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Súmulas de conteúdo legislativo: legitimidade e separação de poderes

Não cabe ao juiz, ao decidir sobre os conflitos sociais, criar normas jurídicas abstratas, mas apenas interpretá-las e aplicá-las.

25/8/2014

A jurisprudência, entendida como o conjunto de decisões uniformes, proferidas no exercício da jurisdição, para a solução de conflitos sociais, possui inegável relevância na esfera do Direito1.

Os tribunais aprovam, ainda, súmulas, que enunciam de forma resumida o entendimento firmado sobre certas matérias, após terem sido objeto de decisões reiteradas no mesmo sentido.

Cabe à jurisprudência aplicar as normas jurídicas aos casos concretos, de modo a disciplinar as relações sociais discutidas nos processos judiciais em consonância com o ordenamento jurídico.

A jurisdição, portanto, tem o importante papel de interpretar e aplicar, nos casos submetidos a julgamento, as normas jurídicas já existentes.

Nesse sentido, não cabe ao juiz, ao decidir sobre os conflitos sociais, criar normas jurídicas abstratas, mas apenas interpretá-las e aplicá-las, para que a pacificação social seja concretizada segundo o disposto previamente nas leis e na CF/88, as quais são aprovadas, legitimamente, pelos representantes do povo.

Em outras palavras, como é evidente, o poder jurisdicional não deve exercer funções típicas do poder legislativo.

Logo, a jurisprudência, no exercício da função jurisdicional, deve respeitar as normas legais e constitucionais existentes, atendo-se aos seus comandos e limites, não tendo legitimidade constitucional para criar regras jurídicas abstratas, nem inovar em matéria legislativa.

Estabelecidas essas premissas, nota-se em certos casos a presença de enunciados de súmulas da jurisprudência que extrapolam o seu papel de interpretar as normas vigentes, passando a estabelecer preceitos com densidade nitidamente normativa e geral, ao disciplinar determinadas matérias até mesmo em contrariedade às leis em vigor.

Ilustrando o acima exposto, cabe fazer menção à atual redação da súmula 277 do TST, aprovada em setembro de 2012, ao assim prever: "As cláusulas normativas dos acordos coletivos ou convenções coletivas integram os contratos individuais de trabalho e somente poderão ser modificadas ou suprimidas mediante negociação coletiva de trabalho".

Questiona-se qual seria o fundamento legal e constitucional para essa previsão, especialmente ao prever a integração das cláusulas normativas de convenções e acordos coletivos aos contratos individuais de trabalho.

O art. 468 da CLT, evidentemente, não tem aplicação ao caso em discussão, uma vez que trata, de forma expressa, apenas de direitos voltados à esfera do contrato individual de trabalho, na relação jurídica mantida entre empregado e empregador2.

Vale dizer, o referido preceito legal não pode ser aplicado a hipóteses que não integram o seu comando normativo, sob pena de manifesta ilegalidade, como é o caso das relações coletivas de trabalho, mais especificamente das cláusulas estabelecidas por meio de negociação coletiva de trabalho.

O art. 114, § 2º, da CF/88, por seu turno, não dispõe, em parte alguma, que as disposições previstas em acordos coletivos e convenções coletivas de trabalho integram os contratos individuais de trabalho3.

O dispositivo constitucional apenas prevê, como regra de julgamento, para nortear o juiz na decisão de dissídio coletivo, que devem ser respeitadas as condições de trabalho convencionadas anteriormente.

Aliás, na verdade, a interpretação mais atenta do art. 114, § 2º, da CF/88, revela que as disposições pactuadas por meio de negociação coletiva não integram os contratos individuais de trabalho.

Afinal, caso elas se incorporassem aos contratos de trabalho, não haveria motivo para o preceito constitucional ter de estabelecer a referida regra para o julgamento dos dissídios coletivos.

Em outras palavras, se as cláusulas normativas de acordos coletivos e de convenções coletivas de trabalho integrassem os contratos individuais de trabalho, o juiz, automaticamente, ao julgar o dissídio coletivo, já estaria obrigado a reiterar as suas previsões.

Justamente porque essas disposições convencionadas não integram os contratos individuais de trabalho é que a Constituição precisou determinar que elas devem ser consideradas pela sentença normativa.

Essa conclusão também é confirmada, no plano infraconstitucional, com a previsão no sentido de que as convenções e acordos coletivos possuem vigência limitada no tempo, conforme os comandos expressos dos arts. 613, inciso II4, e 614, § 3º5, da CLT.

Nesse sentido, inclusive, estabelecia a redação original da súmula 277 do TST: "As condições de trabalho alcançadas por força de sentença normativa vigoram no prazo assinado, não integrando, de forma definitiva, os contratos".

Ademais, já existiu lei que previa a integração dos acordos coletivos e das convenções coletivas aos contratos individuais de trabalho, mas esse diploma legal foi expressamente revogado (lei 8.542/92, art. 1º, § 1º)6.

Ora, se houve necessidade de lei estabelecer essa incorporação, isso significa que o preceito legislativo, já revogado, não pode ser restaurado pela jurisprudência, por se tratar de matéria tipicamente legislativa, fora do alcance da jurisdição.

Se a lei que previa essa integração das cláusulas normativas de acordos coletivos e convenções coletivas foi expressamente revogada, é evidente que, não mais havendo previsão normativa no sentido dessa incorporação, os referidos instrumentos normativos negociados, por terem vigência limitada no tempo, não mais integram os contratos individuais de trabalho.

Tanto é assim que a redação anterior da mencionada súmula 277 do TST, aprovada em novembro de 2009, dispunha que:

"I - As condições de trabalho alcançadas por força de sentença normativa, convenção ou acordos coletivos vigoram no prazo assinado, não integrando, de forma definitiva, os contratos individuais de trabalho. II - Ressalva-se da regra enunciado no item I o período compreendido entre 23.12.1992 e 28.07.1995, em que vigorou a Lei nº 8.542, revogada pela Medida Provisória nº 1.709, convertida na Lei nº 10.192, de 14.02.2001".

Logo, não há como se admitir que a jurisprudência legisle a respeito da matéria, de manifesta importância para as relações sociais, em exercício de atividade completamente estranha à jurisdição, por ser inerente a outros poderes constitucionais, e em sentido contrário ao que decorre do ordenamento jurídico em vigor.

Como é evidente, se o preceito legal foi revogado, no Estado Democrático de Direito, no qual a harmonia entre os poderes deve ser respeitada, não cabe à jurisprudência exercer função nitidamente legislativa, passando a dispor no sentido de lei que já foi revogada.

Mesmo porque a noticiada modificação do entendimento jurisprudencial sumulado, quando comparado com o que prevalecia anteriormente, se bem examinarmos, não foi antecedida de qualquer alteração constitucional ou legislativa, nem mesmo havendo precedentes que fundamentem a atual redação da súmula 277 do TST.

No exercício da jurisdição, não se admite que, a pretexto de decidir de forma supostamente mais justa, imponha-se a vontade e o sentimento pessoal do julgador, em manifesta contrariedade aos comandos do ordenamento jurídico.

Nota-se, portanto, que o papel a ser exercido pela jurisprudência merece efetivo e maior debate, levando em consideração as premissas constitucionais relativas à legitimidade democrática para o exercício da função legislativa.

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1 Cf. GARCIA, Gustavo Filipe Barbosa. Introdução ao estudo do direito: teoria geral do direito. 2. ed . São Paulo: Método, 2013. p. 113-117.

2 "Art. 468. Nos contratos individuais de trabalho só é lícita a alteração das respectivas condições por mútuo consentimento, e ainda assim desde que não resultem, direta ou indiretamente, prejuízos ao empregado, sob pena de nulidade da cláusula infringente desta garantia".

3 "§ 2º Recusando-se qualquer das partes à negociação coletiva ou à arbitragem, é facultado às mesmas, de comum acordo, ajuizar dissídio coletivo de natureza econômica, podendo a Justiça do Trabalho decidir o conflito, respeitadas as disposições mínimas legais de proteção ao trabalho, bem como as convencionadas anteriormente”.

4 "Art. 613. As Convenções e os Acordos deverão conter obrigatoriamente: [...] II - Prazo de vigência".

5 "§ 3º Não será permitido estipular duração de Convenção ou Acordo superior a 2 (dois) anos".

6 "§ 1° As cláusulas dos acordos, convenções ou contratos coletivos de trabalho integram os contratos individuais de trabalho e somente poderão ser reduzidas ou suprimidas por posterior acordo, convenção ou contrato coletivo de trabalho” (revogado pela Lei 10.192, de 14.2.2001)."

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*Gustavo Filipe Barbosa Garcia é professor Universitário e livre-docente pela Faculdade de Direito da USP.

 

 

 

 

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