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Aspectos procedimentais da suscitação de dúvida

Lei de registros públicos dispõe que oficiais são civilmente responsáveis prejuízos que causarem, por culpa ou dolo, aos interessados no registro.

4/10/2013

Os serviços notoriais e de registros públicos são exercidos em caráter privado, por delegação do Poder Público, e têm como finalidade a autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos. Por este motivo, os oficiais devem ser rigorosos em relação à forma no exercício de sua atividade.

Para garantir tal rigor, a lei 6.015/73 (lei de registros públicos) estabelece em seu art. 28 que os oficiais são civil e criminalmente responsáveis por todos os prejuízos que, pessoalmente, ou por prepostos ou substitutos que indicarem, causarem aos interessados no registro, por culpa ou dolo.

Neste sentido, as diversas situações com que se deparam os registradores e, por outro lado, a responsabilidade envolvida na atividade registral, ensejam muitas vezes, a formulação de exigências pelos registradores para a prática de um determinado ato, com as quais não concordam os interessados, ou até mesmo que não podem ser atendidas. Ante tal situação, prevê a lei de registros públicos o procedimento de dúvida, objeto deste breve estudo.

A exigência é ato administrativo, por escrito, que enuncia ao interessado as causas impeditivas do registro pretendido1.

Então, prevê a lei de registros públicos o procedimento de dúvida, que submete ao poder judiciário, em atividade de caráter eminentemente administrativo, o acerto da exigência formulada pelo cartório, chancelando ou não a atitude do oficial e direcionando as providências a serem tomadas pelo interessado no registro.

Segundo Walter Ceneviva, "dúvida é pedido de natureza administrativa, formulado pelo oficial, a requerimento do apresentante de título imobiliário, para que o juiz competente decida sobre a legitimidade da exigência feita, como condição de registro pretendido".2

Note-se que não se trata de uma dúvida do registrador a ser resolvida pelo Judiciário em uma espécie de consulta3. Trata-se de procedimento administrativo, por meio do qual o Judiciário se manifesta sobre o entendimento do cartório, ante a existência de um inconformismo do interessado.

O procedimento está previsto no art. 198 da lei 6.015/73, abaixo transcrito:

Art. 198 - Havendo exigência a ser satisfeita, o oficial indicá-la-á por escrito. Não se conformando o apresentante com a exigência do oficial, ou não a podendo satisfazer, será o título, a seu requerimento e com a declaração de dúvida, remetido ao juízo competente para dirimí-la, obedecendo-se ao seguinte:
I - no Protocolo, anotará o oficial, à margem da prenotação, a ocorrência da dúvida;
Il - após certificar, no título, a prenotação e a suscitação da dúvida, rubricará o oficial todas as suas folhas;
III - em seguida, o oficial dará ciência dos termos da dúvida ao apresentante, fornecendo-lhe cópia da suscitação e notificando-o para impugná-la, perante o juízo competente, no prazo de 15 (quinze) dias;
IV - certificado o cumprimento do disposto no item anterior, remeter-se-ão ao juízo competente, mediante carga, as razões da dúvida, acompanhadas do título. (grifou-se)

Como se verifica do texto legal, a dúvida somente pode ser declarada pelo oficial, não sendo possível, como já o foi antes da lei 6.015/73, a chamada "dúvida inversa", que era dirigida ao juiz diretamente pela parte, sem intermediação do oficial de registro. O STF inclusive já se pronunciou neste sentido (RE 77.966).

Não obstante, cumpre registrar que a jurisprudência tem entendido, frente ao princípio da inafastabilidade da jurisdição, que o procedimento de dúvida pode ser suscitado pelo interessado na hipótese de negativa do cartório. Nestes casos, o juiz deverá notificar o registrador para que este se manifeste4. A título de ilustração, os seguintes julgados:

EMENTA: MANDADO DE SEGURANÇA. REGISTRO IMOBILIÁRIO. RECUSA DO OFICIAL EM EFETUAR REGISTRO DE DOCUMENTO. INADMISSIBILIDADE DO MS PARA SUSCITAR DÚVIDA INVERSA A RESPEITO DE REGISTRO. DÚVIDAS SOBRE FATOS NÃO COMPROVADOS. - A Lei de Registros Públicos não cria hipótese de admissão da chamada "dúvida inversa". Entretanto, a doutrina e a jurisprudência têm admitido o seu manejo pelo particular quando o Oficial do Cartório não a suscita, em razão do princípio constitucional da inafastabilidade da jurisdição, tal como previsto no art. 5º, XVVV, da Carta Maior, ao dispor que "a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça de lesão", bem como do princípio do acesso à justiça. - Se há incertezas quanto à efetivação do registro pretendido, cabe ao titular do registro de imóveis suscitar dúvida ao juízo. Caso assim não proceder, compete à parte formular reclamação perante o juiz competente. - O mandado de segurança, de índole constitucional, é via imprópria para suscitar dúvidas relativas a registro de imóveis, não se prestando como substitutivo do procedimento específico para tais hipóteses, geralmente povoadas de dúvidas sobre os fatos, insanáveis nesta via. (TJMG - Apelação Cível 1.0079.12.037855-3/001, Relator(a): Des.(a) Wander Marotta , 7ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 14/05/2013, publicação da súmula em 17/05/2013)

APELAÇÃO - REGISTROS PÚBLICOS - SUSCITAÇÃO DE DÚVIDA INVERSA- INÉRCIA DO OFICIAL - POSSIBILIDADE. - A despeito da ausência de previsão legal, em razão do princípio constitucional da inafastabilidade da jurisdição (art. 5º, XXXV, da CF), deve ser admitido o manejo da dúvida pelo interessado no registro, quando o Oficial do Cartório se abstém de suscitá-la, consistindo no que se chama de 'dúvida inversa'. (TJMG - Apelação Cível 1.0024.09.585043-4/001, Relator(a): Des.(a) Elias Camilo, 3ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 11/03/2010, publicação da súmula em 30/03/2010)

Após declarada a dúvida pelo oficial, o procedimento a ser seguido é o previsto nos incisos do dispositivo legal acima transcrito, e nos artigos seguintes: primeiramente procederá o oficial à prenotação, para garantir eventual direito de preferência no registro, anotando a existência da dúvida.

Certificado no título a prenotação e a suscitação de dúvida, o oficial rubricará todas as suas folhas. Após, o próprio oficial notificará o interessado, para que possa impugnar a declaração no prazo de 15 dias, e tão somente após o decurso de tal prazo é que as razões da dúvida serão remetidas ao juiz competente. Ressalte-se que ainda que não seja apresentada impugnação a dúvida será julgada (art. 199 da lei 6.015/73).

Recebidas as razões da dúvida, o juiz ouvirá o MP, e se não forem necessárias diligências, a dúvida será julgada de pronto procedente ou improcedente.

Cumpre registrar que, como ensina Loureiro:

"é pacífico o entendimento de que nesse tipo de procedimento não possam ser produzidos outros tipos de prova, como a testemunhal ou a pericial. Ainda que os partícipes no processo de dúvida não requeiram providências, o juiz pode determina-las de ofício, uma vez que a verdade registral deve espelhar a verdade real"5.

O julgamento da dúvida tem como limite o aspecto regulamentar dos registros públicos6. "No processo de dúvida não se pode discutir se houve implemento, ou inadimplemento de obrigações, suas consequências jurídicas"7. Assim, de acordo com o art. 204 da lei 6.015/73, a decisão da dúvida não impede o uso do processo contencioso competente.

Contra a sentença, é cabível apelação pelo MP, que atua como custos legis, pelo interessado e pelo terceiro prejudicado (art. 202 da lei de registros públicos). Por meio de referido dispositivo legal, conclui-se que é possível a intervenção de terceiro no processo de dúvida, pois se este pode recorrer, também pode participar de todos os atos processuais. Contudo, ressalta Loureiro que "somente é possível a intervenção de terceiro (...) por meio de assistência, sendo vedadas outras formas, tais como a oposição, chamamento ao processo, nomeação à autoria etc."8.

Ainda chama-se atenção para o fato de, segundo referida norma, não ter o cartório legitimidade para recorrer da decisão que julga a dúvida. E não poderia ser diferente, pois obedecidas as formalidades legais para o registro, o oficial, que exerce função pública, deve promover o ato, que não interfere em sua esfera de direito, não havendo, portanto, que se cogitar de seu interesse ou não em registrar.

Ainda sobre a fase recursal, entende-se que não é cabível outro recurso que não apelação e embargos declaratórios. Nenhum outro recurso deve ser admitido (embargos infringentes, recurso especial, etc), pois a mens legis é propiciar um pronunciamento judicial célere e pouco oneroso9.

Esta restrição é ainda justificada por Walter Ceneviva pelo fato de ser a dúvida "procedimento de jurisdição graciosa, em que não há contraditório entre partes interessadas, mas entre o serventuário, que não tem interesse material a proteger com a suscitação, e o suscitado"10.

Se a dúvida for julgada procedente – ou seja, o registro realmente não pode ser efetuado – deve o interessado arcar com as custas do processo (art. 207). Por outro lado, em caso de procedência, o oficial deverá promover o registro do título, arquivando-se a sentença em cartório. Neste caso não há custas, pois o registrador não tem interesse na causa, não sendo parte, como já explanado.

Por fim, questão que suscita controvérsias acerca da matéria é a necessidade de constituição de advogado para que o interessado se manifeste nos autos do procedimento.

Em que pese as considerações de Loureiro, que entende ser desnecessária referida formalidade, tendo em vista o caráter meramente administrativo do procedimento, a finalidade do instituto e os consideráveis ônus que recairão sobre o interessado11, Walter Ceneviva apresenta o entendimento mais fundamentado.

Ainda que revestido de caráter administrativo, o procedimento se dá em juízo, e, nesse caso, somente é dispensada a constituição de advogado em casos expressos em lei. Se a parte não pode arcar com honorários, caberá ao Estado prestar a necessária assistência jurídica12.

A par das dificuldades ainda encontradas para analisar o instituto da suscitação de dúvida - que, como qualquer temática referente à lei de registros públicos, é matéria ainda não muito explorada pela doutrina e não conta com pacificados entendimentos da jurisprudência – conclui-se que o procedimento se revela como importante instrumento à disposição do jurisdicionado. Isso porque nossa ordem jurídica vigente tem o serviço registral como cerne da segurança jurídica nos negócios e, ao mesmo tempo, conta com os particulares, civil e criminalmente responsáveis, como executores desta atividade, o que poderia, não fosse a possibilidade de incluir o Judiciário na controvérsia, acarretar um engessamento do sistema registral.

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1 CENEVIVA, Walter. Lei dos Registros Públicos. 20ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2010. f. 511
2 CENEVIVA, Walter. Lei dos Registros Públicos. 20ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2010. f. 507
3 Neste sentido, a jurisprudência:
EMENTA: DIREITO REGISTRAL - APELAÇÃO - SUCITAÇÃO DE DÚVIDA, DE OFÍCIO, PELO OFICIAL DE REGISTRO DE IMÓVEIS - IMPOSSIBILIDADE - PROCEDIMENTO DE CONSULTA - AUSÊNCIA DE PREVISÃO LEGAL - AÇÃO EXTINTA - RECURSO PREJUDICADO. Nos termos do artigo 198 da Lei de Registros Públicos, não se admite a ""suscitação de dúvida"" de oficio, pelo oficial de registro; tampouco há na lei previsão de 'procedimento de consulta'. (TJMG - Apelação Cível 1.0051.11.001019-9/001, Relator(a): Des.(a) Moreira Diniz , 4ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 28/06/2012, publicação da súmula em 24/07/2012)
4 LOUREIRO, Luiz Guilherme. Registros Públicos: Teoria e Prática. 4ª Ed. São Paulo: Método, 2013. p. 369
5 LOUREIRO, Luiz Guilherme. Registros Públicos: Teoria e Prática. 4ª Ed. São Paulo: Método, 2013. p. 364
6 Exemplifica-se com um julgado:
EMENTA: PROCEDIMENTO DE DÚVIDA - EXAME DOS REQUISITOS FORMAIS DO TÍTULO PELO OFICIAL DO REGISTRO DE IMÓVEIS - PRESCRIÇÃO DO ITCD - DISCUSSÃO PRÓPRIA DAS VIAS ORDINÁRIAS – DÚVIDA PROCEDENTE. - Cabe ao Tabelião, no procedimento de dúvida, examinar a presença de requisitos formais do título apresentado a registro, escapando de sua competência apreciar questões de direito, tal como a prescrição de tributo incidente sobre a transmissão do bem. - Constatada a pendência quanto ao pagamento do ITCD,procedente a dúvida suscitada pelo oficial. - Preliminar PREJUDICADA. - Recurso não provido. (TJMG- Apelação Cível 1.0024.12.283063-1/001, Relator(a): Des.(a) Heloisa Combat , 4ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 20/06/2013, publicação da súmula em 27/06/2013)
7 CENEVIVA, Walter. Lei dos Registros Públicos. 20ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2010. f. 514
8 LOUREIRO, Luiz Guilherme. Registros Públicos: Teoria e Prática. 4ª Ed. São Paulo: Método, 2013. p. 365
9 LOUREIRO, Luiz Guilherme. Registros Públicos: Teoria e Prática. 4ª Ed. São Paulo: Método, 2013. p. 368
10 CENEVIVA, Walter. Lei dos Registros Públicos. 20ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2010. f. 514
11 LOUREIRO, Luiz Guilherme. Registros Públicos: Teoria e Prática. 4ª Ed. São Paulo: Método, 2013. p. 368
12 CENEVIVA, Walter. Lei dos Registros Públicos. 20ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2010. f. 518

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* Moema Campos de Oliveira Zocrato é advogada do escritório Homero Costa Advogados.

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