O governo do Estado de São Paulo baixou o decreto 58.918/13, no dia 28/2/2013 alterando o artigo 426-C do RICMS/SP – Regulamento de ICMS do Estado de SP – trazendo mais um capítulo nas chamadas guerras fiscais.
Nos termos do decreto 58.918/13, o Estado de SP se auto elegeu competente para exigir o ICMS nas operações interestaduais devido a outro Estado, toda vez que este outro Estado conceder incentivos fiscais sem autorização do Confaz. Assim, pretende cobrar para si o imposto que deixou de ser exigido pelo Estado competente.
De acordo com o decreto 58.918/13, o ICMS correspondente ao valor do benefício ou incentivo deverá ser recolhido até o momento da entrada da mercadoria no território de São Paulo e a Secretaria da Fazenda divulgará os benefícios ou incentivos concedidos por outras Unidades da Federação para fins de cálculo do valor a ser recolhido.
Desta forma, o governo paulista ao invés de glosar os créditos nas operações interestaduais incentivadas sem concordância do Confaz, como vinha fazendo, alterou seu procedimento cobrando o ICMS correspondente ao valor do benefício ou incentivo do adquirente paulista, inclusive nas operações sujeitas à substituição tributária.
Tal decreto, no entanto, é inconstitucional e ilegal.
Nas operações interestaduais (mercadoria comercializada entre Estados) o vendedor calcula e recolhe ICMS ao Estado onde está estabelecido. Nestas operações as alíquotas são de (i) 7% nas saídas das unidades da federação das regiões Sul e Sudeste (exceto Espírito Santo), destinadas às regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste e para o Espírito Santo; ou (ii) 12% nos demais casos.
Na hipótese de uma mercadoria sair, por exemplo, do Rio de Janeiro para São Paulo, o estabelecimento vendedor localizado no Rio de Janeiro recolhe 12% de ICMS para o Rio e, em contrapartida, o adquirente da mercadoria em SP se apropria de um crédito de 12%. Quando o comprador em SP revende a mercadoria para outrem localizado dentro do Estado de SP, a alíquota incidente será de 18% (valor da alíquota interna de ICMS SP para a maior parte das mercadorias). Desta forma, o imposto efetivamente arrecadado no Estado de São Paulo será equivalente a 6% do valor da mercadoria adquirida em outro ente federativo, pois o contribuinte paulista tinha um crédito de 12%.
Pois bem, as leis brasileiras proíbem que um Estado conceda isenção, incentivo ou benefício fiscal relativo ao ICMS de modo unilateral, sem prévia celebração de convênio intergovernamental no âmbito do Confaz. Ocorre que alguns Estados concedem incentivos para os grandes atacadistas e indústrias se instalarem nos seus territórios que consiste na redução do ICMS, sem autorização de Convênios, (prática inconstitucional e ilegal, por ferir o artigo 155, § 2º, inc. XII, letra "g", da CF/88 e a LC 24/75).
Tomando por base o exemplo dado, imagine que o Rio de Janeiro, sem autorização de Convênio no âmbito do Confaz, ao invés de exigir os 12% de ICMS na operação interestadual, cobre apenas 6%. Quando a mercadoria chega em São Paulo, o comprador paulista continua tendo direito ao crédito de 12%, muito embora tenha pago somente 6%.
O governo paulista, descontente com esta situação publicou o Comunicado CAT 36/2004 estabelecendo que o crédito do ICMS correspondente à entrada de mercadoria remetida a estabelecimento localizado em território paulista, por estabelecimento localizado em outra unidade federada que se beneficie destas espécies de incentivos fiscais, somente será admitido até o montante em que o imposto tenha sido efetivamente cobrado pela unidade federada de origem. Vale dizer, São Paulo não admitia que o contribuinte paulista se creditasse de 12%, mas apenas de 6%, considerando o exemplo dado.
Ocorre que um sindicato paulista levou a questão ao Tribunal de Justiça, alegando a ilegitimidade do Comunicado CAT 36/2004.
O Tribunal decidiu que a política paulista de glosa de créditos de ICMS oriundos de incentivos fiscais considerados ilegais, concedidos por outros Estados à revelia do Confaz não deve prevalecer, afastando as restrições do Comunicado CAT 36/2004.
Segundo o Tribunal de Justiça, qualquer irregularidade praticada pelo Estado onde se localiza o vendedor da mercadoria deve ser levada ao Poder Judiciário que irá decidir a questão, que não pode ser "corrigida" por ato do Poder Executivo. Vale dizer, o Governo Paulista não pode pretender fazer ele próprio a justiça impondo restrições aos créditos dos contribuintes. Se se sentir lesado, deve procurar o Judiciário a quem cabe analisar a questão. Referida decisão não foi alterada pelo Supremo Tribunal Federal. Eis um trecho do julgado do TJ: "Os supostos benefícios "fiscais" instituídos por lei devem ser impugnados pela via própria, e não obviados por mero ato normativo infra-legal"(Processo 518.847.5/5-00 julgado pela 7ª Câmara de Direito Público de SP).
Vale dizer, se é verdade que a concessão de benefícios fiscais unilateralmente é inconstitucional, também é inconstitucional impedir o uso do crédito, ou seja, não pode uma norma inconstitucional ser coibida por outra norma também inconstitucional.
Com a decisão do Tribunal de Justiça, o Estado de São Paulo mudou de tática, pois pretende agora exigir o ICMS que deixou de ser cobrado em outros Estados ao invés de glosar os créditos. Contudo tal estratégia também é inconstitucional e ilegal, pois:
- Viola o princípio da estrita legalidade em matéria tributária, segundo o qual é proibido aos Estados exigir ou aumentar tributo sem que a lei estabeleça (art. 150, I, da CF/88) e a lei deve ser complementar. Não pode o Estado de São Paulo cobrar ICMS por meio de Decreto baixado pelo governador, visto que não se trata de lei, mas ato do executivo;
- Contraria a partilha de competência tributária, porquanto é o estado de origem, onde está estabelecido o vendedor, o sujeito ativo do ICMS nas operações interestaduais (art. 155, § 2º, I e XII, “d”, da CF/88 c/c Lei Complementar nº 87/96 art. 11, I);
- Ao estado da localização do adquirente da mercadoria, como no caso de São Paulo, cabe o ICMS correspondente à diferença entre a alíquota interna e a interestadual e nada mais (art. 155, § 2º, VIII, da CF/88);
- Viola ainda, o artigo que proíbe aos Estados, estabelecer diferença tributária entre bens e serviços, de qualquer natureza, em razão de sua procedência ou destino (art. 152 da CF/88) e consequentemente viola o princípio da isonomia (artigo 150, II da CF/88);
- Aumenta, por via indireta, o valor do ICMS nas operações interestaduais, violando a competência do Senado Federal, a quem cabe determinar as alíquotas do ICMS para operações interestaduais (art. 155, § 2º, VIII, da CF/88).
O Supremo Tribunal Federal analisando questão do ICMS do comércio eletrônico já decidiu nos termos do que foi dito acima. Transcrevo:
"CONSTITUCIONAL TRIBUTÁRIO. IMPOSTO SOBRE OPERAÇÕES DE CIRCULAÇÃO DE MERCADORIAS E PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS DE COMUNICAÇÃO E DE TRANSPORTE INTERESTADUAL E INTERMUNICIPAL. LEI 6.041/2010 DO ESTADO DO PIAUÍ. LIBERDADE DE TRÁFEGO DE BENS E PESSOAS (ARTS. 150, V E 152 DA CONSTITUIÇÃO). DUPLICIDADE DE INCIDÊNCIA (BITRIBUTAÇÃO – ART. 155, § 2º, VII, B DA CONSTITUIÇÃO). GUERRA FISCAL VEDADA (ART. 155, § 2º, VI DA CONSTITUIÇÃO). MEDIDA CAUTELAR DEFERIDA.
Tem densa plausibilidade o juízo de inconstitucionalidade de norma criada unilateralmente por ente federado que estabeleça tributação diferenciada de bens provenientes de outros estados da Federação, pois:
(a) Há reserva de resolução do Senado Federal para determinar as alíquotas do ICMS para operações interestaduais;
(…)
(c) No caso, a Constituição adotou como critério de partilha da competência tributária o estado de origem das mercadorias, de modo que o deslocamento da sujeição ativa para o estado de destino depende de alteração do próprio texto constitucional (reforma tributária). Opção política legítima que não pode ser substituída pelo Judiciário.
Medida liminar concedida para suspender a eficácia prospectiva e retrospectiva (ex tunc) da lei estadual 6.041/2010". (ADI 4565 MC, Relator: Min. Joaquim Barbosa, Tribunal Pleno, julgado em 07/04/2011, DJe-121 de 24-06-2011)
Finalmente destaco que, com este Decreto, o Governo de São Paulo procura fazer "justiça" sem passar pelo crivo do Judiciário e sem norma específica do Congresso Nacional. O nosso direito não admite este tipo de procedimento (justiça com as próprias mãos).
Por isto o Supremo Tribunal Federal também já decidiu que "os entes federados não podem utilizar sua competência legislativa privativa ou concorrente para retaliar outros entes federados, sob o pretexto de corrigir desequilíbrio econômico, pois tais tensões devem ser resolvidas no foro legítimo, que é o Congresso Nacional" (ADI 4705 MC-REF, Relator: Min. Joaquim Barbosa, Tribunal Pleno, julgado em 23/02/2012, DJe-119 de 18-06-2012).
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*Amal Nasrallah é sócia do escritório Pacífico, Advogados Associados.
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