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Certeza do direito e os recursos repetitivos

Tribunais ignoram o entendimento do STJ sobre legalidade da cobrança das Tarifas de Abertura de Crédito e de Emissão de Carnê.

2/7/2013

No último dia 23/5, atendendo ao pedido da FEBRABAN, o STJ determinou a paralisação de todos os processos, em qualquer juízo ou instância, em que se discuta a legalidade da cobrança de Tarifas de Abertura de Crédito e de Emissão de Carnê (TEC). A decisão foi tomada no âmbito de recurso especial recebido no STJ como recurso representativo de controvérsia (REsp 1.251.331/RS), no qual a FEBRABAN ingressou como amicus curiae.

Segundo a FEBRABAN, posto que o STJ já tenha pacificado o entendimento pela legalidade da cobrança dessas tarifas, desde que devidamente contratadas e em taxas compatíveis com o mercado, há 285 mil processos em curso sobre tema, pois juízes e tribunais ignoram o entendimento do STJ e declaram a cobrança ilegal. A decisão a ser tomada no recurso representativo deverá confirmar o entendimento atual do STJ e implicar: (a) imediata rejeição dos recursos pendentes, quando a decisão recorrida for coincidente com a posição do STJ; ou (b) imediato reexame da causa pelo tribunal quando a decisão recorrida colidir com a posição do STJ.

O caso possibilita algumas reflexões sobre os limites dos mecanismos processuais de supressão de incerteza, como os recursos representativos de controvérsia, em que a decisão proferida em um único recurso é aplicada, automaticamente, a toda uma massa de recursos que tratem de questões similares.

A incerteza decorrente da sujeição do conflito a uma decisão judicial é um problema tão antigo quanto a própria diferenciação desses processos de decisão que, aos poucos, substituem os antigos mecanismos de violência e rituais religiosos. Técnicas para supressão dessa incerteza aparecem de forma cíclica na história do direito, acionando e moldando sua evolução pela interação certeza/incerteza.

Entre nós, nas últimas décadas, a questão adquiriu contorno próprio: como o juiz é livre para interpretar a lei, as partes seriam incentivadas a levar ao Judiciário questões em que já há entendimento pacificado nos Tribunais Superiores (para tentar a sorte na “loteria judiciária), gerando assim sobrecarga de trabalho, lentidão processual e mais decisões divergentes que reiniciam o ciclo de incerteza.

As reformas processuais das últimas décadas partem, em larga medida, desse tipo de descrição da incerteza. Nesse sentido, a súmula vinculante e os recursos representativos, além de todo um arsenal técnico voltado a dificultar, nos Tribunais Superiores, a admissão de recursos que discutam teses puramente jurídicas. Técnicas similares foram adotadas pelas Monarquias absolutistas, que viam no interpretativo praticado pelos juízes das nobrezas regionais um obstáculo à centralização do direito (a lex editada pelo Rei). Essas técnicas compreendiam a proibição da interpretação do direito (a não ser pelo Monarca), proibição da citação de doutrinadores em decisões judiciais, compilações oficiais da legislação, a simplificação do Direito em verbetes claros, curtos e reunidos em um código completo e harmônico (Codificação) e, naturalmente, a força de lei conferida aos assentos e estilos (jurisprudência) da Corte, que vai ganhando progressiva competência revisional das decisões dos juízes locais.

Esses recentes mecanismos possuem ainda limites e perigos, muitas vezes relegados em nome do objetivo maior da celeridade processual. Em nome da celeridade, releva-se a vocação desses mecanismos para, por meio da organização hierárquica dos Tribunais, interferir politicamente no mérito da atividade jurisdicional. Releva-se também a diminuição do nível de acesso à justiça, chamada de “desjudicialização dos conflitos” (ignorando que, desjudicializados, os conflitos tendem a encontrar outros canais, como o dinheiro ou a violência).

Interessam-me, contudo, os limites desses mecanismos para produzir certeza jurídica. O direito positivo moderno se define pela própria variabilidade. O sentido da norma é, sempre, fruto de decisões legislativas, judiciais ou contratuais e, portanto, se apresenta, sempre, como suscetível a alternativas. Toda interpretação, está sujeito a uma nova interpretação. Nenhuma súmula vinculante pode sacralizar o sentido da norma e impedir futuras interpretações. A par disso, quando se fala em decisões judiciais, tem-se que o direito nos Tribunais não é um direito de teses puras, mas também de fatos.

A posição do STJ é emblemática: ao passo em que fixa a regra (legalidade das tarifas) deixa explícito (poderia ter deixado implícito, daria na mesma) que: (a) a cobrança deve estar prevista no contrato; e (b) seu valor deve ser compatível com o mercado (AgRg no REsp 1.003.911/RS). Exceções que dependem da interpretação do contrato, do mercado, do que foi prometido, do que foi informado etc.

Em outras palavras, ao dizer que a cobrança é legal, o STJ não fez muito mais do que o legislador. Ao menos em princípio, o STJ não decidiu, nem poderá decidir, a uma só vez, todos os 285 mil processos. Continua necessário, a partir da regra geral da legalidade da cobrança, analisar os fatos, contratos etc. Ainda podem surgir outras teses invocando outras condições para que essas tarifas sejam consideradas legais (por exemplo, que a contraprestação foi efetivamente realizada).

O exemplo mostra que os mecanismos de supressão de incerteza, embora arriscados, nem sempre são aptos a diminuir o número de processos ou mesmo gerar certeza. Na verdade, a fixação de interpretação a partir de precedentes tende a gerar a necessidade de mais interpretação, pois o sentido da regra é atrelado (ou deveria ser) ao sentido do caso que originou o precedente (do qual se extrai a ratio decidendi que orienta técnicas de distinguishing e overruling para saber quando o precedente se aplica).

Mas, se no direito moderno a incerteza é inevitável, isso não significa que não se possa extrair alguma certeza desse direito. A arbitragem contemporânea é um exemplo bom. Há um consenso de que a arbitragem não só é mais rápida, mas também menos imprevisível. Mas não há jurisprudência nem (em regra) instância recursal a vincular a interpretação do direito pelo árbitro. A certeza do direito que a arbitragem propicia se pauta na racionalidade inerente ao sistema, isto é, na expectativa de que haverá uma análise (interpretação) cuidadosa e detalhada de todas as questões e normas referentes ao caso, com a tendência de favorecer a parte que tem razão.

Gosto de pensar que, em matéria de certeza, o direito tem mais a aprender com a arbitragem do que com as técnicas absolutistas de controle da interpretação judicial.

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* Tiago Cardoso Vaitekunas Zapater é advogado associado do escritório Trench, Rossi e Watanabe Advogados.

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