Migalhas de Peso

Direitos fundamentais e armas de fogo

Em face da Lei Magna do País, o cidadão jamais poderá ser proibido de tentar defender sua vida, seu patrimônio, sua honra, sua dignidade ou a incolumidade física de sua mulher e filhos a fim de impedir que sejam atemorizados, agredidos, eventualmente vilipendiados e assassinados, desde que se valha de meios proporcionais aos utilizados por quem busque submetê-los a estes sofrimentos, humilhações ou eliminação de suas existências

13/10/2005


Direitos fundamentais e a arma de fogo


Celso Antônio Bandeira de Mello*

1. Em face da Lei Magna do País, o cidadão jamais poderá ser proibido de tentar defender sua vida, seu patrimônio, sua honra, sua dignidade ou a incolumidade física de sua mulher e filhos a fim de impedir que sejam atemorizados, agredidos, eventualmente vilipendiados e assassinados, desde que se valha de meios proporcionais aos utilizados por quem busque submetê-los a estes sofrimentos, humilhações ou eliminação de suas existências

A Constituição Brasileira não autoriza a que seja legalmente qualificado como criminoso, e muito menos como sujeito eventual à pena de reclusão, o cidadão que tente defender a própria vida, o patrimônio, a honra, a dignidade ou a incolumidade física de sua mulher e filhos usando de meios proporcionais aos utilizados por quem busque inflingir-lhes estes sofrimentos, humilhações ou eliminação de suas existências ou então que simplesmente se aprovisione de tais meios, na esperança de impedir que ele ou seus familiares sejam atemorizados, agredidos, e eventualmente vilipendiado.

Logo, é grosseiramente inconstitucional a lei que para eles concorra ou que abique direta ou indiretamente em tais resultados.

2. Com efeito, a Constituição Brasileira, como não poderia deixar de ser, qualifica como bens de suma valia a vida, a honra, a segurança, a dignidade, a incolumidade física das pessoas, afirma-os protegidos e assegura o direito de propriedade. Logo, não se compatibilizará com disposições normativas que os coloquem em estado de indefensão.

Deveras, o art 5º declara garantidos a todos os brasileiros e aos estrangeiros residentes no País, “a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”. O inciso X deste mesmo artigo nos afiança que são “invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra

O art. 1º da Lei Magna aponta em seu item III, como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, “a dignidade da pessoa humana”.

Até mesmo à “sadia qualidade de vida” “todos têm direito”, nos termos do art. 225. Que dizer, então, do direito do cidadão defender a mera subsistência da própria vida ou a de sua família, maiormente em se considerando que a Lei Máxima impõe ao Estado, à sociedade e a própria família, o dever de assegurar à criança e ao adolescente “o direito à vida” , “à dignidade, ao respeito” , consoante prevê o art. 227 ?

Registre-se, ainda, que, no art. 6º da Constituição, a “segurança” está expressamente categorizada como um dos direitos sociais.

De seu turno, o art. 144 dispõe :

“A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos:”

Aliás, já no preâmbulo da Constituição se lê que os representantes do povo brasileiro, se reuniram em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, “destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança ...”.

3. Por tudo quanto se anotou, é evidente e da mais solar evidência que o direito à vida, à liberdade, à incolumidade física, à dignidade, à honra, à propriedade e à segurança constituem-se em bens jurídicos expressa e reiteradamente assegurados na Constituição, sendo, pois, livre de qualquer dúvida ou entredúvida de que perfazem um inalienável direito do cidadão o qual, por isto mesmo, não lhe pode ser subtraído por ninguém e muito menos pelo Estado.

Dessarte, ou o Estado oferece ao cidadão um padrão ao menos razoável de segurança, para que ele possa desfrutar da sensação de que está medianamente protegido contra assaltos, agressões e riscos de vida, ou, se não é capaz de fazê-lo, não pode pretender impedi-lo que disponha, por si próprio, daquele mínimo de meios necessários para que não se sinta inerme, exposto à sanha do banditismo sem qualquer possibilidade de salvação.

Vale dizer: se o Poder Público não oferece ao cidadão um mínimo de segurança, se não lhe garante, nem mesmo à luz do dia, a tranqüilidade de que ele e ou sua família, não serão, a qualquer momento, assaltados, seqüestrados, sujeitos a toda espécie de violências e humilhações, de fora parte o despojamento de seus bens, por obra de marginais instrumentados com armas de fogo, é óbvio e da mais solar obviedade que este mesmo Estado não tem direito algum de proibí-lo de tentar se defender, de se utilizar também ele de instrumental capaz de lhe conferir ao menos o conforto psicológico ou a mera esperança de não se sentir desamparado de tudo e de todos.

Se, em tais circunstâncias, o Poder Público se abalançasse a despojá-lo de meios de defesa própria estaria atentando à força aberta contra os ditames constitucionais assecuratórios dos direitos à vida, à integridade física, a dignidade pessoal e à proteção do patrimônio.

4. Ora bem. É fato público e notório que o Estado não tem conseguido oferecer sequer um mínimo de tranqüilidade e segurança aos cidadãos. Ninguém ignora que a absoluta incapacidade estatal de oferecer o mais modesto padrão de segurança levou os abastados a blindarem os próprios automóveis, fomentando o surgimento de uma indústria produtora destes equipamentos. É sabido e ressabido que proliferam empresas de segurança, para oferecer aos que dispõem de recursos para pagá-las, ora cortejos de veículos destinados a proteger-lhes as deslocações por automóvel, ora - o que é muitíssimo comum - veículos com seguranças circulando pelos bairros nobres e hoje, até mesmo em bairros modestos, para buscar minimizar os riscos que se disseminaram por todos os cantos e mais duramente ainda entre os mais pobres.

Nos quarteirões residenciais de habitações unifamiliares, tal como nos edifícios de apartamentos, tornou-se praticamente generalizada a instalação de guaritas com porteiros em atitude de alerta perante os que se aproximam. De par com isto, aparelhos eletrônicos são instalados nos prédios para detecção do que se passa na rua ou na intimidade deles.

É fato corrente o de que o cidadão que sai à noite é obrigado a assumir disposição anímica alerta e se circular por local ermo estará sempre mais ou menos atemorizado, mas sempre em atitude expectante. Os que possuem automóvel não se atrevem a andar com os vidros abertos, não importando quão grande seja o calor. Em horas tardias, mesmo quem tem condução própria, se precisa deslocar-se a distâncias maiores, prefere recorrer a serviços de “taxi”, na convicção de que ali estará mais seguro ou pelo menos não estará inteiramente só à mercê do banditismo.

5. Todo este panorama, sobre o qual é desnecessário insistir, pois os brasileiros de qualquer condição social, tanto os que vivem nas grandes aglomerações urbanas, quanto, já hoje, até nas cidades do interior ou na intimidade de propriedades rurais, sabem perfeitamente que o Estado não lhes dá proteção minimamente bastante contra o desatado perigo de assaltos, de latrocínios, de seqüestros, ou contra a exposição a violências, torturas e humilhações muitas vezes inflingidas pelos marginais na intimidade do lar das vítimas.

Tocaria às raias da crueldade pretender que o cidadão deva sentir-se rigorosamente inerme, indefeso, entregue ao libito dos assaltantes, quer na rua, quer na intimidade da própria casa (suposto asilo inviolável do indivíduo), enquanto seu agressor vem armado, pronto para subjugá-lo de maneira completa, e tanto mais ousado e abusado quanto mais seguro estiver de que sua vítima não possui arma de fogo alguma capaz de se opor a seus propósitos.

A lei nº 10.826, de 22 de dezembro de 2003 consagra de maneira cabal a instauração deste estado de indefensão e insegurança oficializada.

6. Não se nega minimamente que o Estado possa buscar cintar-se de cautelas para liberar porte de armas aos cidadãos ou mesmo que faça exigências para admitir que as pessoas tenham armas de fogo restritas à própria residência ou local de trabalho. Ocorre que a legislação anterior, ou seja, a lei nº 9.437, de 20.2.97, já era da mais extremada severidade, como em seguida se anota.

De acordo com ela, era obrigatório o registro de armas de fogo (art. 3º) cujo certificado autorizava seu titular a mantê-la exclusivamente em sua residência ou trabalho (art. 4º). Tal registro anotava dados bastante completos, consoante exigências estabelecidas no decreto nº 2.222, de 8.5.97.

Conforme estatuía o art. 10 deste decreto, no mínimo haveriam de constar os seguintes dados relativos ao interessado: nome, filiação, data e local de nascimento; endereço residencial; empresa ou órgão em que trabalha e endereço; profissão; número da cédula de identidade, data da expedição, órgão expedidor e Unidade da Federação e número do cadastro individual de contribuinte ou cadastro geral de contribuinte. Afora estes dados pessoais tinham que ser anotados os seguintes dados da arma: número do cadastro no Sistema Nacional de Armas; identificação do fabricante e do vendedor;número e data da nota Fiscal de venda; espécie, marca, modelo e número; calibre e capacidade de cartuchos; funcionamento (repetição, semi-automática ou automática); quantidade de canos e comprimento; tipo de alma (lisa ou raiada) e quantidade de raias e sentido.

Já o porte de arma de fogo ficava condicionado à autorização da autoridade competente (art. 6º) e só podia ser expedida, a teor do art. 7º, em favor de quem cumulativamente :

(a) comprovasse idoneidade, a qual, nos termos do art. 13, II, do decreto 2.222, de 8 de maio de 1999, demandava apresentação de certidões de antecedentes criminais da Justiça Federal, Estadual, Militar e Eleitoral e requeria não estivesse o interessado respondendo a inquérito policial ou processo criminal por infrações penais cometidas com violência, grave ameaça ou contra a incolumidade pública;


(b) comportamento social produtivo;

(c) efetiva necessidade do porte;

(d) capacidade técnica para manuseio de arma de fogo, que, segundo o inciso V, do art. 13 do aludido decreto, teria que ser atestada por instrutor de armamento e tiro do quadro das Polícias Federal ou Civil, ou por elas credenciado;

(e) aptidão psicológica para seu manuseio, a qual na conformidade do decreto mencionado, em seu art. 13, inciso VI, tinha que ser atestada em laudo conclusivo fornecido por psicólogo do quadro das Polícias Federais ou Civis ou por estas credenciado.

Nos termos do art. 10 da sempre mencionada lei nº 9.437, era crime deter, possuir, portar, fabricar, adquirir, vender, alugar, expor à venda ou fornecer, receber, ter em depósito, transportar, ceder, ainda que gratuitamente, emprestar, remeter, empregar, manter sob guarda e ocultar arma de fogo, de uso permitido, sem a autorização e em desacordo com determinação legal ou regulamentar.

7. É visível, portanto, nesta pletora de cautelas, que tanto a detença de arma na própria residência ou trabalho quanto o porte de arma, quando deferido pela autoridade, não oferecia riscos ponderáveis ou se porventura os oferecesse, à toda obviedade, seriam incomparavelmente menores que os riscos oriundos da detença de arma por marginais, por bandidos, os quais evidentemente não vão se assujeitar a todos os rigores normativos requeridos para posse ou porte de arma !

8. Trata-se de saber, então, se, ao lume dos valores constitucionais, cabe considerar preferível que os marginais andem armados (como o fazem ao arrepio da lei), oferecendo toda espécie de riscos para os cidadãos de bem ou se é preferível que estes últimos andem desarmados, condenados à indefensão perante os bandidos, sob o argumento de que assim prevenir-se-ão os riscos de vida a que podem se assujeitar no confronto com os marginais, bem como os malefícios resultantes da eventual captura de sua arma e conseqüente abastecimento dos criminosos por esta via.

9. Parece óbvio que o preferível, em vista dos valores constitucionais, é a opção que prestigia a liberdade de auto-defesa se a defesa estatal não lhe é satisfatoriamente outorgada.

Nada colhe juridicamente o argumento de que a ausência de arma de fogo em mãos do cidadão o expõe a menor risco de vida, pois esta escolha deve caber a ele próprio, em nome de sua dignidade pessoal, e não àquele que o ameaça, o qual, como muitas vezes tem acontecido, pode agredi-lo, torturá-lo, matá-lo e vilipendiar sua família, mesmo não encontrando qualquer reação armada.

Também não impressionaria a alegação de que o bandido pode despojá-lo da arma e assim se abastecer dela. Desde logo, o assaltante já comparece abastecido e é graças a isto que rende sua vítima. Acresce que ninguém, por mais ingênuo que seja, imaginará ser esta a fonte significativa de abastecimento de armas de fogo dos marginais. É sabido e ressabido que o contrabando é que traz e tem trazido abundante armamento para a criminalidade e não só de armas leves, as únicas que se encontram em mãos dos cidadãos ordeiros, mas até mesmo, esporadicamente, de armas proibidas, privativas das forças armadas. Além do contrabando, até mesmo maus policiais são responsáveis pela comercialização de armas com criminosos. Portanto, não é relevante a menção à obtenção de armas em assaltos a cidadãos comuns.

Sem embargo, ainda que tal alegação tivesse o peso que não tem, descaberia atribuir-lhe valor jurídico suficiente para, sobre tal fundamento, desarmar o cidadão. É que para facilitar sua tarefa de desarmar os criminosos o Estado não pode submergir direitos básicos do cidadão, nem expô-lo aos riscos da indefensão ou simplesmente à dolorosa sensação psicológica de total desguarnecimento ante as acometidas dos marginais. À toda evidência valores constitucionais básicos não cedem passo a considerações pragmáticas.

10. Em despeito de tudo isto, o fato é que a primeira dentre as duas opções foi a que prevaleceu na lei nº 10.826, de 22 de dezembro de 2003, que dispõe sobre registro, posse e comercialização de armas de fogo e munição, sobre o Sistema Nacional de Armas – Sinarm, define crimes e dá outras providências, tornando-a, por isto, inconvivente com a Constituição.

Deveras, a lei, em seu art. 6º, proíbe o porte de arma de fogo em todo o território nacional, salvo para casos previstos em legislação própria ou muito especiais ali referidos (forças armadas, polícia, certas guardas municipais, agentes operacionais da Agência Brasileira de Inteligência, empresas de segurança privada e transporte de valores, órgãos policiais da Câmara e do Senado, guardas penitenciários e entidades de desporto cuja prática demande arma de fogo). Fora disto, somente seria possível em circunstâncias muito incomuns, como se depreende do 10, § 1º, I (que pode ser interpretado como uma modestíssima atenuação ao rigor draconiano do art. 6º, a saber: efetiva necessidade de sua outorga, a critério da Polícia Federal, por encontrar-se o requerente sob comprovada ameaça à sua integridade física ou por exercer atividade profissional de risco.

Em suma: o porte de arma não seria admitido para cidadãos comuns, mesmo diante do risco generalizado a que todos se encontram expostos pela disseminação da criminalidade, pois somente situações invulgares é que o autorizariam.

Ademais, consoante disposição do art. 35, § 1º, uma vez aprovada em referendo popular, previsto para 2005, passa a ser proibida a partir daí a comercialização de arma de fogo e munição em todo o território nacional, salvo para as entidades referidas no já mencionado art. 6º.

11. Nisto emerge ainda um contrasenso e outra inconstitucionalidade.

O contrasenso reside em que sendo permitida a comercialização de arma e munição apenas para os referidos no art. 6º, mesmo os contemplados no art. 10, § 1º ficariam privados, quando menos de munição (ou de munição nacional) se necessitassem de renovação de seu suprimento.

A inconstitucionalidade residiria em que o art. 35 da lei, sendo referendado popularmente seu conteúdo instaura-se uma desigualdade de tratamento a que ficariam sujeitos os legalizados para mantença de arma de fogo exclusivamente em sua residência e os que no futuro pretendessem usufruir de igual situação, pois estes não poderiam adquirir nem arma nem munição já que a comercialização delas é restrita aos mencionados no art. 6º.

Assim, ficaria instituída no País a seguinte discriminação ilógica: de um lado estariam os cidadãos que podem tentar defender a invasão de seu lar por bandidos e de outro lado os cidadãos que não podem tentar defender a invasão de seu lar por bandidos, salvo se pretenderem se incluir na categoria de criminosos, isto é, dos que, a teor do art. 14, incorrem no crime inafiançável (e nisto em patamar equivalente ao que a Constituição reserva para a tortura, tráfico ilícito de drogas, terrorismo e crimes definidos como hediondos) e sujeito à reclusão de dois a quatro anos, além de multa, pelo fato de deter arma em desacordo com determinação legal ou regulamentar.

Ou seja: a lei postula a superveniência de uma inconstitucionalidade: uma ofensa ao art. 5º, I, da Constituição Federal, isto é ao magno princípio da igualdade.

12. Contudo, em rigor a lei em apreço não é inconstitucional tão somente por este aspecto que ora se vem de assinalar, mas o é, sobretudo, porque peleja à força aberta com valores abrigados na Lei Maior. A saber: Se o Estado se propõe a oferecer segurança aos cidadãos, como de resto é seu dever, não pode fazê-lo gerando ainda maior insegurança ou, pelo menos, maior sensação de insegurança, na medida em que, não lhes ofertando proteção suficiente - como é sabido e ressabido - de quebra ainda lhes interdita meios de auto-defesa.

É dizer: as medidas consagradas na lei conspiram contra o direito constitucionalmente proclamado à segurança, à vida, à honra, ao patrimônio, à dignidade, ao respeito, todos eles insculpidos em dispositivos constitucionais anteriormente mencionados. Conspiram ainda contra o direito de liberdade, pois submetem-na a constrições superiores ao indispensável, já que bastaria a legislação precedente que restringia o porte de arma de fogo e a guarda residencial dela a cidadãos confiáveis. Restringe, ainda, pela mesma razão, a liberdade empresarial, liberdade de comércio, além do requerido para a segurança pública. Ignora o princípio básico, no Estado de Direito, do “favor libertatis”.

13. Deveras, é certo que, no Estado de Direito, pessoa alguma pode ser assujeitada a sofrer em sua liberdade constrições maiores que as necessárias ao atendimento do interesse público que justifica a limitação ou restrição estabelecida pela autoridade competente para editá-la.

É que os poderes públicos, mesmo os legislativos, não são deferidos às autoridades, no caso, os parlamentares, para que deles façam um uso qualquer, mas tão só para que os utilizem na medida indispensável ao atendimento do bem jurídico que estão, de direito, constitucionalmente obrigadas a curar.

Deveras, as competências legislativas outorgadas na Constituição hão de ser exercitadas em consonância com o fim público que as justifica. Toda demasia, todo excesso desnecessário ao seu atendimento, configuram uma superação do escopo constitucional, um transbordamento da finalidade que o inspira e, portanto, um transbordamento da própria competência. De outra feita, em obra teórica, (Curso de Direito Administrativo, Malheiros Editores, 7a ed., 1995, pag. 65), embora tratando de competências administrativas, averbamos que as competências administrativas só podem ser validamente exercidas na extensão e intensidade proporcionais ao que seja realmente demandado para cumprimento da finalidade de interesse público a que estão atreladas. O mesmo vale para as competências legislativas, porque : “Lo que es legalidad para los actos de la Administracion y de la Justicia es constitucionalidad para la legislacion”, consoante observação corretíssima de BREWER CARIAS (Las Instituciones Fundamentales del Derecho Administrativo Venezolano - Facultad de Derecho, Universidad Central de Caracas, 1964, pág. 25). . Segue-se que as disposições cujos conteúdos ultrapassem o necessário para alcançar o objetivo que justifica o uso da competência ficam maculadas de inconstitucionalidade, porquanto desbordam do âmbito da competência; ou seja, superam os limites que naquele caso lhes corresponderiam.

14. Sobremodo quando a lei restringe situação jurídica dos cidadãos além do que caberia, por imprimir às medidas tomadas uma extensão ou intensidade supérfluas, prescindendas, excessivas em relação ao que bastaria para proteção do interesse público que lhes serve de calço, fica patenteada de maneira clara a inconstitucionalidade em que está incursa.

Deveras, o plus, a demasia, acaso existentes, não concorrem em nada para o benefício coletivo. Apresentam-se, pois, como providências ilógicas, desarrazoadas, representando, pois, única e tão somente, um agravo inútil, gratuito, aos direitos de cada qual - e, por isto, juridicamente inaceitáveis.

Ressentindo-se destes defeitos, além de demonstrarem anacrônico menoscabo pela situação jurídica do administrado - como se ainda vigorasse a ultrapassada relação soberano-súdito (ao invés de Estado-cidadão) - exibem, ao mesmo tempo, tanto um descompasso óbvio com o princípio da razoabilidade como sua assintonia com o escopo legal, ou seja, com a finalidade abrigada na lei atributiva da competência.

Com efeito, ninguém está obrigado a suportar onerações à sua liberdade ou propriedade que não sejam, efetivamente, indispensáveis à proteção ao bem jurídico coletivo. Isto porque é o atendimento deste valor - e tão somente ele - o que faz irromper "in concreto" a competência exercitável pela autoridade pública e, ao mesmo tempo lhe delimita a compostura, isto é, a específica amplitude na situação em causa.

15. CARLOS ROBERTO SIQUEIRA CASTRO, um dos expoentes máximos do direito constitucional brasileiro, em obra que já se tornou clássica (O Devido Processo Legal e a Razoabilidade das Leis na Nova Constituição, Ed. Forense, 1989) averbou, à pág. 157, que:

... a moderna teoria constitucional tende a exigir que as diferenciações normativas sejam razoáveis e racionais. Isto quer dizer que a norma classificatória ... (para o autor legislar significa classificar, como se lê a pág. 155) não deve ser arbitrária, implausível ou caprichosa, devendo ao revés, operar como meio idôneo, hábil e necessário ao atingimento de finalidades constitucionalmente válidas. Para tanto, há de existir uma indispensável relação de congruência entre a classificação em si e o fim a que ela se destina”.

Como resulta do exposto até agora, não há, nem de fato e muito menos de direito, a razoabilidade, a plausibilidade necessária para a imposição das limitações residentes na lei nº 10.826, de 22 de dezembro de 2003, visto que com elas se submergem liberdades e garantias fundamentais, numa tentativa de atacar males sociais que o Estado teria de atalhar por outros meios, ao invés de buscar a via supostamente fácil - e de resto ineficiente para atingir os fins propostos - de desarmar os particulares, com o que, na prática terminará, mesmo não sendo esta sua intenção, por eximir a marginalidade dos azares de um confronto com quem pretendesse vender caro sua vida, sua honra, seu patrimônio e a integridade de seus familiares.
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*Professor titular de Direito Administrativo da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).






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