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O princípio constitucional do acesso à Justiça corresponde a uma necessidade da aceitação do princípio da dignidade humana

Há uma restrição do conceito de cidadania a quem tem disponibilidade econômica, e o Judiciário, dessa maneira, só será acessado por quem tiver dinheiro.

10/10/2014

Não se trata, sequer, de reconhecimento de cidadania, mas de personalidade jurídica a qualquer ser humano. Mesmo no período da escravidão, o direito brasileiro sempre reconheceu o direito do escravo de recorrer ao Judiciário; o direito romano também reconhecia uma limitada capacidade postulatória ao servus, que tinha a possibilidade de recorrer ao pretor para queixar-se de sevícias cometidas por seu amo.

Assim, o princípio do acesso à Justiça acompanha a dignidade da pessoa humana e pode ser afirmado como hierarquicamente superior até mesmo ao princípio da liberdade.

Condicionar o exercício do direito de petição à possibilidade eventual de condenação por litigância de má fé sujeitaria o assistido, beneficiário de Justiça gratuita, a uma hipotética possibilidade de ver-se constrangido de modo desproporcional no seu acesso à Justiça.

Que a condenação em litigância de má fé tem a ver com acesso à justiça, ao menos em tese, foi reconhecido pelo STJ no julgamento dos EDcl na AR 4.612/RS (Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 10/08/2011, DJe 15/09/2011). Embora no mérito o STJ tenha entendido não haver entrave ao acesso à justiça, conheceu da questão, porque no caso a parte não era beneficiária de justiça gratuita.

Ora, correspondendo o acesso à justiça a uma imposição do princípio da dignidade humana, princípio fundamental que constitui-se em cláusula pétrea no sistema constitucional (art. 60, § 4.º, inciso IV), por ser o mais nuclear dos direitos fundamentais, sua limitação afigura-se inconstitucional.

Desse modo, o pedido, formulado por uma parte, de condenação de outra parte, beneficiária de justiça gratuita, nas penas da litigância de má fé, corresponde a um pedido de um provimento jurisdicional que tem por efeito uma limitação do acesso à justiça com base em critérios econômicos inaceitáveis no sistema constitucional garantista vigente.

A consequência, em termos processuais, é que tal pedido (condenação nas penas de litigância de má fé de parte processual beneficiária de justiça gratuita) corresponde a pedido que não pode ver-se conhecido pelo Poder Judiciário, porque contrário a norma constitucional.

Destarte, a roupagem processual do instituto corresponde à impossibilidade jurídica desse pedido, pelo que a parte que o formula deve ser julgada, nesse ponto, carecedora do direito de ação.

Tal correspondência entre o instituto processual da impossibilidade jurídica do pedido e as cláusulas pétreas constitucionais vem sendo cada vez mais ressaltada pela doutrina e jurisprudência.

Ao tratar do princípio da Separação de Poderes (art. 60, § 4.º, inciso III), assim se pronunciou o prof. Cândido Rangel Dinamarco, quando sustentou que a formulação de pedido de revisão ou reforma do mérito administrativo pelo Judiciário viola o princípio constitucional (também este cláusula pétrea) da Separação de Poderes: nesse caso, tal pedido de conhecimento judicial do mérito administrativo é inconstitucional e portanto juridicamente impossível.

Não pode o juiz substituir as escolhas legítimas do administrador ou do legislador pela sua, mas pode e deve afastar as escolhas ilegítimas. (...) Só se consegue chegar a resultados práticos e legítimos pelo estímulo dos casos concretos e seu exame à luz da garantia constitucional do controle jurisdicional, do princípio da separação e independência dos Poderes, da discricionariedade bem interpretada e dos conceitos de abuso e desvio de poder – tudo isso coordenado pelo fio condutor representado pelo devido processo legal. (...) Na censura possível aos atos administrativos, varia a intensidade da competência dos juízes em relação a cada um desses pontos: a) a exatidão material dos motivos de fato, (b) a qualificação destes; e c) a apreciação de sua oportunidade (Rivero-Waline). Onde em princípio se exclui a censura é neste último ponto, embora às vezes os tribunais dissimuladamente façam o seu próprio juízo de oportunidade a título de controle de legalidade. (DINAMARCO, Cândido Rangel. Litisconsórcio Necessário – Controle jurisdicional do ato administrativo. Revista Forense – vol. 333. p. 188/189).

“por ser contrária ao direito brasileiro o controle daquele ato, a situação é de impossibilidade jurídica da demanda – e, consequentemente, o processo comporta extinção sem julgamento do mérito, sendo carecedoras de ação as entidades autoras”. (Dinamarco, Cândido Rangel. Litisconsórcio Necessário – Controle jurisdicional do ato administrativo. Revista Forense – vol. 333. p. 191).

Os tribunais vêm decidindo em sentido semelhante:

“[D]escabe ao Poder judiciário realizar o controle de mérito dos atos impugnados, já que editados com esteio em discricionariedade que não contrariou qualquer princípio administrativo, fato que, se existente, poderia autorizar a atuação do Judiciário” (Voto proferido pela Ministra Eliana Calmon, no julgamento do AgRg no Mandado de segurança nº 13.918 – DF (2008/0235099-2), disponível em www.stj.jus.br).

“defeso ao poder judiciário apreciar o mérito do ato administrativo, cabendo-lhe unicamente examiná-lo sob o aspecto de sua legalidade, isto é, se foi praticado conforme ou contrariamente a lei. Esta solução se funda no princípio da separação dos poderes, de sorte que a verificação das razões de conveniência ou de oportunidade dos atos administrativos escapa ao controle jurisdicional do estado”. (RMS 1288/SP, Relator Ministro César Asfor Rocha, DJU 02/05/1994)

O TRF da 3.ª Região já se manifestou, nesse sentido:

“Não cabe ao Poder Judiciário, em respeito ao princípio da separação de poderes e ao poder discricionário da autoridade administrativa, apreciar os critérios de oportunidade e conveniência dos atos administrativos, ou seja, pronunciar-se sobre o mérito administrativo destes, devendo ater-se à análise de sua legalidade, excetuando-se, tão somente, as situações de evidente abuso de poder ou de ilegalidade nos atos em questão”.
(TRF 3.ª Região, AC 0006760-90.2011.4.03.6100/SP, rel. Consuelo Yoshida, j. 30.5.2014.)

A litigância por má-fé não pode afastar a concessão prévia do benefício da Justiça gratuita. Isso se dá porque o benefício não é concedido caso a parte que pede assistência tenha o direito que pleiteia. O afastamento da concessão por entender o juízo que a parte litigou de má-fé revela-se um entrave ao alcance do conceito arendtiano de cidadania como “direito a ter direitos”. Isso porque a condenação por litigância de má fé e afastamento da concessão da assistência judiciária acarreta em uma desigualdade jurídica entre as partes.

Assim, o direito de cada cidadão de acesso ao poder judiciário para discutir questões jurídicas é limitado a quem tem disponibilidade econômica para tanto. Uma vez averiguada a capacidade econômica e deferida a assistência judiciária não se poderia afastar tal concessão caso o Juízo entenda haver litigância de Má fé, pois isso acarretaria em um entrave àqueles que tentam acessar o Poder Judiciário para discutir demandas.

Com efeito, o conceito de cidadania de “direito a ter direitos” é condicionado pela capacidade econômica da parte, caso entenda que o benefício da assistência judiciária é condicionado pela boa-fé processual e não pela capacidade econômica da parte. Assim, há uma restrição do conceito de cidadania a quem tem disponibilidade econômica, e o judiciário, dessa maneira, só será acessado por quem tiver dinheiro.

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*Ari Marcelo Solon é advogado do escritório França Ribeiro Advocacia.

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