As Constituições do Brasil
Antonio Pessoa Cardoso*
O direito constitucional recebeu status de norma jurídica no pós-guerra, diferentemente do que vigorava até então, no sentido de tê-lo como princípios de natureza política; provocou larga influência nas instituições de muitas nações, dentre as quais a reconstitucionalização da Alemanha com a Lei Fundamental de Bonn de 1949 (Constituição da Alemanha); da Itália com a Constituição de 1947. Mais adiante, a redemocratização de Portugal, 1976, da Espanha, 1978, e do Brasil, 1988, contribuiu para início de um novo ciclo de cicatrização de regimes democráticos.
Os tribunais constitucionais foram a grande inovação trazida pelas leis maiores de cada Estado no período e apareceram com o objetivo de fazer cumprir a Constituição, anteriormente entregues ao controle político. Apesar deste avanço, há resistência do próprio Judiciário no exercício deste poder, a exemplo da interpretação restritiva do alcance do mandado de injunção; ao invés de complementar a norma constitucional, o STF limita-se a comunicar ao Legislativo para elaborar a lei que nunca chega. O instituto contemplado no inciso LXXI, artigo 5º, perde sua força.
Assim, o fenômeno maior da Constituição brasileira de 1988 situa-se na constitucionalização do direito, influência das ocorrências passadas principalmente na Alemanha e na Itália. Perde sentido interpretar a Constituição de acordo com os códigos para prevalecer a explicação dos códigos de acordo com a Constituição; é que o direito constitucional passa a exercer autoridade em todos os ramos do direito infraconstitucional, seja civil, penal, administrativo, comercial, etc.; sobrevém o controle difuso exercido pelos juizes e tribunais e o controle concentrado administrado pelo Supremo Tribunal Federal.
A lei maior do Brasil está prestes para entrar na maioridade, completou no início do mês de outubro dezessete anos; antes dela tivemos a Constituição Política do Império do Brasil, promulgada no ano de 1824; em seguida a primeira Constituição Republicana de 1891 que teve maior tempo de vida no novo sistema de governo, vigorou por mais de 40 anos, até 1934, quando sobreveio a segunda Constituição da República com forte inspiração alemã; em 1937, editou-se a única Constituição que dispensou discussão no Congresso Nacional, fruto do regime de força de Getúlio Vargas; em 1946 encerrou-se a ditadura Vargas com a instalação do governo democrático e nova Constituição; em 1967, outra interrupção das liberdades públicas e é promulgada a sexta Constituição, através do governo militar de 1964.
A última Constituição é tida como bastante extravagante, pela prolixidade e pelo tratamento de assuntos que não deveriam merecer apreciação constitucional, 250 artigos, acrescidos de 94 disposições transitórias. Para se ter idéia, uma das maiores Constituições do mundo, Índia de 1949, continha 395 artigos. A primeira Constituição da República, de 1891, foi a menor e dispunha de apenas 91 artigos, mais 8 disposições transitórias.
A Constituição cidadã até a presente data foi submetida a 54 intervenções, o que representa em média pouco mais de três alterações por ano. De todas foi a mais deformada na redação original, retirando-lhe características básicas. Pior, inseriu-se o instituto da reeleição, inadmitido por todas as Constituições, salvo a de 1937; permitiu-se o abuso das medidas provisórias, em nítido comprometimento do equilíbrio dos poderes. Sofreu os mais diferentes questionamentos, por meio de 3593 Ações Diretas de Inconstitucionalidade (Adins), junto ao Supremo Tribunal Federal. A primeira Adin questionava dois decretos federais e foi dada entrada no dia 13 de outubro de 1988, apenas oito dias depois de sua promulgação.
Apesar da instabilidade, da falta de regulamentação de alguns dispositivos, da prolixidade, do corporativismo, ainda assim, o balanço de sua influência sobre a sociedade pode ser considerado positivo.
A Constituição entusiasmou no caminho de redemocratização do país, atuou ativamente na redescoberta da cidadania; ampliou o campo dos direitos e garantias fundamentais; contribuiu para a conscientização do cidadão no exercício de seus direitos; conferiu aos analfabetos o direito de votar; inovou, quando, pela primeira vez, trata iguais homens e mulheres, ou, quando reconhece juridicamente a união estável entre homem e mulher, considerando família as uniões livres e concubinárias; ampliou a legitimação ativa para o efetivo acesso ao Judiciário; passou ao Estado a obrigatoriedade de defender o direito do consumidor; recuperou as garantias da magistratura; conferiu ao povo participação no governo, além de restabelecer o pluripartidarismo e a eleição direta para presidente da República, governadores e prefeitos.
O título II, que trata dos direitos e garantias fundamentais, enumerou não somente os direitos civis e políticos, mas também os direitos sociais anteriormente espalhados em outros livros. O parágrafo 1º, artigo 5º, é novidade, asseguradora de imediata aplicação das regras estatuídas nos 77 incisos. No que se refere à ampliação desses direitos merece citação aquele que consigna um meio ambiente ecologicamente equilibrado para as presentes e futuras gerações.
Ao poder público compete responsabilidade pela proteção do meio ambiente que continua degradando a vida humana no presente e, anda a passos largos, para inviabilizá-la no futuro. A conscientização deste novo direito implica em saber que não se deve contentar com a repressão ao dano ambiental, mas fundamentalmente deve-se evitar sua ocorrência.
A cidadania, na expressão do professor José Afonso da Silva, é tratada “num sentido mais amplo do que o de titular de direitos políticos. Qualifica os participantes da vida do Estado, o reconhecimento dos indivíduos como pessoa integrada na sociedade estatal (art. 5º, LXXXVII). Significa aí, também, que o funcionamento do Estado estará submetido à vontade popular”.
Em termos de manifestação popular na administração pública, tivemos duas proveitosas experiências, sob os regimes da Constituição de 1946 e 1988: em 1963, quando foi restaurado o presidencialismo, e, em 1993, quando foi escolhida a forma de governo, entre República e Monarquia. O recente referendo das armas insere-se no desvio de uso de instituto sadio manobrado para isentar os governantes da responsabilidade pelo descalabro da segurança pública no Brasil.
Nesses dezessete anos a Constituição passou por testes importantes que mostraram a força de nossas instituições. As crises econômicas não abalaram o governo; as reformas constitucionais foram feitas dentro da normalidade democrática; o impeachement de um presidente da República aconteceu sem arranhão algum no regime democrático; as cassações e prisões de ex-governadores, de senadores, de deputados, de juizes e de outras autoridades, em nenhum momento, estremeceram o sistema inaugurado em 1988. A eleição e posse de um presidente, originado do Partido dos Trabalhadores, aconteceram sem tentativa de desrespeito às leis vigentes. Registre-se que as classes empresariais e os partidos retrógrados sentiram alguma dificuldade para absorver a realidade, mas, em momento algum, pensou-se em impedir a continuação da prática democrática.
Ao lado desses triunfos, há conquistas constitucionais formais, que, infelizmente, não se materializaram. A Constituição consagrou a função social da propriedade, mas, na verdade, o capital afasta, cada dia mais, o pobre do rico. A participação do trabalhador nos lucros das empresas fica somente no texto frio da lei maior, anunciada desde 1946. O seguro desemprego, importante mecanismo alçado a nível constitucional, não ocupou espaço para restabelecer o poder de compra do trabalhador em desemprego temporário. Continua em vigência o princípio empresarial de “obter o maior lucro possível, pagando o menor salário possível”. A educação e a saúde, direito de todos e dever do Estado, tornam-se pesadelo para pais e filhos, quando buscam a matrícula nas escolas, ou quando necessitam de tratamento médico-hospitalar; o meio ambiente, expressão usada pela primeira vez em uma Constituição, é tido como bem de uso comum do povo e essência à sadia qualidade de vida. Neste contexto, o poder público é obrigado a definir, em todos os Estados, espaços territoriais a serem protegidos. Apesar de conquistas interessantes, ainda há resistência à proteção do meio ambiente, tratado pela primeira vez na lei de 1988.
O movimento Constitucionalista, unindo paulistas, mineiros e gaúchos, fez surgir a Constituição de 1934, cujo objetivo era fazer o Presidente Getúlio Vargas cumprir promessas feitas ao povo, em 1930, quando assumiu o governo; foi responsável pela instituição do voto obrigatório e secreto, extensivo às mulheres, além da criação de um título destinado à ordem econômica e social; tratou-se em caráter pioneiro da proibição da usura. Mas a principal característica do governo Vargas situou-se no desenvolvimento da legislação trabalhista.
A Carta de 1937 instalou a ditadura Vargas, que ficou no poder até 1945; de inspiração polonesa e de origem fascista permitia ao Presidente governar por decreto lei, sem controle algum do Legislativo; competia-lhe, inclusive, escolher e nomear governadores dos Estados.
A Constituição de 1946 restabeleceu a democracia no país, conferiu autonomia aos Estados e Municípios, extinguiu a pena de morte e acabou com a censura então em vigor. A primeira alteração somente aconteceu depois de quatro anos, em 1950, pela Emenda n. 1.
A Constituição de janeiro/1967 institucionalizou o golpe militar de 1964, estabeleceu forma indireta de eleição do presidente e governadores e manteve a sobrevivência de somente dois partidos políticos, criados pelo Ato Institucional n. 2 de 1965. O Ato Institucional n. 5, dezembro/1968, encarregou-se de conceder poderes ao Presidente da República para interferir nos governos estadual e municipal e no Legislativo, cassando mandatos, retirando direitos políticos e decretando recesso parlamentar; no Judiciário, suspendeu as garantias constitucionais e impediu apreciação judicial dos atos praticados pelo Chefe do Governo; foi interrompido o uso do hábeas corpus, garantidor do direito de locomoção.
A tradicional norma que vedava a usura, advinda desde 1934, não foi repetida em 1967. Aliás, os militares foram responsáveis pelo extraordinário poder conferido aos banqueiros, haja vista a edição da Lei 4.595/64, que concedeu ao Conselho Monetário Nacional poder para “liberar” taxas de juros, descontos, etc.
As Constituições de 1891 e de 1934 nasceram de anteprojetos do Executivo; a de 1946, de comissão especial, enquanto a de 1988 proveio da vontade dos próprios constituintes.
Sob o manto da primeira Constituição da República, 1891, dez meses após sua edição, o presidente Marechal Deodoro da Fonseca pelo Decreto n. 641 dissolve o Congresso Nacional, eleito em novembro/1890; vinte dias depois o novo presidente, Marechal Floriano Peixoto, anula referido decreto. O grande destaque dessa lei foi ter separado a Igreja do Estado.
A Constituição monárquica, a mais longeva, vigorou durante 67 anos, foi outorgada por D. Pedro I e ficou mais conhecida pela criação do inusitado Poder Moderador que juntamente com o Legislativo, o Executivo e o Judicial formavam os poderes políticos do Império. Na verdade, o Poder Moderador servia para aumentar a autoridade do Imperador, que segundo a Carta, era “a chave de toda a organização Política”.
Registre-se que o único país das Américas a ter uma Constituição e um governo monárquico foi o Brasil.
Sem erro fala-se que o direito presta-se para manter o status quo e impedir as imprescindíveis mudanças sociais. É que as leis são feitas pelos “representantes do povo”, que usurpam a vontade da maioria e, cada vez mais, se submetem aos desígnios dos poderosos, responsáveis pelo conteúdo das leis, voltadas para manter e ampliar seus direitos.
O Brasil é apontado entre os primeiros países em todo o mundo a ter má distribuição da renda, apesar de a erradicação da pobreza, a marginalização e a redução das desigualdades sociais constituírem um dos objetivos fundamentais da República. Nossas leis crescem em programas, mas paralisam na sua materialização.
Evidente que fatos inusitados aconteceram no país, depois da edição da Constituição cidadã. Nunca se viu, em todo o mundo, intervenção tão grande no domínio econômico, quando o presidente Collor promoveu o confisco das poupanças dos cidadãos; jamais se teve tamanha violação ao direito adquirido, ocorrida quando o Judiciário desrespeitou o direito dos aposentados, promovendo descontos nos seus ganhos já integrados aos seus patrimônios; nunca houve tanta interferência do Executivo no Legislativo como atualmente se faz através das medidas provisórias.
O perigo advertido por cuidadosos constitucionalistas e por abnegados políticos reside agora na anunciada revisão da Constituição tida como dos direitos fundamentais. A proposta de emenda está consubstanciada na PEC n. 447/05 que busca revisão, através de constituintes a serem eleitos em 2006 e a ser instalada em 15 de fevereiro de 2007. O relator da PEC já deu parecer favorável e a proposta tramita atualmente na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados e, se aprovada, irá à plenário. O quorum para decisão da emenda é reduzido de 2/3 para maioria absoluta.
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