Migalhas de Peso

Considerações sobre o atraso na entrega de obra no ramo da construção civil e o PL 178/11

A proposta PL estabelece afastamento ainda maior do papel estatal no setor, e o faz mediante violação a preceitos legais básicos, como o direito à ampla defesa e ao contraditório, bem como do devido processo legal.

17/7/2014

A aquisição da “casa própria” exprime um verdadeiro símbolo psicológico de ascensão social no Brasil. Exatamente por isso, tornou-se um sonho da maioria dos brasileiros e, por isso, é tratada com esmero não só pelo meio social, como também pelo meio acadêmico, especialmente quando se fala no Direito.

Segundo estudos1, a construção civil alcançou o patamar de 3,521 milhões de empregos gerados no país. Conforme dados oficiais do censo demográfico de 2010, promovido pelo IBGE, o Estado de São Paulo possuía 12.825.453 domicílios permanentes em sua área. O crescimento imobiliário pode ser notado por qualquer leigo e a participação do setor no produto interno produto do país só vem aumentando.

Tais fatos podem ser justificados pelo aumento do poder aquisitivo do brasileiro e pela criação de diversos instrumentos de viabilização para aquisição do imóvel para moradia. Apenas como exemplo, podem ser citados o programa “Minha Casa, Minha Vida”, que já tornou possível a entrega de 1,7 milhões de unidades imobiliárias2.

Um dos reflexos do crescimento imobiliário no Brasil tem sido a valorização dos imóveis, fato que acresce ainda mais atratividade à aquisição de unidades imobiliárias. Por conta de tal reflexo, muitos consumidores têm optado pela aquisição do chamado “imóvel na planta”, exatamente porque essa modalidade de aquisição mostra-se ‘mais’ viável em termos financeiros – seja pelo parcelamento prolongado do preço, seja pelo preço mais baixo em relação a imóveis já prontos e valorizados, seja porque o conceito de empreendimento imobiliário para as construtoras vem se aproximando de um local que também propicia lazer e bem-estar, elementos que não eram tão valorizados em anos passados – em que pese imponha a entrega de coisa futura, fato que obriga espera ao consumidor.

Como consequência natural de todo e qualquer crescimento abrupto, problemas surgiram e conflitos foram instalados. Exatamente por isso, o Poder Judiciário passou a receber uma quantia considerável de demandas que envolvem questões oriundas da entrega de imóveis adquiridos na planta.

Um dos problemas com certa recorrência tem sido o atraso na entrega da obra. Trata-se de questão que vem sendo tão apreciada pelo Poder Judiciário ao longo dos últimos anos que, em 2011, foi proposto um projeto de lei com o objetivo de fixar multa automática às construtoras e incorporadoras pelo atraso na entrega do imóvel e uma compensação financeira mensal pela continuidade do referido atraso. Comissão da Câmara dos Deputados aprovou recentemente o texto do projeto de lei, submetendo-o ao crivo do Senado Federal para trâmites finais de aprovação.

O PL traz como justificação à sua propositura quadro onde “os fornecedores de consumo que atuam no ramo de construção e incorporação imobiliária, promovendo a venda de imóveis no mercado, no exercício de tais atividades têm adotado prática comercial revestida de abusividade”.3 O PL classifica como “abusividade” a adoção de multas unilaterais e o emprego de cláusulas que constituam um prazo de tolerância de 180 dias para a entrega das unidades vendidas.

Em que pese a boa fundamentação do PL – já que os elementos que o norteiam são notabilizados pelo respeito à função social dos contratos e à boa-fé que lhes deve ser pertinente – e a intenção do legislador em resolver um problema que vem crescendo e representando celeuma no Poder Judiciário – há que se ter em mente que não vivemos em momento que sugere radicalizações dessa ordem.

Há uma necessidade ululante de respeito à função social dos contratos e à boa-fé que deve permear os negócios jurídicos. Algo também precisa ser feito para minimizar atrasos e para que o consumidor possa aguardar com segurança a entrega da unidade que adquiriu. O legislador parece enxergar tais pontos, mas conserva miopia em relação à realidade estatal brasileira.

Não é preciso conhecer a fundo o ramo imobiliário para verificar que a edificação de um empreendimento demanda esforço homérico por parte da empresa que se propõe a tanto. A burocratização imposta pelo poder público apresenta-se como problema para a construção civil.

Existe uma demora demasiada na aprovação de projetos de construção por parte das prefeituras nacionais que muito incomoda o setor. A obtenção de licenças ambientais é um desafio constante, isso porque a ausência de clareza nos procedimentos e avaliações é algo que já faz parte da realidade do ramo. Além disso, é preciso que haja maior linearidade na atividade desempenhada pelos cartórios, tendo em vista o grande número de queixas do setor quanto à falta de padronização das atividades realizadas e exigências feitas.

O atual cenário moroso estatal no ramo da construção civil tende a melhorar, principalmente porque medidas têm sido implementadas com o objetivo de minorar um problema que, hoje, pode ser classificado como endêmico no país. Segundo estudo da Booz & Company, a cidade de São Paulo tem uma pesquisa em curso para eliminar atividades desnecessárias no processo de aprovação de projetos imobiliários. A cidade de Curitiba já implementou um sistema de aprovação com base em parâmetros construtivos, fato que reduziu o tempo de espera para apenas dois meses. Tais medidas só dão contornos ainda mais indeléveis à necessidade de maior adequação do Poder Público à realidade do ramo imobiliário brasileiro.

O problema tende a não ser resolvido com a transferência de responsabilidade ao cofre das construtoras e incorporadoras. Isso porque ainda caberá ao Estado prover serviço adequado à necessidade dos mercados por meio do implemento de soluções que mantenham o mercado aquecido e com funcionamento mais célere e descatracalizado. Trata-se de operação que deve ser tratada de forma conjunta, com grande aproximação e respaldo de todos os componentes do setor. Não é exagero afirmar que este deve ser o primeiro passo para que se atinja o objetivo pretendido pela lei. Esse tipo de mudança de mentalidade será fundamental.

Dentre as disposições já aprovadas pela Câmara dos Deputados, encontra-se a imposição de multa automática de 1% sobre o valor do imóvel e uma indenização automática de 0,5% ao mês sobre o valor atualizado do imóvel.

Num ambiente de prévia aprovação final de um novo CPC que visa afastar o cerceamento de defesa imposto pelas chamadas “jurisprudências defensivas”, não é saudável que o legislador queira a aprovação de um projeto de lei que tende a engessar a defesa das empresas do ramo da construção civil, inclusive sem possibilidade de discussão judicial. É de se notar, mais uma vez, que o projeto deixa de lado a oportunidade de trabalhar em prol da citada mudança de mentalidade estatal. Mister estimular maior participação do Poder Público nesse tipo de mercado, não seu constante afastamento.

Impinge abordar, também, que obrigações diferentes devem ser tratadas de formas diferentes. A obrigação de pagar, pertencente ao consumidor, não se confunde com a obrigação de entregar o imóvel, pertencente à empresa do ramo da construção. Naturezas obrigacionais diferentes, tratos executivos diferentes. Não há mistério, principalmente porque os inadimplementos não possuem a mesma origem e não desaguam nas mesmas consequências. Aliás, a interpretação extraída dos motivos de justificação à propositura do projeto de lei esbarra em reprovável unilateralização da boa-fé no âmbito das relações consumeiristas.

A concepção primeira do CDC sempre foi o estabelecimento de equilíbrio das relações de consumo. O que se vê muitas vezes é o desequilíbrio em favor do consumidor – numa espécie de reversão da balança – que acaba por ser eximido do respeito à força obrigatória dos contratos e sendo agraciado pela complacência com relação ao comportamento contraditório nas relações contratuais (brocardo venire contra factum proprium). Parece ser considerado lícito ao consumidor desrespeitar disposições contratuais com as quais concorda, depois de ostensivamente informado, e adere no momento da contratação. A falta de pesquisa, de planejamento e de estrutura financeira para a aquisição de um imóvel muitas vezes são preteridas em detrimento da realização do “sonho da casa própria” e acobertadas por uma aplicação inadequada do CDC.

Em resumo, pode-se dizer que a intenção de se criar um PL com o objetivo de melhorar o quadro dos atrasos na entrega de obras é deveras louvável. No entanto, a questão não é meramente aritmética e não pode ser tratada com a mentalidade do PL, que estabelece afastamento ainda maior do papel estatal no setor, e o faz mediante violação a preceitos legais básicos, como o direito à ampla defesa e ao contraditório, bem como do devido processo legal. É preciso que o Estado passe a acompanhar de maneira mais próxima e parelha o crescimento do setor, comportando-se de maneira mais atenciosa não só perante às empresas do ramo, como também diante do consumidor. A criação de um PL que ponha em xeque as empresas do ramo da construção não é a solução e não vai alterar o panorama atual, somente implicará em prejuízos e no arrefecimento do setor. Espera-se melhor exame sobre a matéria e trato panorâmico sobre o tema, hoje tratado de maneira astigmata.

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1 https://www.construdata.com.br/

2 https://www.brasil.gov.br/infraestrutura/2014/06/minha-casa-minha-vida-completa-cinco-anos-com-entrega-de-1-7-mi-unidades

3 https://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=45AC5F49D5AF82F5A1A8C3BA705

2D582.proposicoesWeb1?codteor=837710&filename=Tramitacao-PL+178/2011

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* Felipe Enes Duarte é advogado do escritório CMMM – Carmona Maya, Martins e Medeiros Advogados.








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