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Uma terceira via na repressão às infrações econômicas

Deve haver na repressão às infrações econômicas uma terceira via entre o Direito Penal e o Administrativo, com a adoção de alguns princípios do Direito Penal no campo do ilícito administrativo.

12/5/2003

Uma terceira via na repressão às infrações econômicas

Miguel Reale Júnior*

 

Deve haver na repressão às infrações econômicas uma terceira via entre o Direito Penal e o Administrativo, com a adoção de alguns princípios do Direito Penal no campo do ilícito administrativo.

A formulação de uma "terceira via", caminho a percorrer-se entre a trilha rígida do direito penal e a maior fluidez do direito administrativo, está na mente de autores como W. Hassemer, que preconiza ser preciso pensar um novo campo do direito que "não aplique as pesadas sanções do Direito Penal, sobretudo as sanções de privação da liberdade e que, ao mesmo tempo, possa ter garantias menores". O autor chama este novo campo de "Direito de Intervenção".

O Direito Penal deve ter por fulcro a proteção de bens individuais, como a vida, a liberdade, o integridade física e a propriedade, a fim do Direito Penal não se transformar em instrumento ineficiente.

A característica fundamental a ser retida é que as infrações são administrativas e não penais, sendo julgadas por um tribunal administrativo como, por exemplo, o Cade (Conselho Administrativo de Direito Econômico). Todavia, revestem-se de algumas garantias e limitações próprias do Direito Penal, o que significa dizer que contêm, simbioticamente, qualidades de infração administrativa quanto de penal. O acento primordial recai, no entanto, sobre a natureza administrativa, razão pela qual denominaria este ramo de "Direito Administrativo Penal".

Ao nosso ver, deve haver uma Parte Geral nas leis tipificadoras das infrações administrativo-penais, que contenha os princípios garantistas próprios do Direito Penal aplicáveis às infrações administrativo-penais, bem como os princípios ordenadores do conjunto normativo.

Assim ocorre com a lei italiana de 24/11/1981, nº 689, que promoveu a despenalização de todas as violações punidas tão só com pena de multa ou com ressarcimento. Esta dedica seu primeiro capítulo aos princípios gerais, a começar pela consagração do princípio da legalidade e da não retroatividade. Trata também do elemento subjetivo (art. 3.º); das causas de exclusão (art. 4.º); do concurso de pessoas e da solidariedade (arts. 5.º e 6.º); do concurso aparente de normas (art. 9.º), entre outros exemplos.

É imperativo analisar qual deva ser o conteúdo de uma Parte Geral de lei tipificadora de infrações administrativo-penais, tarefa à qual passamos a nos dedicar, sem esgotar, no entanto, o elenco das matérias que deve contemplar.

A) A adoção do princípio da legalidade traz consigo, como ressalta Pietro Nuvolone, a proibição da analogia, proibição esta que deve, a nosso ver, ser apenas in malam partem, pois, como ensina Georges Dellis, ao tratar do direito francês, tais "princípios comuns da repressão cumpre sejam respeitados onde haja sanção que tenha o caráter de uma punição."

Com efeito, as normas do que denomino Direito Administrativo-Penal devem ser interpretadas estritamente, com absoluto respeito à exigência de tipicidade.

A irretroatividade, a não ser da lei nova mais benigna, a proibição de analogia in matam partem, a exigência de estrita tipicidade da conduta, a limitação do uso de expressões genéricas, de locuções abertas, bem como do reenvio a conceitos extrajurídicos, a certa e prévia fixação das sanções são estas algumas das diretrizes que devem orientar o Direito Administrativo-Penal.

B) Outra matéria, e mais complexa que a anterior, diz respeito ao elemento subjetivo. Sem dúvida, a prova de efetiva participação dos administradores com consciência e vontade na prática do fato tem, com certeza, se constituído no principal óbice à instauração de ações penais por crime econômico.

Assim sendo, cremos que neste passo situa-se o dado diferenciador primordial entre a infração penal e a infração administrativo-penal. As ações descritas na "lei antitruste" são por sua natureza intencionais. A solução está, a nosso ver, na admissão de uma presunção do dolo, reconhecido este como efetivo independentemente de prova, permitindo, todavia, que a parte acusada demonstre ter agido, por exemplo, em erro de tipo ou em razão de força maior.

Destarte, na Parte Geral deve-se estatuir que se presume o dolo, podendo o infrator, contudo, comprovar sua inexistência, ou seja, estabelece-se uma presunção relativa do dolo.

C) Passando agora a analisar a solidariedade entre a empresa, a pessoa jurídica e o seu administrador cumpre que se reconheça uma responsabilidade solidária além da hipótese em que sejam os dirigentes partícipes diretos dos atos de abuso do poder econômico. Essa solidariedade há de ser estendida tendo por base estipulação, a constar da Parte Geral, de que existe, por parte do diretor ou gerente, um dever de agir como garante no impedimento de ações de abuso do poder econômico, limitado esse dever pelo poder de agir dentro do âmbito decisório da empresa.

D) Mais uma questão deve ser enfrentada e que se põe como um desafio. Ao nosso ver, é pertinente que integrem a Parte Geral de uma lei tipificadora de infrações administrativo-penais normas relativas às causas dirimentes fundadas na não exigibilidade de outra conduta, verbi gratia a coação irresistível e o estado de necessidade..

E) A infração não é de ser considerada caso se incorreu em erro de tipo, ou se o fato se deu em razão de força maior.

F) Outro ponto a constar da Parte Geral diz respeito à individualização da sanção, com a aplicação da necessária e justa dentre as prévia e claramente estabelecidas, valendo-se de elenco de circunstâncias agravantes e atenuantes.

Finalizando, é essencial destacar que a "despenalização" dos crimes econômicos, relativos ao abuso do poder econômico, deve andar de par com a elaboração de uma nova "lei antitruste", instituindo-se uma parte Geral e com especial atenção à descrição típica estrita das condutas infracionais. É este o primeiro passo para se construir um Direito Administrativo-Penal, formado, no futuro, por um conjunto de leis de defesa da ordem econômica, do meio ambiente, da saúde pública.

Desse modo, pode-se avançar na construção de uma terceira via, que dote o Ordenamento de um instrumento mais ágil, sem deixar de atender a alguns princípios garantistas do Direito Penal.

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*escritório Reale Advogados Associados. Advogado, ex-ministro da Justiça, é professor-titular da Faculdade de Direito da USP.

 

 

 

 

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