Embora já estivesse formado havia três anos (Turma de 1974), já advogando e orientador voluntário dos alunos estagiários no Departamento Jurídico do XI de Agosto, participava de um ato público pela democratização do Brasil no Largo de São Francisco enquanto o coronel Erasmo Dias comandava a repressão, com a Polícia Militar, agindo sob suas ordens, marcava os manifestantes com tinta vermelha das mangueiras d'água, de modo a serem identificados e presos em qualquer lugar da cidade que estivessem depois.
Não só os manifestantes foram atingidos pela tinta, mas também a fachada da Faculdade e, assim, revoltado, aproximei-me e, cara a cara, interpelei o coronel se ele tinha noção que estava ele exorbitando em suas funções, sujando O Templo do Direito, a Escola da Justiça e eu mesmo respondi: "Acho que não, porque o senhor nem deve ter noção do que isso significa".
Fazendo aquela cara de ódio que o caracterizava, olhou-me incrédulo e irado com a interpelação e deu ordens ao policial militar que o acompanhava: "quando mandar atirar, atira" ao que respondi: "atira nada coronel, não aqui na frente do Povo e da Imprensa, o Senhor só mata e tortura nos porões da ditadura, aqui não teria coragem. Enquanto põe a Polícia contra a Democracia o povo está sem segurança nas ruas".
Assim, no dia seguinte, na companhia de alguns antigos e então atuais alunos e algumas cervejas, reunidos na sede do Centro Acadêmico XI de Agosto, resolvemos que pediríamos "emprestado" o enorme boneco do macaco "King Kong" de quatro a cinco metros de altura que anunciava o filme homônimo em um cinema central de São Paulo, visando o necessário desagravo à Velha e Sempre Nova Academia.
Da ideia à prática. No dia seguinte convocamos o aluno Julio Valente, cujo pai era proprietário de uma empresa de transportes, para nos trazer um caminhão de grande carroceria e nele colamos os dizeres "Paris Filme S/A".
Reunidos no Bar da Garagem do Lopes, "A Garagem América", um estacionamento localizado na rua Riachuelo, saímos tarde da noite rumo ao cinema, munidos de uma "Ordem de Serviço" quase perfeita, escrita com "letratex" em papel branco e outra duas vias , uma com papel rosa e outra azul.
Lá chegamos acompanhados de um caminhão da TV Globo alertada anteriormente do projeto e de uma garota que trabalhava nas ruas da vizinhança, bem vestida, de saia curta como se fosse uma atriz, alguns colegas de roupa jeans e camiseta, passando por trabalhadores e esse que relata o fato vestido de terno e gravata como um executivo da "Paris Filme S/A".
Subimos os degraus da rua até o saguão do cinema onde estava a terrível e peluda criatura, dentes ameaçadores arreganhados e braços em posição de ataque. Apresentei-me ao segurança como diretor da empresa, exibindo uma "Ordem de Serviço" e que ali estávamos para levar o macaco para os estúdios da Globo, a fim de produzir um comercial do filme, entregando-lhe uma das vias da tal "Ordem de Serviço" O segurança não "engoliu" muito aquela conversa, dizendo que não sabia de nada e não iria se responsabilizar pela entrega.
"Problema seu", alguém retrucou, "vamos levar assim mesmo".
"Podem levar" disse eu com entonação de autoridade e todos prontamente levantaram o bicho e o levaram para o caminhão que já estava com o motor ligado, dando rápida partida rumo à rua Riachuelo, rua paralela atrás do Largo de São Francisco onde há uma entrada secundária para a Faculdade. As aulas já tinham se encerrado. O prédio estava vazio.
Entramos na Faculdade e na "Sala dos Estudantes", amplo e alto anfiteatro destinado a reuniões dos alunos, localizada na ala dos fundos faculdade (cujas chaves nos foram emprestadas por um solidário funcionário de espírito acadêmico), onde escondemos até a manhã do dia seguinte a terrível e assustadora fera.
Retirado do seu esconderijo nas primeiras horas da manhã seguinte, foi levada com pompa e circunstância ao Largo de São Francisco, colocado sobre o Parlatório do "Território Livre", onde centenas de alunos da nossa Faculdade e de outras Faculdades da USP, previamente convocados pelo Centro Acadêmico, gritavam em uníssono: "Erasmo Kong, Erasmo Kong", enquanto bolas de papel, cadernos, livros e outros objetos eram lançados em sua direção, numa "chuva" de lavar a honra da São Francisco.
A Faculdade estava vingada, veio a democracia e com ela as eleições livres, o direito de defesa, de reunião, de opinião, os injustamente exilados voltaram ao seu país, e seus atuais e antigos alunos, professores e funcionários são "Soldados da Reserva" prontos a entrarem em combate contra qualquer ameaça a esses valores, dos quais a Velha e Sempre Nova Academia não abre mão.
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* Paulo Afonso Lucas é advogado e um dos participantes ativos no evento do "King Kong das Arcadas"