgamento, obrigatoriamente outros magistrados deverão participar do julgamento (art. 942). Em termos práticos, num número considerável de casos, teremos cinco julgadores para julgar agravos e apelações, com a necessidade de redesignação dos julgamentos. Não parece exagero ? Onde está a princípio da adequação ?

Alguns dispositivos do projeto do novo CPC, ainda, praticamente obrigam a parte a recorrer, mesmo em situações onde atualmente, no sistema vigente, elas não se utilizam do recurso.

Tal situação está retratada na regra do art. 304, que coloca que nas hipóteses de tutela antecipada requerida de forma antecedente, se não houver recurso contra a decisão que a concede, ela se tornará “estável”, sendo o processo extinto; cabendo a qualquer das partes ingressar com outra demanda dentro de dois anos, sob pena de consolidação da situação.

Deste modo, por exemplo, se alguém ajuizar pleito de tutela antecipada para suspensão da exigibilidade de tributo e for concedida a liminar, a Fazenda obrigatoriamente deverá agravar, sob pena de se tornar definitiva a situação. Não poderá a Fazenda simplesmente deixar para discutir a matéria na contestação da ação.

Além disso, foi mantido o efeito suspensivo como padrão para os recursos. A apelação em regra mantém tal efeito (art. 1.012), sendo que todos os demais recursos admitem o processamento com tal efeito.

Nesta linha, a regra que trará sérias repercussões, pois se constitui em verdadeiro estímulo a interposição dos recursos, é a possibilidade do efeito suspensivo ao recurso especial e extraordinário (arts. 987, § 1º e 1.029 § 5º), hoje inexistente.

Certamente tal situação aumentará o número de tais recursos de forma significativa, bem como gerará incidentes quanto a atribuição de tal efeito, nos casos em que a atribuição de tal efeito depender do magistrado.

Dependendo os processos de julgamento de recursos especial e extraordinário com efeito suspensivo, como os Tribunais Superiores darão conta do aumento do movimento e do volume de processos ?

Talvez a aposta na celeridade venha de institutos como a concentração da defesa (eliminação de incidentes e concentração das matérias na contestação) e o incidente de demandas repetitivas (art. 976). Contudo, entendemos que tais figuras não terão o condão de diminuir o volume de demandas e nem acelerar a solução delas; até porque a experiência tem mostrado que os institutos existentes, similares ao incidente de demanda repetitivas, como a repercussão geral no STF, ficam longos períodos aguardando julgamento.

5. Conclusão

É certo que o projeto traz alguns avanços, como a concentração da matéria de defesa na contestação (art. 337), a distribuição dinâmica do ônus da prova (art. 373 § 1º - como regra de condução do processo e não como regra de julgamento), a redução das hipóteses de agravo de instrumento (art. 1.015) e o incidente de demandas repetitivas (art. 976).

Contudo, sopesando as modificações, em termos de celeridade e duração razoável do processo, o saldo será negativo.

Talvez estejamos errados. Esperamos que sim.

De qualquer modo, acreditamos que o acima colocado servirá para estimular o debate acerca do projeto de lei do novo CPC, o que entendemos ser fundamental para aprimoramento do processo civil e, ao final, para a melhoria dos serviços judiciários.

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Observação: Observações: os números dos artigos citados se referem ao texto do projeto constante do parecer da Comissão Diretora do Senado 1.111/14, datado de 17/12/14 e enviado à sanção no dia 24/2/15.

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*Cláudio Augusto Pedrassi é juiz de Direito substituto de 2º Grau, atuando na 2ª câmara de Direito Público do TJ/SP.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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