Introdução
Tempos atrás, havia certa permissividade e aceitação dos chamados crimes passionais.
Nestas situações ao marido traído - ou como meros indícios que houvera sido – era permitido lavar sua honra com o sangue da suposta adúltera.
Dessa época se extrai a frase célebre de Raul Fernandes do Amaral Street, ou simplesmente, Doca Street, ao tentar explicar as razões que o levara a assassinar sua esposa, Angela Diniz.
Disse ele: "Matei por amor".
A prática extremada de ceifar a vida de uma pessoa, justificada pela exacerbação do maior e melhor dos sentimentos, levou a sociedade a um inconformismo.
Questionou-se não apenas a torpeza do ato, mas, principalmente, a absolvição do assassino confesso.
A campanha feminista: "Quem ama não mata!" levou Doca Street, a uma condenação em grau de recurso.
E uma nova fase do direito brasileiro surgiu, ao não mais aceitar passivamente que a ofensa à honra, fosse justificativa para práticas bárbaras e animalescas, em especial para que a honra do homem fosse superior a vida de uma mulher.
Trazidos ao tempo presente, nos deparamos com o ato ignóbil praticado contra uma criança boliviana, na partida realizada entre S.C. Corinthians Paulista e San José da Bolívia, a qual teve o olho furado e a morte instantânea provocada pelo arremesso criminoso de um sinalizador marítimo.
Tal fato nos leva a uma necessidade de repensar a maneira como o futebol é praticado, principalmente, quando nosso país encontra-se em vias de sediar uma copa do mundo de futebol.
Na época mais amadora, e segundo alguns, mais romântica do futebol, os rompantes de paixão do torcedor eram não apenas permitidos, como também celebrados.
Arremessos de chinelos e rádios de pilha ao campo de jogo, cusparadas, invasões ao gramado eram tratados como frutos da paixão do torcedor. E como tal não deveria ser punida. Eram os delitos passionais desportivos. Na qual o cidadão que invadia o gramado para beijar um dos jogadores era tido como celebridade1.
Evolução jurídica no Brasil
As legislações desportivas, já assinalavam a responsabilização dos clubes acerca de tais fatos, muito embora houvesse uma quantidade muito pequena de condenações por tais fatos.
Notadamente em virtude dos órgãos - os Tribunais Desportivos inclusive – aceitarem as escusas dos torcedores por terem exacerbado em sua paixão por seu clube.
Já na época, o CBDF2 - Código Brasileiro Disciplinar de Futebol, vigente entre 1981 e 2003, em seu artigo dispunha acerca dos deveres dos clubes na segurança em sua praça de esportes, ao dispor:
Art. 300. Deixar de tomar providências capazes de prevenir ou reprimir desordens em sua praça de desportos, inclusive deixando de prevenir ou reprimir o lançamento de objetos no campo, quando partidos do recinto reservado ao quadro social.
Pena: multa de dez (10) a quarenta (40) ORTNs e perda do mando de campo de uma a três partidas, quando participante da competição, se oficial.
Posteriormente, em 2003, houve a alteração do aludido disposto, com a entrada em vigor do Código Brasileiro de Justiça Desportiva – CBJD3 - o qual passou a impor que:
Art. 213 Deixar de tomar providências capazes de prevenir ou reprimir desordens em sua praça de desporto.
PENA: multa de R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais) a R$ 500.000,00 (quinhentos mil reais) e perda do mando de campo de uma a três partidas, provas ou equivalente quando participante da competição oficial.
Em 2005 houve nova alteração ao CBJD4, passando a dispor o mesmo artigo 213 que:
Art. 213 Deixar de tomar providências capazes de prevenir e reprimir desordens em sua praça de desporto.
PENA: multa de R$ 10.000,00 (dez mil reais) a R$200.000,00 (duzentos mil reais) e perda do mando de campo de uma a dez partidas, provas ou equivalente quando participante da competição oficial.
§ 1º Incide nas mesmas penas a entidade que, dentro de sua praça de desporto, não prevenir e reprimir a sua invasão bem assim o lançamento de objeto no campo ou local da disputa do evento desportivo.
§ 2º Caso a invasão ou o lançamento do objeto seja feito pela torcida da entidade adversária, sofrerá esta a mesma apenação.
§ 3º A comprovação da identificação e detenção do infrator com apresentação à autoridade policial competente e registro de boletim de ocorrência, na hipótese de lançamento de objeto, exime a entidade de responsabilidade.
§ 4º A entidade cuja torcida manifestar ato discriminatório decorrente de preconceito em razão de origem étnica, raça, sexo, cor, idade, condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência será punida com a pena prevista no caput deste artigo e perda do dobro do número de pontos previstos no regulamento da competição para o caso de vitória sendo, na reincidência, excluída do campeonato ou torneio.
§ 5º Não sendo possível aplicar-se a regra prevista no parágrafo anterior em face da forma de disputa da competição, a entidade de prática desportiva será punida com a exclusão de competição ou torneio.
§ 6º Na hipótese da aplicação da pena de perda do dobro do número de pontos prevista no § 4º deste artigo, fica mantido o resultado da partida, prova ou equivalente para todos os efeitos previstos no regulamento da competição e a entidade de prática desportiva que ainda não tiver obtido pontos suficientes ficará com pontos negativos.
Situação jurídico-desportivo brasileira
A redação do dispositivo atual do CBJD5 entrou em vigor em 2009, e estabelece que:
Art. 213. Deixar de tomar providências capazes de prevenir e reprimir:
I - desordens em sua praça de desporto;
II - invasão do campo ou local da disputa do evento desportivo;
III - lançamento de objetos no campo ou local da disputa do evento desportivo.
PENA: multa, de R$ 100,00 (cem reais) a R$ 100.000,00 (cem mil reais).
§ 1º Quando a desordem, invasão ou lançamento de objeto for de elevada gravidade ou causar prejuízo ao andamento do evento desportivo, a entidade de prática poderá ser punida com a perda do mando de campo de uma a dez partidas, provas ou equivalentes, quando participante da competição oficial.
§ 2º Caso a desordem, invasão ou lançamento de objeto seja feito pela torcida da entidade adversária, tanto a entidade mandante como a entidade adversária serão puníveis, mas somente quando comprovado que também contribuíram para o fato.
§ 3º A comprovação da identificação e detenção dos autores da desordem, invasão ou lançamento de objetos, com apresentação à autoridade policial competente e registro de boletim de ocorrência contemporâneo ao evento, exime a entidade de responsabilidade, sendo também admissíveis outros meios de prova suficientes para demonstrar a inexistência de responsabilidade.
Da leitura de referido artigo extrai-se a responsabilização dos clubes, mandante e visitante, pelos atos praticados por sua torcida.
Entretanto, a punição ao clube visitante não se baseia na prevenção ou repressão, haja vista que nos estádios tal tarefa é de incumbência do clube mandante. Em aludidas situações, pune-se a desinteligência de sua torcida.
Nesse aspecto, é importante a discussão acerca da responsabilidade do clube pelos atos praticados por sua torcida.
Primeiramente, há que se assinalar que a torcida de um clube é a expressão maior de sua existência. A existência de ambos se confunde e conflui, ao ponto de não se poder observar a vida autônoma de qualquer um destes.
Nesse sentido é que se norteia a jurisprudência desportiva brasileira.
Em julgado da Primeira Comissão Disciplinar do STJD do Futebol, por ocasião da disputa do Campeonato Brasileiro da Série A de 2012, clube visitante - Clube de Regatas Flamengo - pela prática de arremesso de rojões ao campo de jogo, e solidariamente o mandante da partida, Clube Atlético Goianiense.
O visitante pelos atos praticados por sua torcida, e o mandante por ter falhado na prevenção, ao permitir o ingresso dos artefatos explosivos ao campo de jogo.
Nesta ocasião, entendeu-se que a tarefa maior é do clube mandante, na medida em quê é de sua responsabilidade a repressão no ingresso dos objetos não permitidos na arena onde ocorre o espetáculo.
Em assim ocorrendo, ambos os clubes, mandante e visitante, devem ser responsabilizados solidariamente pelos atos praticados, caso os atos sejam praticados pela torcida visitante, quando decorrente do arremesso de objetos ilícitos.
O mandante pela falha na prevenção, e o visitante em virtude dos atos praticados por sua torcida.
Entretanto, quando o objeto lançado a campo tem sua entrada permitida (celular, óculos, sapatos, guarda chuva, etc.), a responsabilização deve direcionar-se apenas em relação à torcida na qual se imputa o arremesso do objeto, e, por imperativo legal, ao clube a ela vinculado.
Por outro lado, diversos questionamentos surgem acerca da aplicação do parágrafo 3º do artigo 213, que assinala:
§ 3º A comprovação da identificação e detenção dos autores da desordem, invasão ou lançamento de objetos, com apresentação à autoridade policial competente e registro de boletim de ocorrência contemporâneo ao evento, exime a entidade de responsabilidade, sendo também admissíveis outros meios de prova suficientes para demonstrar a inexistência de responsabilidade.
Para alguns, a identificação e detenção do indivíduo que tenha praticado o ato - reputado como ilícito desportivo, eximiria a responsabilização do clube pelo ato praticado.
Em diversos julgados, ao manifestar minha posição contrária, assinalava a questão do "torcedor" que ingressaria com um canhão de guerra e procedesse a um disparo contra a torcida adversária.
Decerto, a sua identificação seria quase imediata, assim como a possível detenção.
A questão colocada é: Isso seria motivo suficiente para eximir o clube de responsabilidade pelo ato praticado?
Entendo, smj, que não!
O parágrafo 3º concede ao clube a prerrogativa de eximir-se de responsabilidade, apenas e tão somente, quando decorre do arremesso de objetos lícitos, os quais tiveram sua entrada permitida.
Caso o objeto arremessado, seja de uso não permitido ao campo de jogo, o clube mandante deve ser responsabilizado, assim como, solidariamente, o visitante, caso o objeto tenha se originado de sua torcida.
O caso Corinthians x San Jose
No caso específico do incidente envolvendo o S.C. Corinthians Paulista e o San José da Bolívia, algumas situações necessitam ser assinaladas.
Ao longo dos anos, temos visto um festival de incivilidades por parte dos torcedores nas partidas realizadas na América do Sul, envolvendo a Copa Libertadores da América.
Jornalistas aceitam resignados tais fatos. Nas quais falta de conforto e falta de estrutura nos estádios, são justificadas pelas diferenças econômicas entre os países.
Polícia e exército são chamados para protegerem atletas, para a mera cobrança de arremessos laterais e escanteios.
De fato, as imagens que nos mostram atletas brasileiros, ou não, admoestados com cusparadas e lançamentos de objetos nos causam uma reação de espanto, haja vista que, a princípio, entendemos como uma prática abominável e passível de punição, caso ocorra em território nacional.
Falta de estrutura nos estádios é tratada como um ato para fortes, que tem a missão de encarar a Batalha da Libertadores. Como se a comparação entre a prática do esporte e uma guerra fosse possível e aceitável.
Por outro lado, ao longo dos últimos anos no Brasil, com a penalização dos clubes com a perda de mando de campo, houve uma ligeira melhora na segurança aos participes do espetáculo, com uma queda acentuada no lançamento de objeto e invasão ao campo de jogo.
Quase a todos os clubes da elite do futebol brasileiro sofreram, no decorrer dos anos, punição com a perda de mando de campo, em virtude de atos praticados por suas torcidas. O ato praticado pelo torcedor, reverteu-se em punição pecuniária ao seu clube, além de impor a realização de suas partidas para longe dos seus domínios territoriais.
Não se resolveu o problema, e creio que não é essa a obrigação dos Tribunais Desportivos, na medida em quê tal fato decorre da civilidade dos torcedores.
Entretanto, houve uma preocupação com tais fatos, e um olhar menos permissivo dos Tribunais Desportivos brasileiros, principalmente, com a finalidade de punir os envolvidos, a fim de que se possa, através das penas, conscientizar o torcedor que o seu clube será responsabilizado.
Não se civilizou o torcedor, mas o alertou que um ato por ele praticado, redundaria na punição ao seu clube de coração.
Da utilização dos parâmetros europeus
Em que pese a celebração da utilização dos parâmetros europeus da UEFA nos litígios oriundos na América do sul, por parte da Conmebol, na medida em que se pretende utilizar um equivalente de maior e melhor organização, há um exagerado equívoco no seu manejo.
Se de um lado temos a União Europeia com índices de desenvolvimento econômicos a serem exaltados, temos uma realidade diametralmente diferente no hemisfério sul.
Nesse aspecto, o modelo jurídico desportivo brasileiro é um sistema a ser melhor implementado em nível sul-americano.
A adequação dos parâmetros europeus, calcados, em grande parte, na utilização do common law em que os preceitos jurisprudenciais são a sua base, não se mostra apto para corrigir as distorções e desigualdades havidas na América do Sul.
Como adotar um modelo de precedentes jurisprudenciais, caldado em decisões pretéritas, quando estas inexistem, ou se mostraram desidiosas ao longo dos tempos?
Necessitamos desvendar o passado de nosso futebol sul-americano, e entendermos os erros pretéritos e presentes para que possamos vislumbrar um melhor cenário desportivo no futuro.
Sem isso, não adentraremos na seara racional. Continuaremos no estágio amador, no qual as infrações desportivas passionais são celebradas como reflexo de nossos instintos latinos.
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1José Alves de Moura, passou a ser tratado pela imprensa com a alcunha de Beijoqueiro, em vista do hábito de beijar celebridades em público. Ao beijar o atleta Zico, foi detido e espancado por policiais. O beijo saiu caro: teve costelas e dentes quebrados. Passou por uma batelada de exames para determinar sua sanidade, que foi comprovada. Acabou libertado pelo juiz Mayrino da Costa, que declarou: "Beijar não é crime. Quem dera se todos os delinquentes do Brasil trocassem suas armas por beijos". Fonte: Wikipedia.
2Portaria 702 de 17/2/81, do MEC.
3Resolução CNE 01, de 23 de dezembro de 2003, aprova o Código Brasileiro de Justiça Desportiva.
4Resolução CNE 6, de 19 de julho de 2005.