O CDC está prestes a completar 25 anos. É inegável o avanço que este diploma legal propiciou na tutela dos direitos consumeristas, sobretudo no que diz respeito à proteção da saúde do consumidor, direito social previsto no artigo 196 da Constituição Federal e complementado pelo artigo 2º da lei 8.080/90, que dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, bem como sobre a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes. Nesse sentido, ao estatuir que os produtos não podem, em regra, gerar riscos à saúde do consumidor, certamente a sociedade, por meio do Código de Defesa do Consumidor e legislação correlata, teve como reflexo mais importante o oferecimento, pelos fornecedores em geral, de produtos dotados de maior qualidade e segurança aos consumidores.
A regra geral é de que, sempre que o consumidor sofrer danos à sua saúde ou segurança, decorrentes de vício ou defeito do produto, surgirá o dever de indenizar por parte do fabricante. No tocante aos produtos farmacêuticos a regra é a mesma: se determinado medicamento causar dano à saúde do consumidor, o fabricante deverá indenizá-lo, seja este dano de natureza material (como, por exemplo, tratamento médico), seja de natureza moral. Trata-se de raciocínio decorrente da norma contida no artigo 8º do Código de Defesa do Consumidor, que preconiza que "Os produtos e serviços colocados no mercado de consumo não acarretarão riscos à saúde ou segurança dos consumidores, exceto os considerados normais e previsíveis em decorrência de sua natureza e fruição, obrigando-se os fornecedores, em qualquer hipótese, a dar as informações necessárias e adequadas a seu respeito".
Contudo, a segunda parte deste dispositivo legal apresenta uma exceção à regra de que os produtos colocados no mercado de consumo não acarretarão riscos à saúde dos consumidores. Este comando estatui que os riscos à saúde e segurança dos consumidores, desde que normais e previsíveis, são legalmente admitidos. Trata-se do denominado risco inerente do produto. Uma grande incidência destes riscos normais e previsíveis se dá no âmbito dos produtos farmacêuticos. Alguns doutrinadores renomados assinalam, com propriedade, que a quase totalidade dos medicamentos, em razão de sua natureza, ostenta índice normal de nocividade.
Este mencionado índice normal de nocividade dos medicamentos ocorre em razão, sobretudo, da imprevisibilidade das reações fisiológicas intrínsecas de cada pessoa ao manter contato com determinada substância química presente na composição do remédio. Geralmente estes riscos normais e previsíveis são classificados como "reações adversas" ou "efeitos colaterais" do medicamento. Não podemos excluir, ainda, a possibilidade do risco à saúde do consumidor de fármaco ser decorrente de interações medicamentosas do produto, assim consideradas as alterações nos efeitos de um medicamento, em razão da ingestão simultânea de outro medicamento. Seja como for, em nosso entendimento, o fabricante do medicamento, sob a ótica do direito consumerista, não pode ser responsabilizado por fatos advindos deste "índice normal de nocividade" do produto, deste que o consumidor seja devidamente informado acerca da questão.
Importante salientar que, para que a informação acerca dos riscos seja considerada legítima e adequada, ela deve constar expressamente da bula do medicamento que, por sua vez, deve seguir os ditames da legislação regulatória sobre o tema. Nesse ponto, a informação deve estar de acordo com a Resolução nº 47 da ANVISA (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), a qual estabelece regras para a elaboração, harmonização, atualização, publicação e disponibilização de bulas de medicamentos para pacientes e para profissionais de saúde. Há quem defenda que, com o advento do atual Código Civil Brasileiro, o fornecedor passou a ser civilmente responsável por danos causados ao consumidor, ainda que decorrentes de risco inerente do produto. Este entendimento tem alicerce no artigo 931 do Código Civil, que dispõe que "Ressalvados outros casos previstos em lei especial, os empresários individuais e as empresas respondem independentemente de culpa pelos danos causados pelos produtos postos em circulação".
Nos parece equivocado este entendimento pois, pelo princípio da especialidade das normas, as disposições do Código de Defesa do Consumidor deveriam prevalecer quando se trata de relação de consumo. Ademais, a aplicação deste dispositivo do Código Civil nas relações de consumo imputaria ônus exagerado ao fornecedor de produtos, o que poderia ensejar a falta de incentivo à exploração da atividade econômica. No âmbito das indústrias farmacêuticas, qual seria a atratividade de investimentos em desenvolvimento tecnológico e científico de medicamentos, se houvesse a grande probabilidade de que tal atividade econômica naturalmente acarretar a existência de passivo indenizatório?
Certamente esse cenário mitigaria os avanços dos estudos científicos de medicamentos e ocasionaria o desinteresse de investidores neste campo comercial, prejudicando, reflexamente, o direito social à saúde. Por conta disso, entendemos que as indústrias farmacêuticas não poderiam ser responsabilizadas por fatos advindos de risco inerente ao medicamento, desde que tais fatos fossem válida e licitamente informados na bula do produto. Nesse contexto, o risco inerente deveria ser considerado como uma causa excludente de responsabilidade do fabricante do produto.
A grande questão que gera polêmica e controvérsia a respeito do assunto, refere-se aos conceitos de normalidade e previsibilidade contidos no Código de Defesa do Consumidor, os quais ensejariam a aplicação da causa excludente de responsabilidade. No âmbito judicial, pode-se dizer que somente uma prova robusta de natureza técnica, levada a efeito por profissional especializado na área farmacológica ou médica, estará apta a estabelecer se o risco pode efetivamente ser considerado normal e previsível ante a natureza do produto.
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* Luciana Goulart Penteado e Pedro Vitor Barros são, respectivamente, sócia e advogado do Demarest Advogados.