“A Perfeição” é um notável conto de Eça de Queiroz, no qual ele evoca o canto V da "Odisseia" para narrar, à sua maneira, o repouso forçado de Ulisses na “ilha divina” da deusa Calipso, que se apaixona pelo herói grego, prisioneiro em seus braços durante longos sete anos.
Desesperado de tédio nesse exílio, saudoso de seu reino e de sua esposa Penélope, eis que de repente ele é liberado, por ordem de Zeus, e se prepara para partir numa jangada construída pelas próprias mãos, saturado de respirar naquele domínio onde tudo era eternamente, abusivamente perfeito.
No adeus dirigido à inconsolável Calipso, Ulisses prorrompe num longo discurso, externando todos seus sentimentos à deusa escandalizada:
“O meu coração saciado já não suporta esta paz, esta doçura e esta beleza imortal. Considera, oh Deusa, que em oito anos nunca vi a folhagem dessas árvores amarelecer e cair. Nunca este céu rutilante se carregou de nuvens escuras. ...Todas essas flores que brilham nas hastes airosas são as mesmas. ...E há lírios que odeio pela impassibilidade da sua alvura eterna! ...Estou privado de ver o trabalho, o esforço, a luta e o sofrimento... Não posso mais com esta serenidade sublime!”
E prossegue Ulisses com a mesma eloquência. Ao ouvir a resposta da deusa gabando tudo o que seu hóspede iria perder, “minha Ilha perfeita, entre os meus braços perfeitos”, neste ponto Odisseu pronuncia sua palavra final e irredutível, “com um brado magnífico”:
“- Oh Deusa, o irreparável e supremo mal está na tua perfeição!” (Eça de Queiroz, “A Perfeição”, do livro “Contos”, Lello & Irmão Editores, Porto, 1947).
O conto de Eça “A Perfeição” pode ser lido como crítica, senão um libelo, contra o mito do Progresso que nasceu no Iluminismo do século 18 e dominou totalmente o século 19, primeiro com o Positivismo, depois com o socialismo e o marxismo, apontando para a Idade de Ouro, na qual seria atingido o máximo esplendor da perfeição na justiça social e no humanismo, numa civilização tão perfeita como na ilha de Ogígia.
Eça de Queiroz, ironizando os esplendores da Ilha divina, repele, igualmente, os exageros da idealização positivista e socialista da futura idade de ouro, pretendendo ser fiel à sua doutrina realista.
Mas como falar hoje em “realismo”, se a realidade conhecida mudou tanto, e passou a incluir tantas coisas e informações tão fantásticas, que até a ciência, (a física, por exemplo,) está cada vez mais próxima da ficção científica em seus lances mais audaciosos? Ser realista hoje é ser cada vez mais poeta.
O homem precisa do mito para se humanizar, como precisa do sol para viver. Mas, assim como ele conserva certa distância do sol, para não ser tragado por ele, deve conservar com o mito certa distância regulamentar, para não ser consumido e aniquilado por ele, expondo-se ao mesmo perigo de Ulisses, sufocado pelos poderes da Ilha perfeita nos braços perfeitos da encantadora ninfa que o devorava de carinhos.
____________
* Gilberto de Mello Kujawski é escritor e jornalista, autor do ensaio O sentido da vida.