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O crime e a razão

Uma das faces mais trágicas da criminalidade violenta é seu efeito devastador sobre a razão. Contaminadas pelo pânico, mesmo inteligências insuspeitas sucumbem ao discurso dominante de que, na "guerra contra o crime" que se pretende travar em nosso país, o terror penal é arma aceitável.

28/5/2003

 

O Crime e a Razão

 

Rafael Tucherman*

 

Uma das faces mais trágicas da criminalidade violenta é seu efeito devastador sobre a razão. Contaminadas pelo pânico, mesmo inteligências insuspeitas sucumbem ao discurso dominante de que, na "guerra contra o crime" que se pretende travar em nosso país, o terror penal é arma aceitável. Sob essa ótica, o debate sobre segurança pública empobreceu-se a tal ponto que, atualmente, resume-se a propostas de leis mais rigorosas, aumento de tipos e sanções penais, construção de presídios de segurança máxima e implantação de regimes de cumprimento de pena cada vez mais severos. Enfim, generalizou-se a crença de que o remédio está na crescente supressão de direitos e garantias do acusado e condenado.

Argumentar em contrário parece inútil. Basta ver a saraivada de críticas lançadas contra o recém-criado Movimento Antiterror para se perceber que não há espaço para reflexão nesse espinhoso terreno. Não por acaso, o manifesto do Movimento foi rebatido menos por seu conteúdo e mais pelo fato de seus autores serem, em maioria, advogados criminalistas. Compreende-se: o modo mais fácil de defender opiniões é desqualificar quem as desafia. Bem mais complicado seria sustentar a discordância caso, vencida a superficialidade das classificações, fosse analisado o mérito dos argumentos.

Afinal, como pregar a utilidade da elevação de penas quando se depara com a inexorável realidade de que grande parte dos crimes praticados sequer chega ao conhecimento das autoridades? De que adianta acrescer mais anos ao encarceramento em nossos presídios infectos e superlotados, definitivas escolas da delinqüência? Qual a justificativa para isolar presos por até dois anos (!), ao arbítrio do diretor do presídio, quando se sabe que medidas brutais como essas impossibilitam a ressocialização de seus milhares destinatários em potencial - e não só do Fernandinho Beira-Mar da vez -, além de criarem campo fértil à corrupção e ao surgimento de organizações criminosas?

Mais ainda: por que monopolizar a questão da segurança pública no âmbito repressivo, esquecendo-se progressivamente da prevenção do delito? A sociedade civil e o Estado devem deixar que o crime ocorra para só então atuar? O papel da família, da escola, da comunidade no combate ao delito é menos relevante que o poder da polícia?

O desinteresse pela análise dessas e de tantas outras indagações é reflexo direto da despreocupação em sustentar, científica e empiricamente, o pretendido vínculo entre endurecimento penal e controle da criminalidade violenta. Não por acaso excluem-se do debate estatísticas e estudos abalizados sobre segurança pública: é o que torna a pregação do terror penal verdadeira profissão de fé, insuscetível de mínima confrontação lógica.

Essa aversão à racionalidade é responsável pela difusão do mito que contrapõe o confronto à violência e o respeito aos direitos do cidadão. A crença cega na eficácia do sistema penal generalizou a idéia de que aqueles que lhe pretendem impor os necessários freios, de forma a zelar pela preservação das garantias dos acusados e apenados, compactuam com o avanço da criminalidade.

Atribuir ao recrudescimento das leis papel relevante na contenção da delinqüência é incorrer em grave equívoco. De um lado, significa ignorar o limite natural das normas penais, que só atuam quando já consumado o crime, e cuja aplicação depende de fatores dificilmente controláveis - como, por exemplo, o índice de comunicação da ocorrência do delito à polícia e a operacionalidade das instâncias formais de controle, desde a delegacia até a penitenciária. De outro, leva à intensificação do encarceramento e de suas conseqüências perversas, especialmente a estigmatização que costuma conduzir o egresso do cárcere à reincidência.

 

No fim das contas, o discurso do terror penal esconde a profunda indiferença que marca nosso tempo. O clamor pela brutalidade repressiva traz em si o secreto desejo de confinar mais que os Fernandinhos, Batorés e Andinhos da ocasião. Pretende-se, sim, impor regimes disciplinares diferenciados a todos os excluídos que atormentam nossa ilusória paz.

Nessa marcha da insensatez que segue a pleno vapor, quantas prisões serão suficientes para confinar os delinqüentes em potencial que pululam nos porões de nosso país?

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*advogado do escritório Ráo, Cavalcanti & Pacheco Advogados, membro do IDDD (Instituto de Defesa do Direito de Defesa) e do Movimento Antiterror.

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