Migalhas de Peso

Problemas extrajurídicos do Estado de Direito e a edição da lei justa

É preciso haver uma conscientização dos aparelhos estatais e da sociedade para que o Direito veja sua versão programática alcançada.

30/5/2013

Ao classificar como injusta uma lei, corre-se o risco de cometer um pleonasmo, aquele mesmo vício de linguagem de “descer para baixo” ou “sair para fora”. O objetivo deste artigo diminuto não é estabelecer uma definição de justiça, uma vez que através dos milênios houve uma série de tentativas sem um consenso. Todavia, a despeito disto, é possível apontar de acordo com o caso a noção entre o que é justo e injusto, certo e errado, na maioria das vezes. O presente texto visa a provocar a consciência dos juristas acerca do nosso sistema e do nosso papel na sociedade.

O ponto de partida que se pretende fixar é a constatação de que quando um determinado grupo ascende ao poder, ele irá se rodear de todas as defesas possíveis para não ter esta qualidade retirada. Pode-se afirmar isto, porque, após a Revolução Francesa, o princípio da legalidade foi introduzido para a proteção da burguesia, nova classe dominante, face aos abusos do monarca absolutista, trazendo teorias para legitimação do novo sistema que protegiam contra ataques de grupos não pertencentes a estas classes dominantes, bem como garantir a exigência de seus direitos frente a qualquer autoridade.

Outro exemplo bem definido – também muito divulgado – é o caso dos regimes nazifascistas totalmente fundamentos nas suas respectivas constituições e sistemas legais, quando se concluiu que a lei não deve ser cumprida pelo status a ela concedido, sendo obrigatório observar a norma a qual ela se refere, bem como seu fundamento moral correspondente.

Com isto, advém a queda do extremismo do positivismo e a ascensão da efetividade dos direitos e princípios fundamentais, ocorrendo uma mudança na forma pela qual se fundamenta a legitimação da ocupação do poder. Restou evidente que a força atribuída pela coercibilidade da lei, por si, não traz a legitimação; era preciso convencer de que a política adotada é melhor para gerar a relação simbiótica e harmônica entre o Direito e a sociedade.

O professor Michele Taruffo ensina que processo é resultado da cultura de determinada sociedade. De acordo com a ideologia existente em determinada época na sociedade, a busca pelo atingimento dos objetivos entendidos como importantes irá criar mecanismos de sua realização. Desta forma, a ideologia, os fundamentos morais de determinada sociedade, ganham grau de juridicidade e criam um sistema em torno do qual será composto todo o ordenamento jurídico.

O nosso ordenamento contemporâneo é montado hodiernamente seguindo esta mesma corrente de legitimação pelo convencimento, tendo como núcleo o princípio da dignidade da pessoa humana, trazendo uma série de princípios norteadores que balizam a atuação do Estado e da sociedade para a consecução deste fim.

Porém, a pergunta real a ser feita é: até que ponto, tratando-se do caso brasileiro especificamente, a finalidade do ordenamento é de garantir a todo indivíduo o desenvolvimento completo de sua personalidade?

Uma sociedade na qual o caso mensalão é apenas um dentre tantos outros envolvendo corrupção gritante, não pode ser exposto este tipo de assertiva sob pena de resultar numa tentativa de iludir o cidadão.

Impõe-se apontar para o fato de que há, no mínimo, passividade dos outros poderes, pois a Constituição estabelece meios de controle concomitantes entre os poderes estatais na aplicação do check and balances da separação de poderes. Os meios de controle devem sair do papel e serem levados ao mundo concreto de forma a não tornar a constituição mero instrumento de legitimação de convencimento, mas um diploma de normas atuantes e efetivas, chegando a cada um de seus destinatários da sociedade.

A determinação meramente formal de uma finalidade, sem dispor dos meios para a sua concretização é esvaziar o seu conteúdo e utilizá-la como simples discurso de legitimação. É nesta esteira que se concedem alguns benefícios à maioria da população, gerando certo grau de contentamento. Daí, temos os exemplos do CDC, da CLT e a EC 72/13 (PEC das Domésticas).

Estes diplomas reconhecem a desigualdade social existente no país, mas concedem instrumentos tão somente imediatistas de resolução, sem atingir a raiz dos problemas. O CDC estabelece indenização contra o empresário que descumprir alguma das garantias ali especificadas, mas não combate, por exemplo, o fato de que muitas vezes é mais econômico para o prestador de serviço não cumprir o estabelecido em lei e responder uma ação do que realizar a adequação de sua atividade, como ocorre com os bancos e as operadoras de telefonia.

Nisto temos a passividade dos Poderes Executivo e Judiciário, no sentido de não fixar vultosas multas e indenizações para este tipo de práticas. Nos Estados Unidos, o Judiciário aplicava severas indenizações às sociedades empresárias que causavam danos aos consumidores, fazendo com que as grandes companhias montassem seu próprio núcleo de resolução de conflito de maneira a evitar maiores problemas para ambas as partes.

Entretanto, voltando ao nosso país, é preciso que o indivíduo vá ao Poder Judiciário para tentar obter um direito, que em tese, está resguardado por lei. Há a utilização da jurisdição para o retardamento e óbice à realização do que é devido ao particular, que precisa remanejar tempo e atenção que deveriam ser para o trabalho, para procurar o Judiciário, refletindo tais efeitos maléficos em diversos aspectos de sua vida ou simplesmente renunciar, porque os prejuízos podem ser ainda maiores.

O poder controlador concede com uma mão, sabendo de todas as dificuldades extrajurídicas e o mecanismo se esvazia do mesmo jeito, desvirtuando a função jurisdicional, mesmo quando ela é bem intencionada.

Porém, como cobrar uma atuação que não seja pró-empresário, quando é esta classe que custeia as campanhas eleitorais e os detentores destes mandatos criam e aplicam estas leis e escolhem os membros que preenchem os grandes cargos dentro do Judiciário?

Estas premissas aqui expostas fazem pensar em como o Direito é utilizado como instrumento de opressão sob o manto democrático, demonstrando como o problema da obtenção da dignidade da pessoa humana está fora do mundo jurídico, assim como alguns de seus reflexos como o acesso à justiça e a superlotação do Judiciário, direito à educação, saúde e erradicação da fome.

É preciso haver uma conscientização dos aparelhos estatais e da sociedade para que o Direito veja sua versão programática alcançada e haja um reflexo mútuo entre uma população preparada e Estado competente a fim de que a nossa Constituição deixe de ser um papel e passe a ser uma norma de caráter concreto.

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* Irapuã Santana do Nascimento da Silva é mestrando em Direito Processual na UERJ.

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