Convidamos o leitor a recostar em sua cadeira, tomar fôlego e deixar-se levar pela narrativa para, ao final desta nossa jornada, e se assim lhe aprouver, formar as convicções que bem entender daquilo quanto for possível compreender e refletir desta penada, por vezes desmedida, não por deslealdade.
Está prestes a zarpar em cruzeiro o transatlântico Justiça, cujo objetivo da viagem é lançar em alto-mar as cinzas da prestação jurisdicional, que em vida foi cantada em verso, sentenças e acórdãos, e cujo perecimento foi atestado como o mal da demora. Ora, dirão alguns, mas é a única certeza que nos resta. Ora, dirão outros, mas com mais demora é o que se espera.
O navio fora reparado, alguns ajustes cá, outros acolá, mas o grande avanço estava na substituição de uma de suas hélices de propulsão. Agora, acoplara-se ao navio a hélice E-Processo. Única, cuja promessa era a de dar mais celeridade à grande Nave, que a tempos estava ancorada, talvez por excesso da carga de demandas que abrigava em seu interior.
No interior da Justiça encontravam-se tripulação, convidados, amigos e inimigos.
O capitão STF do alto de sua cabine, impoluto, ditava ordens de repercussão geral e vinculantes a seus subordinados. Oficiais desembargadores e marinheiros magistrados corroíam-se pela falta de independência e quase sempre ameaçavam um motim, o que nunca, por sorte, veio a ocorrer.
Na casa de máquinas, o coração do navio e a suar bicas, estavam a laborar analistas e técnicos entre bombas, cilindros, parafusos e chaves de grifo, acotovelando-se entre estatísticas e métricas, sonhando com uma carreira.
Advogados – públicos e privados - foram utilizados como lastro no porão, local ideal para abafar seus gritos por preferência e audiência, pois ensurdecedor era o ruído dos motores, movidos literalmente pelo vapor de suas exasperações.
Os convivas transitavam pelo convés em flagrante devaneio emocional, valendo citar a presença ilustre do Congresso Nacional, sujeito de oratória fácil, amigo de última hora e amor duvidoso à senhora política. Em outro canto e em conversa cercada de segredos, fitavam-lhes ao longe PF e MP. Ela, independente, ele, passional, mas fiéis a seus intentos. Circulavam ainda jovens agências reguladoras, senhoras autarquias, senhores de economia mista e o tributário Carf, entre outros tantos, cada qual com seus vícios e virtudes.
Curioso e mantido em segredo era o transporte no porão do navio de Estado, animal arredio de passos lentos e burocráticos.
Eis que no curso da navegação e em mares calmos uma embarcação modesta é vista ao longe. Boias de lançamento são jogadas e nelas são içados os jurisdicionados, perdidos e distantes de um cabo de boa esperança. Risadas discretas são lançadas contra os náufragos resgatados, olhares estridentes são vistos a lhes inspecionar e, seguindo ordens superiores, são os jurisdicionados encaminhados aos porões do Justiça, sem direito a recursos, pois considerados protelatórios, sem direito a sustentação de seus reclames, uma vez que tal atrasará em muito mais de quinze minutos o curso da rota e o objetivo fim da missão traçada: lançar ao mar mais profundo as cinzas da prestação jurisdicional.
‘E la Nave Va’.
Mas eis que um estado de animosidade ronda o transatlântico e, antes até que um árbitro pudesse fazer a composição das partes, uma grande onda de insatisfação aderna o navio, fazendo com que muita água se faça entrar em seu interior. Corredores, bastidores, camarotes, tribunas, salões, secretarias, cafeterias, relacionamentos falsos, tudo agonizava e lamentava, lentamente, tornando inevitável fosse Justiça a pique.
E nossa película se encerra com um por do sol cenográfico e, lá distante, bem ao fundo, a câmera vai fechando nos únicos sobreviventes do naufrágio, tanto ainda boiando entre seus pensamentos: o enigmático Estado e os cansados jurisdicionados, fitando-se na esperança de que um, ou outro, encontre solução para tamanho desamparo.
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1 Texto elaborado a partir da adaptação livre da obra de Federico Fellini (1983)
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