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Agentes Políticos e Improbidade Administrativa.

Após aproximadamente dois anos de espera e debates o STF reuniu-se para decidir o mérito da Ação Direta de Inconstitucionalidade 2797, que colocava em xeque a constitucionalidade da Lei Federal nº 10.628/2002, editada nos últimos dias do governo do ex-Presidente Fernando Henrique Cardoso.

19/1/2006


Agentes políticos e improbidade administrativa

Gustavo Russignoli Bugalho*

No dia 15 de setembro de 2005, o Supremo Tribunal Federal, após aproximadamente dois anos de espera e debates, reuniu-se para decidir o mérito da Ação Direta de Inconstitucionalidade 2797, que colocava em xeque a constitucionalidade da Lei Federal nº 10.628/2002, editada nos últimos dias do governo do ex-Presidente Fernando Henrique Cardoso e alterava o artigo 84 do Código de Processo Penal.

Entre as alterações realizadas pela referida lei estava a inserção dos parágrafos 1º e 2º no referido artigo 84 do CPP, que respectivamente garantiam o foro por prerrogativa de função aos ex-titulares de mandatos públicos em processos que versassem sobre os atos praticados durante o mandato e estendiam, ou, explicitavam, tal garantia de foro nos casos dos feitos visando punição por atos de improbidade administrativa regulados pela lei 8.429/92.

Não obstante a pertinência da matéria tratada lei 10.628/02 em razão da atual conjuntura jurídico-política do país, que se depara com a irrestrita gama de possibilidades de condenação do agente público por atos muitas vezes de manifesta boa-fé que vem causando uma verdadeira panacéia jurídica em relação à aplicação indiscriminada pelo Ministério Público da referida lei 8.429/92, o que se denota de inconteste temeridade ao princípio da segurança jurídica que deve estar amplamente presente num Estado Democrático de Direito, sobretudo na Administração Pública haja vista a indisponibilidade do interesse público que se vê constantemente ameaçada por tal insegurança, o Supremo Tribunal Federal ao decidir a ADIN referida no início do presente estudo julgou-a totalmente procedente, entendendo pela existência de inconstitucionalidade na referida lei 10.628/02 pelo fato da matéria naquela tratada ter caráter meramente constitucional e por isso regulável apenas através de Emenda Constitucional.

A decisão do Supremo Tribunal Federal, todavia, não foi unânime, contando com votos vencidos dos Ministros Eros Grau, Gilmar Ferreira Mendes e Ellen Gracie, que davam apenas parcial provimento à ADIN ao entender, em suma, que dever-se-ia aplicar ao caso concreto o que se denomina atualmente de “interpretação conforme a Constituição”.

Tais considerações se fazem necessárias haja vista que o foco central do presente artigo tem pertinência direta com o voto emitido pelo Eminente Ministro Eros Grau.

Ao analisar a questão do foro por prerrogativa de função em casos de ações punitivas por ato de improbidade administrativa com fundamento na lei 8.429/92, o festejado Ministro adentrou em questão de suma importância para o âmbito administrativo brasileiro e seus agentes administradores, que vem sendo discutida através de diversas Reclamações Constitucionais, especialmente na RCL-2138-6 de relatoria do Min. Presidente Nelson Jobim, que versa, entre outras questões, sobre a possibilidade de o agente político constitucionalmente submetido ao regime de responsabilização Político-Administrativa, se ver submetido, também, ao crivo das hipóteses da lei 8.429/92.

Ressaltou o Ministro, em seu voto, no sentido de que o agente político constitucionalmente submetido à punibilidade por crimes de responsabilidade cujas condutas tipificadas coincidam com as condutas elencadas nos artigos 9º, 10º e 11º da lei 8.429/92, não poderá ser processado e punido com base nesta última, haja vista a maior especificidade dada ao regime de punição por Crime de Responsabilidade Político-Administrativa pela Constituição Federal, o que, entendendo-se o contrário, ao se aplicar também a lei 8.429/92 poder-se-ia estar correndo o risco de se aplicar penas, que, embora supostamente eivadas de caráter civil, teriam funções explicitamente penalizadoras de igual ou superior rigorosidade às determinadas pela legislação específica relativa aos Crimes de Responsabilidade especificamente determinados pela Constituição Federal, constituindo, assim, o temeroso bis in idem, ou seja, a dupla punição de um mesmo agente por penas de mesma natureza em razão de um mesmo ato.

É o que se pode depreender da interpretação das palavras prolatadas pelo respeitável Ministro:

"E não se pode admitir a transformação de uma nítida ação da natureza penal ou punitiva, a ação por ato de improbidade disciplinada pela Lei n. 8.429/92, em ação de caráter reparatório.

Insista-se neste ponto: o elemento central da ação de improbidade não é reparatório. Para persegui-la, o ordenamento coloca à disposição da sociedade tanto a ação popular quanto a ação civil pública, que não se superpõem àquela, nem entre si, caracterizadas por objeto e efeitos absolutamente distintos.

Se por um lado --- rechaçada a interpretação conforme dos §§ 1º e 2º do art. 84 do CPP, na redação a eles conferida pela Lei n. 10.628/02 --- esses parágrafos esbarram nas competências atribuídas constitucionalmente aos Tribunais Superiores, o entendimento contrário esvazia outra competência destes órgãos, a de processar e julgar os agentes sujeitos a sua jurisdição.

Não há como conceber a convivência de uma ação de improbidade, de nítidos efeitos penais e responsabilidade política, com uma ação penal correspondente, por crime de responsabilidade, ajuizadas perante distintas instâncias judiciais. Não é este o sentido normativo do art. 37, § 4º da Constituição Federal."

Isto fica ainda mais claro, quando ao prosseguir seu voto, o Eminente Ministro explicita claramente:

"A solução a adotar-se para a superação dessa contradição estaria em ter-se que o § 2º não alcança os agentes políticos referidos na Lei n. 1.079/50 (lei que define os crimes de responsabilidade dos agentes políticos e regula o seu processo de julgamento).

Vale dizer: os agentes políticos cuja conduta de improbidade já é prevista na lei que pune o crime de responsabilidade não estariam sujeitos à ação de improbidade, como regulada na Lei n. 8.429/92. Esta lei não se aplicaria a quem, pelos mesmos fatos, já está sujeito a crime de responsabilidade. A lei especial (de 1950) afastaria a incidência da lei geral (de 1992).

Essa interpretação evitaria distorções e estaria de acordo com o que venho sustentando, em especial quando afirmo a "nítida natureza penal ou punitiva" da ação por ato de improbidade disciplinada pela Lei n. 8.429/92 --- que não se confunde com ação de caráter reparatório.

Repetindo o que afirmei há pouco, não há como conceber a convivência de uma ação de improbidade, de nítidos efeitos penais e responsabilidade política, com uma ação penal correspondente, por crime de responsabilidade, ajuizadas perante distintas instâncias judiciais. Pois bem: se ambas as ações buscam soluções punitivas para os mesmos atos, não há como nem por que admitir a existência coincidente de ambas. Se for assim, o problema não estará mais em coexistirem as duas ações em instâncias diferentes, mas na própria incidência de duas leis penais sobre um mesmo fato. Não há razão para o bis in idem. A punição da autoridade, cujo ato de improbidade está tipificado como crime de responsabilidade, já estaria prevista na lei que cuida da sua situação específica"

Desta forma também entendeu o Ministro Nelson Jobim ao decidir pedido liminar na Reclamação nº 2138-6, já citada no voto do respeitável Ministro Eros Grau, que ainda continua em regular trâmite e pendente de decisão final.

"O que se indaga é se o texto constitucional admite a concorrência entre dois regimes de responsabilidade política-administrativa para os agentes políticos: (a) o previsto no art. 37, § 4º, e regulado pela Lei n. 8.429, de 1992, e (b) o regime de crime de responsabilidade fixado no art. 102, I, "c" da, Constituição e disciplinado pela Lei n. 1.079, de 1950.

Os atos de improbidade, enquanto crimes de responsabilidade, estão amplamente contemplados no Capítulo V da L. 1.079, de 10/4/1950. Ela disciplina os crimes de responsabilidade (Dos crimes contra a probidade na administração - art. 9º). A pena prevista também é severa (art. 2º - perda do cargo e inabilitação para o exercício de função pública pelo prazo de até cinco anos). Por outro lado, a teor do art. 3º da L. 1.079/1950, a imposição da pena referida no art. 2º não exclui o processo e julgamento do acusado por crime comum, na justiça ordinária, nos termos das leis processuais penais.

Assim, em análise preliminar, não parece haver dúvida de que os delitos previstos da L. 1.079/1950, tais como os arrolados na L. 8.429/92, são delitos político-administrativos. É certo que se a competência para processar e julgar a ação de improbidade (CF, art. 37, §4º) abranger também atos praticados pelos agentes políticos, submetidos a regime de responsabilidade especial, ter-se-á uma interpretação ab-rogante do disposto no art. 102, I, "c", da Constituição. Se, ao contrário, se entender que aos agentes políticos, como os Ministros de Estado, por estarem submetidos a um regime especial de responsabilidade, não se aplicam as regras comuns da lei de improbidade, há que se afirmar a plena e exclusiva competência do STF para processar e julgar os delitos político-administrativos, na hipótese do art. 102, I, "c", da Constituição.

Conclui-se também, num juízo preliminar, que, na segunda hipótese, não se cuida de assegurar ao agente político um regime de imunidade em face dos atos de improbidade. O agente político há de responder pelos delitos de responsabilidade perante os órgãos competentes para processá-lo e julgá-lo.

Também não impressiona, nesta fase inicial de análise, a consideração segundo a qual a ação de improbidade seria dotada de caráter reparatório. A simples possibilidade de superposição ou concorrência de regimes de responsabilidade e, por conseguinte, de possíveis decisões colidentes exige uma clara definição na espécie. Os conflitos entre poderes e desinteligências institucionais decorrentes dessa indefinição de competência também parecem recomendar um preciso esclarecimento da matéria.

Dos elementos aduzidos sugerem a plausibilidade jurídica do pedido e a notória relevância jurídico-política do tema. De outro lado, há o risco pela mora, consistente na possibilidade de julgamento das ações por órgãos judiciais absolutamente incompetentes. Defiro a liminar. Suspendo a eficácia da sentença reclamada. Susto a tramitação do processo até posterior deliberação. Solicitem-se informações. Após, vista ao Sr. Procurador-Geral República.

Brasília, 11 de setembro de 2002.

Ministro Nelson Jobim "

Desta forma, o que discute é se aos agentes políticos submetidos ao regime de crimes de responsabilidade pela lei 1.079/50 e pelo Decreto-Lei 201/67 também poderiam se submeter ao regime da Lei de Improbidade Administrativa, haja vista que em ambas está presente a tipificação de iguais condutas delitivas, sendo imprescindível alertar-se ao fato de que em ambas se verifica um criterioso e rigoroso sistema punitivo de caráter penal.

Seria temerário que o agente político, notadamente o Administrador Público, que em virtude de sua responsabilidade para com a Res Publica e sua ampla gama de atribuições, razão pela qual é de sua prerrogativa uma maior liberalidade decisória, que além do mais já é detentor de um regime constitucional próprio e específico de responsabilização por seus delitos políticos-administrativos, tais como o Presidente da República, os Ministros de Estado, os Ministros do Supremo Tribunal Federal, Governadores e Prefeitos Municipais, especialmente este último, se vissem na condição de, precariamente serem a qualquer momento processados em primeiro grau por atos muitas vezes cometidos em estrita necessidade de se evitar uma lesão maior ao erário.

Sabe-se com plenamente que qualquer processo de caráter punitivo no qual esteja presente no pólo passivo a figura de um agente político será indubitavelmente movimentado pela pressão política existente e constante nos interesses por sua condenação, em especial na órbita de um Município, pressões das quais é impossível a qualquer ser humano, ainda que de reconhecido profissionalismo, se manter alheio e imparcial.

Talvez por esta razão, a Constituição Federal, ao prever o regime de Responsabilidade de tais agentes políticos, notadamente os Prefeitos Municipais, previu também, no art. 29 X, que estes seriam processados e julgados perante o Tribunal de Justiça do Estado.

Desta forma, ao se proceder, conforme vem ocorrendo com constância, o processamento de tais agentes em primeiro grau com base nos termos da lei 8.429/92, se estaria jogando “pelo ralo” os princípios constitucionais fundamentais do juiz natural (art. 5º, LIII), do devido processo legal, bem como do ne bis in idem, conforme já tem observado nas deliberações do Supremo Tribunal Federal, haja vista a inconteste existência de regulamentação de especificidade mais estrita aplicável aos delitos de responsabilidades político-administrativas cometidos por tais agentes.

Tais práticas vão trazer em breve momento, incontestavelmente, à Administração Pública, conseqüências desastrosas em razão da latente insegurança jurídica que, e a cada vez mais, o agente político administrador se observa, com a proliferação indiscriminada da atuação do Ministério Público no nível do Município.

É visível que o Órgão citado vem a cada dia atuando com maior afinco em fiscalizar os atos dos agentes políticos com rigores muitas vezes excessivos e até baseados em denúncias de munícipes motivadas por razões meramente de índole políticas, assim instaurando procedimentos denominados “cíveis”, que, todavia, como já mencionado pelos Ministros acima arrolados, têm caráter estritamente “penais”.

Assim, em nossa ótica, demonstra-se absolutamente inconstitucional a aplicação dos termos da lei 8.429/92 aos agentes políticos submetidos a regime próprio de responsabilização político-administrativa, notadamente ao Prefeito Municipal cujo procedimento específico para sua responsabilização e tipificação dos delitos puníveis se encontra encartado no Decreto-Lei nº 201/67 e a competência originária para seu julgamento prevista no artigo 29 X da Constituição Federal.

Desta forma, em caráter conclusivo, em razão do que acima se expôs, tal posicionamento encontra-se em consonância com o que tem sido entendido decisoriamente pelo Supremo Tribunal, sendo, desta forma, passível de prestação jurisdicional direta da citada Côrte Constitucional através de instrumento próprio previsto a ser proposto, recebido e analisado perante o referido Tribunal para fim de se garantir a autoridade das decisões sobre a questão emanadas por seus integrantes nos processos já citados, promovendo assim o devido acatamento e as sinceras homenagens à nossa Carta Maior, garantidora da festejada aplicação do efetivo Estado Democrático de Direito.

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*Advogado atuante no Direito Público, bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de Franca/2004, Especializando em Direito Constitucional pelo Centro de Extensão Universitária/SP.





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