"(...) currency matters are too far for Prime Ministers, and ought to be left to experts, provided they represent the nation and not “collective interests".
(Cristopher Story, MA, International Current Review, Londres e Nova York, 1992, v. 21, p. 27, nº 4).
O Banco Central do Brasil, como se sabe, foi criado pela lei 4.595/64, como resultado da transformação e ampliação das antigas funções da SUMOC - Superintendência da Moeda e do Crédito. Pela sua excelência, essa lei tem se mantido sem alterações de fundo durante todos estes quase cinquenta anos de vida, tendo sobrevivido até mesmo à CF/88.
Uma das questões muito debatidas desde então tem se referido ao fato de que o legislador brasileiro, diferentemente de outros no Direito Comparado, deixou de conferir ao BCB plena autonomia que, resumidamente, se fundaria na designação de seus administradores de forma técnica e não política, os quais exerceriam mandatos com prazos determinados de duração, dos quais somente poderiam ser demitidos em circunstâncias extraordinárias, atendido o devido processo legal.
A história do BCB tem sido ao longo dos anos de sua existência forjada pelo exemplo de um pêndulo, que mostra momentos de autonomia e momentos (os mais duradouros) da falta desta qualidade em relação ao governo central (diga-se a Presidência da República e o ministro da Fazenda). Falou-se em autonomia de fato e não de Direito, quando ela se manifestou, o que ocorreu em nível significativo no último governo, contra todas as expectativas em contrário.
Como defensor da autonomia dos BCs, entendo que ela é necessária para resguardar a moeda mediante uma política monetária consistente e de longo prazo, afastada da frequente gangorra em que os governos se colocam, pela falta de solidez das instituições e de programas econômicos de longo prazo, fato do qual o Brasil tem sido um mau exemplo em todo o planeta, dentro do rol dos países democráticos, ou ao menos assim chamados.
No Direito Comparado os BCs autônomos apresentam-se sob duas modalidades principais, os que têm como competência tão somente a estabilidade da moeda em luta permanente contra a inflação; e outros que a essa função agregam a preocupação com o nível de emprego, procurando realizá-las dentro de uma média ponderada, pois muitas vezes elas se colocam em posições contrárias.
Nos termos da lei 4.595/64, a competência do CMN - Conselho Monetário Nacional e do BCB é exclusivamente reservada à estabilidade da moeda nacional, sendo-lhes estranhos outros objetivos. As pessoas lúcidas, dotadas de um mínimo de conhecimento econômico (e as donas de casa estão empiricamente nesta categoria) sabem muito bem que a inflação é um grande mal para qualquer economia e que não existe inflação boa e inflação ruim, como também, alguém já disse, não existe meia gravidez.
A própria meta atual de inflação perseguida pelo BCB, da ordem de 4,5% a.a. é muito elevada quando comparada com outros países, sendo muito fácil se observar que pela mera soma aritmética de sua persistência ao longo de dez anos, o seu somatória seria de 45%, ou seja, ela teria corroído praticamente a metade do poder de compra dos detentores da nossa moeda. Mas o pior é que ela disparou, tendo superado o teto da meta de 6,5%, que é um eufemismo para dizer que o controle se perdeu.
Um dos instrumentos mais importantes de que os BCs dispõem para o exercício de sua função de guardiões da moeda está na utilização da chamada política monetária. Paul Einzig, um dos renomados autores que se tem debruçado sobre a matéria, disse que embora a expressão seja usada com frequência por especialistas e operadores do direito, geralmente não tem havido a preocupação em conceituá-la ("A Textbook on Monetary Police", Macmillan-St. Martin Ed., Edimburgo, 1972, p. 34). A tarefa é ingrata, pois além de corresponder a um objeto muito fluido, esse instituto pode ser examinado sob diversos aspectos. O autor acima, no mesmo texto citado, procura simplificar um pouco o problema, dizendo que ela corresponderia às medidas tomadas em relação ao sistema monetário sob sua responsabilidade, pela autoridade política competente, com caráter ativo ou passivo, envolvendo a aplicação das medidas necessárias à preservação do poder de compra da moeda.
Talvez inadvertidamente eu tenha colocado a minha colher de pau nesse angu, a definição do que seja política monetária não se encontraria dentro de parâmetros objetivos, mas relacionada e limitada, por sua vez, aos conceitos de política fiscal e política econômica. Haveria, ainda, uma ligação com a política bancária, envolvendo o plano do crédito, afetado negativa ou positivamente pelas taxas de juros, cabendo no Brasil a fixação da taxa básica de juros da economia a cargo do COPOM - Conselho de Política Monetária do BCB, sabendo-se que nem toda a atividade bancária tem relação com a taxa de juros (vide Bancos Centrais no Direito Comparado, Malheiros Editores, São Paulo, 2005, pp. 71 e segs. e 155 e segs., passim)..
Diante do quadro acima, verifica-se facilmente que muitas vezes o governo entra em conflito com os BCs, na medida em que não somente toleram, mas estimulam certo nível de inflação (que mais tarde deixam de poder controlar, conhecemos bem esta história), além da prática de juros artificialmente estipulados em índice baixo, com o fim de estimular o consumo, o que levaria ao crescimento da indústria, do comércio e dos serviços, servindo assim ao buscado desenvolvimento. Não foi outra coisa que fez o governo atual, tendo contado com a cumplicidade do BCB (diferentemente do ocorrido nos dois governos anteriores), até que a embarcação começou a afundar e a água chegou ao pescoço. Nossa presidente e seu ministro da fazenda, nesse sentido, fizeram o mesmo papel do mau capitão italiano, que, havendo procurado cortejar quem não devia, fez adernar a embarcação, enterrando-a próxima à costa, com um salvamento que ainda não se deu, em função dos elevados custos e da imensa dificuldade técnica que estão envolvidos. O mesmo se dá agora na busca de um retorno a um patamar que seja, enfim, menos desfavorável quanto ao custo da moeda, sabendo-se que a inflação estourou a boca do balão e estava em vias de assumir outro voo para a estratosfera.
E aí? Bem, o BCB que havia se deixado conduzir pelos sonhos escorregadios do governo e baixou a Selic quando este assim desejou, refém de mistérios que somente o futuro desvendará, de repente mudou a sua orientação e voltou a elevar aquela taxa, prometendo que isto é somente o começo. Praticou o seu autoresgate, ainda que tardiamente e a um custo extremamente elevado para a economia.
No caso do malfadado navio italiano, o capitão fugiu primeiro e deixou que os passageiros se virassem como pudessem. Bem, o capitão e o imediato da economia brasileira ainda estão no barco, atropeladamente utilizando as mais diversas e desesperadas medidas para salvá-lo, jogando passageiros e carga costado abaixo, para ver se sobra alguma coisa. O navegador caiu fora e está tentando lançar barcos salva-vidas para socorrer os náufragos. Tarde para muitos, mas esperamos que ainda sejam úteis para outros.
Diante desse quadro assustador, o BCB ainda tem de lidar com uma frequência indesejada, com a quebra de alguns bancos (cujo número chega a quase uma dezena nos últimos três anos). Isto porque a estabilidade da moeda também depende de um sistema financeiro estável e seguro, sob pena de risco sistêmico, que uma vez instalado desorganiza todo o mercado financeiro e, via de consequência toda a economia. E nisto também aquele órgão terá o seu quinhão de culpa pela perda da oportunidade do melhor momento da intervenção em determinado banco problemático, como muito recentemente teria ocorrido com o BVA.
Estão aí credores com baixa perspectiva de salvamento dos seus recursos, cabendo aos operadores do direito quebrarem a cabeça para encontrarem algum caminho mais eficiente, com perdas minoradas. Mas isto é outra história.
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* Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa é professor de Direito Comercial da Faculdade de Direito da USP e consultor do escritório Mattos Muriel Kestener Advogados.