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O constitucionalismo democrático no Brasil: crônica de um sucesso imprevisto

Em primeira mão, o capítulo introdutório do livro "O Constitucionalismo Democrático no Brasil: Crônica de um sucesso imprevisto".

6/12/2012

I. Introdução

II. A Constituição de 1988 e seu sucesso institucional

1. A superação dos ciclos do atraso

2. Algumas circunstâncias e vicissitudes

III. A conquista de efetividade pelas normas constitucionais

1. Um constitucionalismo que não era para valer

2. Força normativa e efetividade da Constituição

IV. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direito

1. As transformações do direito constitucional contemporâneo

2. A constitucionalização do Direito

V. A nova interpretação constitucional e o conceito de casos difíceis

1. A interpretação constitucional tradicional

2. Três mudanças de paradigma que abalaram a interpretação constitucional tradicional

3. Nova interpretação e casos difíceis

VI. Jurisdição constitucional e função legislativa: a tênue fronteira entre o Direito e a política

1. A ascensão política das Supremas Cortes e do Poder Judiciário

2. Judicialização e ativismo judicial

3. Críticas à expansão do Judiciário

4. Complexidade da vida e criação judicial do Direito

5. STF: contramajoritário e representativo

VII. A dignidade humana no direito contemporâneo: o centro do sistema constitucional

1. A dignidade da pessoa humana é um princípio jurídico

2. O conteúdo jurídico da dignidade humana

VIII. Alguns casos difíceis decididos pelo Supremo Tribunal Federal e a construção judicial do Direito

1. Anencefalia: legitimidade da interrupção da gestação

2. Pesquisas com células-tronco embrionárias: legitimidade da legislação autorizadora

3. Nepotismo: validade do ato normativo do CNJ que restringiu a nomeação de parentes até o terceiro grau de membros do Judiciário para cargos em comissão

4. Uniões homoafetivas: igualdade de tratamento com as uniões estáveis convencionais

5. Cesare Battisti: a recusa de sua extradição por ato do Presidente da República

IX. Conclusão

I. Introdução

O constitucionalismo democrático foi a ideologia vitoriosa do século XX, derrotando diversos projetos alternativos e autoritários que com ele concorreram. Também referido como Estado constitucional ou, na terminologia da Constituição brasileira, como Estado democrático de direito, ele é o produto da fusão de duas ideias que tiveram trajetórias históricas diversas, mas que se conjugaram para produzir o modelo ideal contemporâneo. Constitucionalismo significa Estado de direito, poder limitado e respeito aos direitos fundamentais. Democracia, por sua vez, traduz a ideia de soberania popular, governo do povo, vontade da maioria. O constitucionalismo democrático, assim, é uma fórmula política baseada no respeito aos direitos fundamentais e no autogoverno popular. E é, também, um modo de organização social fundado na cooperação de pessoas livres e iguais.

Nas últimas décadas, a teoria e a prática do direito constitucional, sob a influência de movimentos históricos, políticos e doutrinários – domésticos e internacionais –, passou por um processo de reelaboração extenso e profundo. A maior parte dessas transformações encontra-se relatada nos artigos e casos do presente livro. Procura-se, nesse capítulo introdutório, conferir uma sistematização capaz de permitir a visão de conjunto dos temas, assim como oferecer uma síntese sumária das ideias substantivas envolvidas.

II. A Constituição de 1988 e seu sucesso institucional

1. A superação dos ciclos do atraso

A Constituição de 1988 é o símbolo maior de uma história de sucesso: a transição de um Estado autoritário, intolerante e muitas vezes violento, para um Estado democrático de direito. Sob sua vigência, realizaram-se inúmeras eleições presidenciais, por voto direto, secreto e universal, com debate público amplo, participação popular e alternância de partidos políticos no poder. Mais que tudo, a Constituição assegurou ao país duas décadas de estabilidade institucional. E não foram tempos banais. Ao longo desse período, diversos episódios poderiam ter deflagrado crises que, em outros tempos, teriam levado à ruptura institucional. O mais grave deles terá sido a destituição, por impeachment, do primeiro presidente eleito após a ditadura militar. Mesmo nessa conjuntura, jamais se cogitou de qualquer solução que não fosse o respeito à legalidade constitucional. A Constituição de 1988 foi o rito de passagem para a maturidade institucional brasileira. Nas últimas décadas, superamos todos os ciclos do atraso: eleições periódicas, Presidentes cumprindo seus mandatos ou sendo substituídos na forma constitucionalmente prevista, Congresso Nacional em funcionamento sem interrupções, Judiciário atuante e Forças Armadas fora da política. Só quem não soube a sombra não reconhece a luz.

2. Algumas circunstâncias e vicissitudes

Por certo, nem tudo foram flores. Com toda a sua valia simbólica, a Constituição de 1988 é a Constituição das nossas circunstâncias, sujeita a imperfeições e vicissitudes. A esse propósito, é preciso ter em conta que o processo constituinte teve como protagonista uma sociedade civil que amargara mais de duas décadas de autoritarismo. Na euforia – saudável euforia – da recuperação das liberdades públicas, a constituinte foi um notável exercício de participação popular. Nesse sentido, é inegável o seu caráter democrático. Mas, paradoxalmente, essa abertura para todos os setores organizados e grupos de interesse fez com que o texto final expressasse uma vasta mistura de reivindicações legítimas de trabalhadores e categorias econômicas, cumulados com interesses cartoriais, reservas de mercado e ambições pessoais. A participação ampla, os interesses múltiplos e a ausência de um anteprojeto geraram um produto final heterogêneo, com qualidade técnica e nível de prevalência do interesse público oscilantes entre extremos. Um texto que, mais do que analítico, era casuístico, prolixo e corporativo. Esse defeito o tempo não curou: muitas das emendas, inclusive ao Ato das Disposições Constitucionais Transitórias – ADCT, espicharam ainda mais a carta constitucional ao longo dos anos.

A Constituição brasileira, portanto, trata de assuntos demais, e o faz de maneira excessivamente detalhada. Tais características produzem duas consequências negativas bastante visíveis. A primeira: como tudo o que é relevante está lá, quaisquer alterações na trajetória política – sejam em questões econômicas, tributárias, previdenciárias ou outras – acabam dependendo de emendas constitucionais. Isso dificulta o exercício do poder pelas maiorias políticas, haja vista que a todo momento é preciso quorum qualificado de três quintos para a mudança do texto constitucional. A legislação ordinária, como se sabe, depende apenas de maioria simples. O resultado prático é que, no Brasil, a política ordinária se faz por meio de emendas constitucionais. Tal fato gera dificuldades intuitivas, pois impõe negociações políticas permanentes, com as sequelas fisiológicas daí advindas. A segunda consequência negativa é facilmente previsível: o número espantoso de emendas à Constituição, um recorde mundial. Naturalmente, essa disfunção compromete a vocação de permanência do texto constitucional e o seu papel de simbolizar a prevalência dos valores duradouros sobre as contingências da política.

A despeito do que se vem de afirmar, há um consolo. Naquilo que a Constituição tem de materialmente constitucional – isto é, matérias que inequivocamente deveriam figurar no seu texto – ela tem sido estável. De fato, as normas sobre organização do Estado e das instituições – e.g. Federação e separação de Poderes –, sobre a definição e proteção dos direitos fundamentais, assim como as que estabelecem princípios essenciais e fins públicos relevantes não foram afetadas de maneira substantiva ao longo do tempo. Este é um dado bastante significativo. Seja como for, foi com essa Constituição que o Brasil conquistou maturidade institucional e vive um ciclo continuado de desenvolvimento econômico e social. As etapas e transformações a seguir narrados tiveram o texto constitucional de 1988 – e, sobretudo, o sentimento constitucional que ele foi capaz de gerar – como centro de gravidade.

III. A conquista de efetividade pelas normas constitucionais

1. Um constitucionalismo que não era para valer

Na antevéspera da convocação da constituinte de 1988, era possível identificar um dos fatores crônicos do fracasso na realização do Estado de direito no país: a falta de seriedade em relação à Lei Fundamental, a indiferença para com a distância entre o texto e a realidade, entre o ser e o dever-ser. Dois exemplos emblemáticos: a Carta de 1824 estabelecia que “a lei será igual para todos”, dispositivo que conviveu, sem que se assinalassem perplexidade ou constrangimento, com os privilégios da nobreza, o voto censitário e o regime escravocrata. Outro: a Carta de 1969, outorgada pelo Ministro da Marinha de Guerra, do Exército e da Aeronáutica Militar, assegurava um amplo elenco de liberdades públicas inexistentes e prometia aos trabalhadores um pitoresco rol de direitos sociais não desfrutáveis, que incluíam “colônias de férias e clínicas de repouso”. Buscava-se na Constituição, não o caminho, mas o desvio; não a verdade, mas o disfarce. A disfunção mais grave do constitucionalismo brasileiro, naquele final de regime militar, era a falta de efetividade das normas constitucionais. Indiferentes ao que prescrevia a Lei Maior, os estamentos perenemente dominantes construíam uma realidade própria de poder, refratária a uma real democratização da sociedade e do Estado.

2. Força normativa e efetividade da Constituição

É bem de ver que o próprio reconhecimento de força normativa às normas constitucionais é conquista relativamente recente no constitucionalismo do mundo romano-germânico1. No Brasil, ela se desenvolveu no âmbito de um movimento jurídico-acadêmico conhecido como doutrina brasileira da efetividade2. Tal movimento procurou não apenas elaborar as categorias dogmáticas da normatividade constitucional, como também superar algumas das crônicas disfunções da formação nacional, que se materializavam na insinceridade normativa, no uso da Constituição como uma mistificação ideológica e na falta de determinação política em dar-lhe cumprimento. A essência da doutrina da efetividade é tornar as normas constitucionais aplicáveis direta e imediatamente, na extensão máxima de sua densidade normativa. Como consequência, sempre que violado um mandamento constitucional, a ordem jurídica deve prover mecanismos adequados de tutela – por meio da ação e da jurisdição –, disciplinando os remédios jurídicos próprios e a atuação efetiva de juízes e tribunais3.

Para realizar seus propósitos, o movimento pela efetividade promoveu, com sucesso, três mudanças de paradigma na teoria e na prática do direito constitucional no país. No plano jurídico, atribuiu normatividade plena à Constituição, que se tornou fonte de direitos e de obrigações, independentemente da intermediação do legislador. Do ponto de vista científico ou dogmático, reconheceu ao direito constitucional um objeto próprio e autônomo, estremando-o do discurso puramente político ou sociológico. E, por fim, sob o aspecto institucional, contribuiu para a ascensão do Poder Judiciário no Brasil, dando-lhe um papel mais destacado na concretização dos valores e dos direitos constitucionais. O discurso normativo, científico e judicialista foi fruto de uma necessidade histórica. O positivismo constitucional, que deu impulso ao movimento, não importava em reduzir o direito à norma, mas sim em elevá-lo a esta condição, pois até então ele havia sido menos do que norma. A efetividade foi o rito de passagem do velho para o novo direito constitucional, fazendo com que a Constituição deixasse de ser uma miragem, com as honras de uma falsa supremacia, que não se traduzia em proveito para a cidadania

Na prática, em todas as hipóteses em que a Constituição tenha criado direitos subjetivos – políticos, individuais, sociais ou difusos – são eles, como regra, direta e imediatamente exigíveis, do Poder Público ou do particular, por via das ações constitucionais e infraconstitucionais contempladas no ordenamento jurídico. O Poder Judiciário, como consequência, passa a ter atuação decisiva na realização da Constituição. A doutrina da efetividade serviu-se, como se registrou acima, de uma metodologia positivista: direito constitucional é norma; e de um critério formal para estabelecer a exigibilidade de determinados direitos: se está na Constituição é para ser cumprido. Nos dias que correm, tornou-se necessária a sua convivência com novas formulações doutrinárias, de base pós-positivista, como a teoria dos princípios, as colisões de direitos fundamentais, a ponderação e o mínimo existencial.

IV. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direito

1. As transformações do direito constitucional contemporâneo

Como assinalado ao início desse texto, o direito constitucional, nas últimas décadas, notadamente no mundo romano-germânico, passou por um vertiginoso conjunto de transformações que modificaram o modo como ele é pensado e praticado. É possível reconstituir essa trajetória, objetivamente, levando em conta três marcos fundamentais: o histórico, o filosófico e o teórico. Neles estão contidas as idéias e as mudanças de paradigma que mobilizaram a doutrina e a jurisprudência nesse período, criando uma nova percepção da Constituição e de seu papel na interpretação jurídica em geral.

O marco histórico do novo direito constitucional, na Europa continental, foi o constitucionalismo do pós-guerra, especialmente na Alemanha e na Itália. No Brasil, foi a Constituição de 1988 e o processo de redemocratização que ela ajudou a protagonizar. Sem embargo de vicissitudes de maior ou menor gravidade no seu texto e da compulsão com que tem sido emendada ao longo dos anos, a Constituição promoveu uma transição democrática bem sucedida e assegurou ao país estabilidade institucional, mesmo em momentos de crise aguda. Sob a Constituição de 1988, o direito constitucional passou da desimportância ao apogeu em menos de uma geração. O surgimento de um sentimento constitucional no país é algo que merece ser celebrado4. Superamos a crônica indiferença que, historicamente, se manteve em relação à Constituição. E, para os que sabem, é a indiferença, não o ódio, o contrário do amor.

O marco filosófico das transformações aqui descritas é o pós-positivismo5. Em certo sentido, apresenta-se ele como uma terceira via entre as concepções positivista e jusnaturalista: não trata com desimportância as demandas do Direito por clareza, certeza e objetividade, mas não o concebe desconectado de uma filosofia moral e de uma filosofia política. Contesta, assim, o postulado positivista de separação entre Direito, moral e política, não para negar a especificidade do objeto de cada um desses domínios, mas para reconhecer que essas três dimensões se influenciam mutuamente também quando da aplicação do Direito, e não apenas quando da sua elaboração. No conjunto de idéias ricas e heterogêneas que procuram abrigo nesse paradigma em construção, incluem-se a reentronização dos valores na interpretação jurídica, com o reconhecimento de normatividade aos princípios e de sua diferença qualitativa em relação às regras; a reabilitação da razão prática e da argumentação jurídica; a formação de uma nova hermenêutica; e o desenvolvimento de uma teoria dos direitos fundamentais edificada sobre a dignidade da pessoa humana. Nesse ambiente, promove-se uma reaproximação entre o Direito e a Ética6.

Por fim, o marco teórico do novo direito constitucional envolve três conjuntos de mudanças de paradigma. O primeiro, já referido, foi o reconhecimento de força normativa às disposições constitucionais, que passam a ter aplicabilidade direta e imediata, transformando-se em fundamentos rotineiros das postulações de direitos e da argumentação jurídica. O segundo foi a expansão da jurisdição constitucional. No mundo, de uma maneira geral, esse fenômeno se manifestou na criação de tribunais constitucionais na grande maioria dos Estados democráticos. No Brasil, em particular, materializou-se ele na atribuição do direito de propositura de ações constitucionais diretas a um longo elenco de órgãos e entidades, o que permitiu fossem levadas ao Supremo Tribunal Federal algumas das grandes questões do debate político, social e moral contemporâneo. A terceira grande transformação teórica se verificou no âmbito da hermenêutica jurídica, com o surgimento de um conjunto de idéias identificadas como nova interpretação constitucional. Nesse ambiente, foram afetadas premissas tradicionais relativas ao papel da norma, dos fatos e do intérprete, bem como foram elaboradas ou reformuladas categorias como a normatividade dos princípios, as colisões de normas constitucionais, a ponderação como técnica de decisão e a argumentação jurídica7. A esse ponto se voltará adiante.

2. A constitucionalização do Direito

“Ontem os Códigos; hoje as Constituições. A revanche da Grécia contra Roma”8. O fenômeno da constitucionalização do Direito tem como ponto de partida a passagem da Constituição para o centro do sistema jurídico, de onde foi deslocado o Código Civil9. No Brasil, a partir de 1988 e, especialmente, nos últimos anos, a Constituição passou a desfrutar, além da supremacia formal que sempre teve, também de uma supremacia material, axiológica, potencializada pela abertura do sistema jurídico e pela normatividade dos princípios. Compreendida como uma ordem objetiva de valores, transformou-se no filtro através do qual se deve ler todo o ordenamento jurídico10.

Nesse ambiente, a Constituição passa a ser não apenas um sistema em si – com a sua ordem, unidade e harmonia – mas também um modo de olhar e interpretar todos os demais ramos do Direito. A constitucionalização identifica um efeito expansivo das normas constitucionais, que se irradiam por todo o sistema jurídico. Os valores, os fins públicos e os comportamentos contemplados nos princípios e regras da Lei Maior passam a condicionar a validade e o sentido de todas as normas do direito infraconstitucional. À luz de tais premissas, toda interpretação jurídica é também interpretação constitucional. Qualquer operação de realização do Direito envolve a aplicação direta ou indireta da Constituição. Direta, quando uma pretensão se fundar em uma norma constitucional; e indireta quando se fundar em uma norma infraconstitucional, por duas razões: a) antes de aplicar a norma, o intérprete deverá verificar se ela é compatível com a Constituição, porque, se não for, não poderá fazê-la incidir; e b) ao aplicar a norma, deverá orientar seu sentido e alcance à realização dos fins constitucionais.

A constitucionalização do Direito produz impacto relevante sobre todos os ramos jurídicos. No direito civil, exemplificativamente, além da vinda para a Constituição de princípios e regras que repercutem sobre as relações privadas – e.g., função social da propriedade, proteção do consumidor, igualdade entre cônjuges, igualdade entre filhos, novas formas de entidade familiar reconhecidas –, houve o impacto revolucionário do princípio da dignidade da pessoa humana. A partir dele, tem lugar uma despatrimonialização11 e uma repersonalização12 do direito civil, com ênfase em valores existenciais e do espírito, bem como no reconhecimento e desenvolvimento dos direitos da personalidade, tanto em sua dimensão física quanto psíquica. A aplicação dos direitos fundamentais às relações privadas também passou a ser um tema objeto de crescente interesse13. No direito administrativo, a constitucionalização produziu mudanças doutrinárias e jurisprudenciais importantes, que incluíram a redefinição da ideia de supremacia do interesse público sobre o interesse privado, a vinculação do administrador à noção mais ampla de juridicidade e não apenas à lei e a possibilidade de controle de mérito do ato administrativo, com base em princípios como razoabilidade, moralidade e eficiência14.

V. A nova interpretação constitucional e o conceito de casos difíceis

1. A interpretação constitucional tradicional

A interpretação constitucional é uma modalidade de interpretação jurídica. Porque assim é, ela se socorre dos elementos tradicionais da interpretação jurídica em geral: gramatical, histórico, sistemático e teleológico. Todavia, as particularidades das normas constitucionais e da interpretação constitucional levaram ao desenvolvimento, ao longo do tempo, de alguns princípios específicos de interpretação constitucional, princípios instrumentais que figuram como pressupostos metodológicos da atuação do intérprete: supremacia da Constituição, presunção de constitucionalidade, interpretação conforme a Constituição, razoabilidade-proporcionalidade e efetividade. Dentro desse universo da interpretação tradicional, era possível definir com precisão o papel da norma, dos fatos e do intérprete. A norma deveria trazer, no seu relato abstrato, a solução para os problemas jurídicos. Os fatos lá estavam para serem enquadrados na norma, permitindo o silogismo que solucionava os problemas: a lei é a premissa maior; os fatos a premissa menor; a sentença a conclusão, o produto da subsunção dos fatos à norma. E, por fim, o papel do intérprete: ele desempenhava uma função técnica de conhecimento, identificando a norma aplicável e pronunciando as consequências de sua incidência sobre o caso concreto. A interpretação, portanto, era um ato de conhecimento e não de vontade.

2. Três mudanças de paradigma que abalaram a interpretação constitucional tradicional

O quarto final do século XX, no Brasil, foi o cenário da superação de algumas concepções do pensamento jurídico clássico, que haviam se consolidado no final do século XIX. Enunciam-se aqui, esquematicamente, três delas:

1. Superação do formalismo jurídico

O pensamento jurídico clássico alimentava duas ficções que, na verdade, expressavam o interesse ideológico dos setores hegemônicos: a) a de que o Direito era a expressão da razão, de uma justiça imanente; e b) a de que o Direito se realizava, se interpretava, se concretizava mediante uma operação lógica e dedutiva, em que o juiz fazia a subsunção dos fatos à norma, meramente pronunciando a consequência jurídica que nela já se continha. Ao longo do século XX, consolidou-se a convicção de que: a) o Direito é, frequentemente, não a expressão de uma justiça imanente, mas de interesses que se tornam dominantes em um dado momento e lugar; e b) em uma grande quantidade de situações, a solução para os problemas jurídicos não se encontrará pré-pronta no ordenamento jurídico. Ela terá de ser construída argumentativamente pelo intérprete, com recurso a elementos externos ao sistema normativo. Ele terá de legitimar suas decisões em valores morais e em fins políticos legítimos.

2. Advento de uma cultura jurídica pós-positivista.

Como já anteriormente assinalado, nesse ambiente em que a solução dos problemas jurídicos não se encontra integralmente na norma jurídica, surge uma cultura jurídica pós-positivista. De fato, se a resposta para os problemas não pode ser encontrada de maneira completa no comando que se encontra na legislação, é preciso procurá-la em outro lugar. E, assim, supera-se a separação profunda que o positivismo jurídico havia imposto entre o Direito e a Moral, entre o Direito e outros domínios do conhecimento. Para achar a resposta que a norma não fornece, o Direito precisa se aproximar da filosofia moral – em busca da justiça e de outros valores –, da filosofia política – em busca de legitimidade democrática e da realização de fins públicos que promovam o bem comum e, de certa forma, também das ciências sociais aplicadas, como economia, psicologia e sociologia. O pós-positivismo não retira a importância da lei, mas parte do pressuposto de que o Direito não cabe integralmente na norma jurídica e, mais que isso, que a justiça pode estar além dela.

3. Ascensão do direito público e centralidade da Constituição

Por fim, o século XX assiste a ascensão do direito público. A teoria jurídica do século XIX havia sido construída, predominantemente, sobre as categorias do direito privado. O Século XIX começa com o Código Civil francês, o Código Napoleão, de 1804, e termina com a promulgação do Código Civil alemão, de 1900. Os protagonistas do Direito eram o contratante e o proprietário. Ao longo do século, XX assiste-se a uma progressiva publicização do Direito, com a proliferação de normas de ordem pública. Ao final do século XX, essa publicização do Direito resulta na centralidade da Constituição, como assinalado acima. Toda interpretação jurídica deve ser feita à luz da Constituição, dos seus valores e dos seus princípios. Como consequência, reitera-se, toda interpretação jurídica é, direta ou indiretamente, interpretação constitucional.

3. Nova interpretação e casos difíceis

A nova interpretação constitucional surge para atender as demandas de uma sociedade que se tornou bem mais complexa e plural. Ela não derrota a interpretação tradicional, mas vem para atender necessidades deficientemente supridas pelas fórmulas clássicas. Tome-se como exemplo o conceito constitucional de família. Até a Constituição de 1988, havia uma única forma de se constituir família legítima, que era pelo casamento. A partir da nova Carta, três modalidades de família são expressamente previstas no texto constitucional: a família que resulta do casamento, a que advém das uniões estáveis e as famílias monoparentais. Contudo, por decisão do Supremo Tribunal Federal, passou a existir uma nova espécie de família: a que decorre das uniões homoafetivas. Veja-se, então, que onde havia unidade passou a existir uma pluralidade.

A nova interpretação incorpora um conjunto de novas categorias, destinadas a lidar com as situações mais complexas e plurais referidas anteriormente. Dentre elas, a normatividade dos princípios (como dignidade da pessoa humana, solidariedade e segurança jurídica), as colisões de normas constitucionais, a ponderação e a argumentação jurídica. Nesse novo ambiente, mudam o papel da norma, dos fatos e do intérprete. A norma, muitas vezes, traz apenas um início de solução, inscrito em um conceito indeterminado ou em um princípio. Os fatos, por sua vez, passam a fazer parte da normatividade, na medida em que só é possível construir a solução constitucionalmente adequada a partir dos elementos do caso concreto. E o intérprete, que se encontra na contingência de construir adequadamente a solução, torna-se co-participante do processo de criação do Direito.

Passa-se, por fim, à ideia de casos difíceis. Casos fáceis são aqueles para os quais existe uma solução pré-pronta no direito positivo. Por exemplo: a) a Constituição prevê que aos 70 anos o servidor público deve passar para a inatividade. Se um juiz, ao completar a idade limite, ajuizar uma ação pretendendo permanecer em atividade, a solução será dada de maneira relativamente singela: pela mera subsunção do fato relevante – implementação da idade – na norma expressa, que determina a aposentadoria; b) a Constituição estabelece que o Presidente da República somente pode se candidatar a uma reeleição. Se o Presidente Lula, por exemplo, tivesse pretendido concorrer a um terceiro mandato, a Justiça Eleitoral teria indeferido o registro de sua candidatura, por simples e singela aplicação de uma norma expressa. A verdade, porém, é que para bem e para mal, a vida nem sempre é fácil assim. Há muitas situações em que não existe uma solução pré-pronta no Direito. A solução terá de ser construída argumentativamente, à luz dos elementos do caso concreto, dos parâmetros fixados na norma e de elementos externos ao Direito. São os casos difíceis. Há três grandes situações geradoras de casos difíceis:

A. Ambiguidade da linguagem. Quando se vale de princípios ou de conceitos jurídicos indeterminados, o Direito utiliza termos e expressões que têm múltiplos significados possíveis e cujo sentido somente poderá ser estabelecido à luz dos elementos do caso concreto. Princípios como eficiência, razoabilidade ou solidariedade; cláusulas abertas como calamidade pública, repercussão geral ou impacto ambiental; e mesmo vocábulos plurissignificativos como tributos, servidores públicos ou privacidade envolvem, na sua concretização, uma dose maior ou menor de valoração subjetiva por parte do intérprete. A consequência natural é a existência de algum grau de variação e de incerteza na sua interpretação, com implicações inevitáveis sobre a segurança jurídica.

B. Desacordos morais razoáveis. No mundo contemporâneo, nas sociedades plurais e complexas em que nós vivemos, pessoas esclarecidas e bem intencionadas pensam de maneira diferente acerca de temas moralmente controvertidos. Não é difícil comprovar e ilustrar o argumento com situações envolvendo (a) eutanásia e suicídio assistido, isto é, a existência ou não de um direito à morte digna; (b) a questão da recusa de transfusão de sangue por pessoas adeptas da religião Testemunhas de Jeová; e (c) o debate sobre a descriminalização das drogas leves. Também aqui a pré-compreensão do intérprete, seu ponto de observação, sua ideologia e visão de mundo acabam por ser, consciente ou inconscientemente, fator determinante na escolha da decisão que se afigura mais acertada.

C. Colisões de normas constitucionais ou de direitos fundamentais. A Constituição, por ser um documento dialético, abriga valores contrapostos que, por vezes, entram em tensão entre si, quando não colidem frontalmente. Não é difícil oferecer exemplos emblemáticos. O cantor Roberto Carlos foi a juízo para impedir a divulgação de uma biografia não autorizada, invocando os seus direitos constitucionais de imagem e de privacidade. O autor da obra defendeu-se fundado na sua liberdade de expressão e no direito de informação, igualmente protegidos constitucionalmente. Naturalmente, como os dois lados têm normas constitucionais a seu favor, não é possível resolver esse problema mediante subsunção dos fatos à norma aplicável, porque mais de uma postula incidência sobre a hipótese. Diante disso, a solução terá de ser construída argumentativamente mediante ponderação, isto é, a valoração de elementos do caso concreto com vistas à produção da solução que melhor atende ao caso concreto. As duas soluções possíveis vão disputar a escolha pelo intérprete.

Portanto, casos difíceis são aqueles que, devido a razões diversas, não tem uma solução abstratamente prevista e pronta no ordenamento, que possa ser retirada de uma prateleira de produtos jurídicos. Eles exigem a construção artesanal da decisão, mediante uma argumentação mais elaborada, capaz de justificar e legitimar o papel criativo desempenhado pelo juiz na hipótese.

VI. Jurisdição constitucional e função legislativa: a tênue fronteira entre o Direito e a política

1. A ascensão política das Supremas Cortes e do Poder Judiciário

Nos últimos anos, o Supremo Tribunal Federal (STF) tem ocupado um espaço relevante no cenário político e no imaginário social. A centralidade da Corte e, de certa forma, do Judiciário como um todo, não é peculiaridade nacional. Em diferentes partes do mundo, em épocas diversas, tribunais constitucionais tornaram-se protagonistas de discussões políticas ou morais em temas controvertidos. Desde o final da Segunda Guerra, em muitas democracias, verificou-se um certo avanço da justiça constitucional sobre o campo da política majoritária, que é aquela feita no âmbito do Legislativo e do Executivo, tendo por combustível o voto popular. Os exemplos são numerosos e inequívocos. Nos Estados Unidos, a eleição de 2000 foi decidida pela Suprema Corte. Em Israel, foi também a Suprema Corte que deu a última palavra sobre a construção de um muro na divisa com o território palestino. Na França, o Conselho Constitucional legitimou a proibição da burca.

Esses precedentes ilustram a fluidez da fronteira entre política e direito no mundo contemporâneo. Ainda assim, o caso brasileiro é especial, pela extensão e pelo volume. Apenas em 2011 e 2012, o STF decidiu acerca de uniões homoafetivas, interrupção da gestação de fetos anencefálicos e cotas raciais. Anteriormente, decidira sobre pesquisas com células-tronco embrionárias, nepotismo e demarcação de terras indígenas. Sem mencionar o chamado Mensalão. Tudo potencializado pela transmissão ao vivo dos julgamentos pela TV Justiça. Embora seja possível apontar inconveniências nessa deliberação diante das câmeras, os ganhos são maiores do que as perdas. A visibilidade pública contribui para a transparência, para o controle social e, em última análise, para a democracia. TV Justiça só tem no Brasil, não é jabuticaba e é muito boa.

2. Judicialização e ativismo judicial

A ascensão do Judiciário deu lugar a uma crescente judicialização da vida e a alguns momentos de ativismo judicial. Judicialização significa que questões relevantes do ponto de vista político, social ou moral estão sendo decididas pelo Judiciário. Trata-se, como intuitivo, de uma transferência de poder das instâncias tradicionais, que são o Executivo e o Legislativo, para juízes e tribunais. Há causas diversas para o fenômeno. A primeira é o reconhecimento de que um Judiciário forte e independente é imprescindível para a proteção dos direitos fundamentais. A segunda envolve uma certa desilusão com a política majoritária. Há uma terceira: atores políticos, muitas vezes, para evitar o desgaste, preferem que o Judiciário decida questões controvertidas, como aborto e direitos dos homossexuais. No Brasil, o fenômeno assume uma proporção maior em razão de a Constituição cuidar de uma impressionante quantidade de temas. Incluir uma matéria na Constituição significa, de certa forma, retirá-la da política e trazê-la para o direito, permitindo a judicialização. A esse contexto ainda se soma o número elevado de pessoas e entidades que podem propor ações diretas perante o STF.

A judicialização ampla, portanto, é um fato, uma circunstância decorrente do desenho institucional brasileiro, e não uma opção política do Judiciário. Fenômeno diverso, embora próximo, é o ativismo judicial. O ativismo é uma atitude, é a deliberada expansão do papel do Judiciário, mediante o uso da interpretação constitucional para suprir lacunas, sanar omissões legislativas ou determinar políticas públicas quando ausentes ou ineficientes. Exemplos de decisões ativistas, além dos casos já mencionados, envolveram a exigência de fidelidade partidária e a regulamentação do direito de greve dos servidores públicos. Todos esses julgamentos atenderam a demandas sociais não satisfeitas pelo Poder Legislativo. Registre-se, todavia, que apesar de sua importância e visibilidade, tais decisões ativistas representam antes a exceção do que a regra. A decisão do STF sobre as pesquisas com células-tronco, ao contrário do que muitas vezes se afirma, é um exemplo de autocontenção. O Tribunal se limitou a considerar constitucional a lei editada pelo Congresso.

3. Críticas à expansão do Judiciário

Inúmeras críticas têm sido dirigidas a essa expansão do papel do Judiciário. A primeira delas é de natureza política: magistrados não são eleitos e, por essa razão, não deveriam poder sobrepor sua vontade à dos agentes escolhidos pelo povo. A segunda é uma crítica ideológica: o Judiciário seria um espaço conservador, de preservação das elites contra os processos democráticos majoritários. Uma terceira crítica diz respeito à capacidade institucional do Judiciário, que seria preparado para decidir casos específicos, e não para avaliar o efeito sistêmico de decisões que repercutem sobre políticas públicas gerais. E, por fim, a judicialização reduziria a possibilidade de participação da sociedade como um todo, por excluir os que não têm acesso aos tribunais.

Todas essas críticas merecem reflexão, mas podem ser neutralizadas. Em primeiro lugar, uma democracia não é feita apenas da vontade das maiorias, mas também da preservação dos direitos fundamentais de todos. Cabe ao Judiciário defendê-los. Em segundo lugar, é possível sustentar que, na atualidade brasileira, o STF está à esquerda do Congresso Nacional. De fato, quando o Tribunal decidiu regulamentar o aviso prévio proporcional ao tempo de serviço, as classes empresariais acorreram ao Congresso, pedindo urgência na aprovação da lei que tardava. Ninguém duvidava que o STF seria mais protetivo dos trabalhadores que o legislador. Quanto à capacidade institucional, juízes e tribunais devem ser autocontidos e deferentes aos outros Poderes em questões técnicas complexas, como transposição de rios ou demarcação de terras indígenas. Por fim, a judicialização jamais deverá substituir a política, nem pode ser o meio ordinário de se resolverem as grandes questões. Pelo contrário. O Judiciário só deve interferir quando a política falha.

4. Complexidade da vida e criação judicial do Direito

O Judiciário não apenas ocupou mais espaço como, além disso, sua atuação se tornou mais discricionária. Em muitas situações, em lugar de se limitar a aplicar a lei já existente, o juiz se vê na necessidade de agir em substituição ao legislador. A despeito de algum grau de subversão ao princípio da separação de Poderes, trata-se de uma inevitabilidade, a ser debitada à complexidade e ao pluralismo da vida contemporânea. Foi o que ocorreu no exemplo do reconhecimento das uniões homoafetivas, referido acima. Diante da ausência de norma disciplinando a questão, o Supremo Tribunal Federal precisou criar uma. Evidentemente, como é próprio, não se trata do exercício de voluntarismo judicial, mas, sim, de extrair do sistema constitucional e legal a melhor solução. O mesmo se passa no tocante à interrupção da gestação de fetos anencefálicos. À falta de regra expressa, a Corte construiu – com acerto – a que melhor equacionou o problema.

Juízes e tribunais também precisam desempenhar uma atividade mais criativa – isto é, menos técnica e mais política – nas inúmeras situações de colisões entre normas constitucionais. Tome-se como exemplo a disputa judicial envolvendo a construção de usinas hidrelétricas na Amazônia. O governo invocou, para legitimar sua decisão, a norma constitucional que consagra o desenvolvimento econômico como um dos objetivos fundamentais da República; do outro lado, ambientalistas e a população afetada fundamentavam sua oposição à medida na disposição constitucional que cuida da proteção ao meio-ambiente. Pois bem: o juiz não pode decidir que os dois lados têm razão e julgar a lide empatada. Ele terá que resolver a disputa, ponderando interesses e criando argumentativamente a norma que considera adequada para o caso concreto. Tal circunstância aumenta o seu poder individual e reduz a objetividade e previsibilidade do direito. Mas a culpa não é nem do juiz nem dos tribunais. A vida é que ficou mais complicada, impedindo o legislador de prever soluções abstratas para todas as situações.

5. STF: contramajoritário e representativo

De tudo o que se disse, é possível concluir que o Judiciário se expande, sobretudo, nas situações em que o Legislativo não pode, não quer ou não consegue atuar. Aqui se chega ao ponto crucial: o problema brasileiro atual não é excesso de judicialização, mas escassez de boa política. Nesse cenário, imaginar que a solução esteja em restringir o papel do Judiciário é assustar-se com a assombração errada. O que o país precisa é restaurar a dignidade da política, superando o descrédito da sociedade civil, particularmente em relação ao Legislativo. É hora de diminuir o peso do dinheiro, dar autenticidade aos partidos e atrair vocações. Enquanto não vier a reforma política necessária, o STF terá de continuar a desempenhar, com intensidade, os dois papéis que o trouxeram até aqui: o contramajoritário, que importa em estabelecer limites às maiorias; e o representativo, que consiste em dar uma resposta às demandas sociais não satisfeitas pelas instâncias políticas tradicionais.

Há uma última questão delicada associada à expansão do papel do STF: sua relação com a opinião pública. Todo poder político, em um ambiente democrático, é exercido em nome do povo e deve contas à sociedade. A autoridade para fazer valer a Constituição, como qualquer autoridade que não repouse na força, depende da confiança dos cidadãos. Mas há sutilezas aqui. Muitas vezes, a decisão correta e justa não é a mais popular. E o populismo judicial é tão ruim quanto qualquer outro. Um Tribunal digno desse nome não pode decidir pensando nas manchetes do dia seguinte ou reagindo às do dia anterior. Faz parte da sabedoria política universal que tentar agradar a todos é o caminho certo para o fracasso. Sem cair nessa armadilha, o STF tem servido bem à democracia brasileira e merece o reconhecimento da sociedade.

VII. A dignidade humana no direito contemporâneo: o centro do sistema constitucional

O constitucionalismo democrático tem por fundamento e objetivo a dignidade da pessoa humana. Após a Segunda Grande Guerra, a dignidade tornou-se um dos grandes consensos éticos do mundo ocidental, materializado em declarações de direitos, convenções internacionais e constituições. Apesar do grande apelo moral e espiritual da expressão, sua grande vagueza tem feito com que ela funcione, em extensa medida, como um espelho: cada um projeta nela a sua própria imagem, os seus valores e convicções. Isso tem feito com que a ideia de dignidade seja frequentemente invocada pelos dois lados do litígio, quando estejam em disputa questões moralmente controvertidas. É o que tem se passado, por exemplo, em discussões sobre aborto, suicídio assistido ou pesquisas com células-tronco embrionárias. Sem mencionar o uso indevido do conceito para a decisão de questões triviais, com inconveniente banalização do seu sentido. De conflitos de vizinhança à proibição de brigas de galo, a dignidade é utilizada como uma varinha de condão que resolve problemas, sem maior esforço argumentativo. Naturalmente, não é bom que seja assim. Por essa razão, torna-se necessário um esforço doutrinário para determinar sua natureza jurídica e o seu conteúdo.

1. A dignidade da pessoa humana é um princípio jurídico

A dignidade humana é um valor fundamental. Valores, sejam políticos ou morais, ingressam no mundo do Direito assumindo, usualmente, a forma de princípios. A dignidade, portanto, é um princípio jurídico de status constitucional15. Como valor e como princípio, a dignidade humana funciona tanto como justificação moral quanto como fundamento normativo para os direitos fundamentais. Na verdade, ela constitui parte do conteúdo dos direitos fundamentais. Os princípios constitucionais desempenham diferentes papéis no sistema jurídico. Destacam-se aqui dois deles: a) o de fonte direta de direitos e deveres; e b) o interpretativo. Os princípios operam como fonte direta de direitos e deveres quando do seu núcleo essencial de sentido se extraem regras que incidirão sobre situações concretas. Por exemplo: o conteúdo essencial da dignidade humana implica na proibição da tortura, mesmo em um ordenamento jurídico no qual não exista regra expressa impedindo tal conduta. Já no seu papel interpretativo, o princípio da dignidade humana vai informar o sentido e o alcance dos direitos constitucionais. Além disso, nos casos envolvendo lacunas no ordenamento jurídico, ambiguidades no direito, colisões entre direitos fundamentais e tensões entre direitos e metas coletivas, a dignidade humana pode ser uma boa bússola na busca da melhor solução. Mais ainda, qualquer lei que viole a dignidade, seja em abstrato ou em concreto, será nula16.

2. O conteúdo jurídico da dignidade humana

Para que possa funcionar como um conceito operacional do ponto de vista jurídico, é indispensável dotar a ideia de dignidade de um conteúdo mínimo, que dê unidade e objetividade à sua aplicação. A primeira tarefa que se impõe é afastá-la das doutrinas abrangentes, sejam elas religiosas ou ideológicas. As características de um conteúdo mínimo devem ser a laicidade – não pode ser uma visão judaica, católica ou muçulmana de dignidade –, a neutralidade política – isto é, que possa ser compartilhada por liberais, conservadores e socialistas – e a universalidade – isto é, que possa ser compartilhada por toda a família humana. Para levar a bom termo esse propósito, deve-se aceitar uma noção de dignidade humana aberta, plástica e plural. Em uma concepção minimalista, dignidade humana identifica (1) o valor intrínseco de todos os seres humanos, assim como (2) a autonomia de cada individuo, (3) limitada por algumas restrições legítimas impostas a ela em nome de valores sociais ou interesses estatais (valor comunitário). Portanto, os três elementos que integram o conteúdo mínimo da dignidade, na sistematização aqui proposta, são: valor intrínseco da pessoa humana, autonomia individual e valor comunitário.

O valor intrínseco é, no plano filosófico, o elemento ontológico da dignidade, ligado à natureza do ser. Trata-se da afirmação da posição especial da pessoa humana no mundo, que a distingue dos outros seres vivos e das coisas. As coisas têm preço, mas as pessoas têm dignidade, um valor que não tem preço17. A inteligência, a sensibilidade e a capacidade de comunicação (pela palavra, pela arte, por gestos, pelo olhar ou por expressões fisionômicas) são atributos únicos que servem para dar-lhes essa condição singular. No plano jurídico, o valor intrínseco está na origem de uma série de direitos fundamentais, que incluem:

a) direito à vida: todos os ordenamentos jurídicos protegem o direito à vida. Como consequência, o homicídio é tratado em todos eles como crime. A dignidade preenche, em quase toda sua extensão, o conteúdo desse direito. Não obstante isso, em torno do direito à vida se travam debates de grande complexidade moral e jurídica, como a pena de morte, o aborto e a eutanásia;

b) Direito à igualdade: todas as pessoas têm o mesmo valor intrínseco e, portanto, merecem igual respeito e consideração, independentemente de raça, cor, sexo, religião, origem nacional ou social ou qualquer outra condição. Aqui se inclui a igualdade formal – o direito a não ser discriminado arbitrariamente na lei e perante a lei – assim como o respeito à diversidade e à identidade de grupos sociais minoritários (a igualdade como reconhecimento). É nesse domínio que se colocam temas controvertidos como ação afirmativa em favor de grupos sociais historicamente discriminados, reconhecimento das uniões homoafetivas, direitos dos deficientes e dos índios, dentre outros;

c) Direito à integridade física: desse direito decorrem a proibição de tortura, do trabalho escravo ou forçado, as penas cruéis e o tráfico de pessoas. É aqui que se colocam debates complexos como os limites às técnicas de interrogatório, admissibilidade da prisão perpétua e regimes prisionais. E, também, do comércio de órgãos e das pesquisas clínicas;

d) Direito à integridade moral ou psíquica: nesse domínio estão incluídos a privacidade, a honra e a imagem. Muitas questões intrincadas derivam desses direitos da personalidade, nas suas relações com outros direitos e situações constitucionalmente protegidas. Têm sido recorrentes e polêmicas as colisões entre a liberdade de expressão, de um lado, e os direitos à honra, à privacidade e à imagem, de outro.

A autonomia é, no plano filosófico, o elemento ético da dignidade, ligado à razão e ao exercício da vontade em conformidade com determinadas normas. A dignidade como autonomia envolve a capacidade de autodeterminação do indivíduo, de decidir os rumos da própria vida e de desenvolver livremente a sua personalidade. Significa o poder de fazer valorações morais e escolhas existenciais sem imposições externas indevidas. Decisões sobre religião, vida afetiva, trabalho e outras opções personalíssimas não podem ser subtraídas do indivíduo sem violar a sua dignidade. No plano jurídico, a autonomia envolve uma dimensão privada, outra pública e tem, ainda, como pressuposto necessário, a satisfação do mínimo existencial, examinados sumariamente na forma abaixo:

a) autonomia privada: está na origem dos direitos individuais, das liberdades públicas, que incluem, além das escolhas existenciais acima referidas, as liberdades de consciência, de expressão, de trabalho e de associação, dentre outras;

b) autonomia pública: está na origem dos direitos políticos, dos direitos de participação na condução da coisa pública. A democracia funda-se na soberania popular – todas as pessoas são livres e iguais e podem e devem participar das decisões que afetem sua vida –, constituindo uma parceria de todos em um projeto de autogoverno. A autonomia pública identifica aspectos nucleares do direito de cada um participar politicamente e de influenciar o processo de tomada de decisões, não apenas do ponto de vista eleitoral, mas também através do debate público e da organização social;

c) mínimo existencial: trata-se do pressuposto necessário ao exercício da autonomia, tanto pública quanto privada. Para poder ser livre, igual e capaz de exercer plenamente a sua cidadania, todo indivíduo precisa ter satisfeitas as necessidades indispensáveis à sua existência física e psíquica. O mínimo existencial corresponde ao núcleo essencial dos direitos fundamentais sociais e seu conteúdo corresponde às pré-condições para o exercício dos direitos individuais e políticos, da autonomia privada e pública.

O valor comunitário constitui o elemento social da dignidade humana, o indivíduo em relação ao grupo. Aqui, a dignidade é moldada pelos valores compartilhados pela comunidade, seus padrões civilizatórios, seu ideal de vida boa. O que está em questão não são escolhas individuais, mas responsabilidades e deveres a elas associados. A autonomia individual desfruta de grande importância, mas não é ilimitada, devendo ceder em certas circunstâncias. A dignidade como valor comunitário destina-se a promover, sobretudo:

a) a proteção dos direitos de terceiros: a autonomia individual deve ser exercida com respeito à autonomia das demais pessoas, de seus iguais direitos e liberdades. Por essa razão, todos os ordenamentos jurídicos protegem a vida, criminalizando o homicídio; protegem a integridade física, criminalizando a lesão corporal; protegem a propriedade, criminalizando o furto, em meio a inúmeros outros bem jurídicos tutelados pelo direito penal e outros ramos do direito;

b) a proteção do indivíduo contra si próprio: em certas circunstâncias, o Estado tem o direito de proteger as pessoas contra atos autorreferentes, suscetíveis de lhes causar lesão. Assim, portanto, é possível impor o uso de cinto de segurança ou de capacete, tornar a vacinação obrigatória ou estabelecer o dever de os pais matricularem os filhos menores em escolas. Nesse domínio se inserem questões controvertidas, como eutanásia, sadomasoquismo e o célebre caso do arremesso de anão18;

c) a proteção de valores sociais: toda sociedade, por mais liberais que sejam seus postulados, impõe coercitivamente um conjunto de valores que correspondem à moral social compartilhada. Proibição do incesto, da pedofilia, da incitação à violência constituem alguns consensos básicos. Mas, também aqui, existem temas divisivos, como a criminalização da prostituição ou a descriminalização das drogas leves. A imposição coercitiva de valores sociais – em geral pelo legislador, eventualmente pelo juiz – exige fundamentação racional consistente e deve levar seriamente em conta: a) a existência ou não de um direito fundamental em questão; b) a existência de consenso social forte em relação ao tema; e c) a existência de risco efetivo para o direito de outras pessoas. É preciso evitar o paternalismo, o moralismo e a tirania das maiorias.

VIII. Alguns casos difíceis decididos pelo Supremo Tribunal Federal e a construção judicial do Direito

Como ficou assentado linhas atrás, casos difíceis são aqueles para os quais não há uma solução pré-pronta no ordenamento jurídico. Tal circunstância faz com que o intérprete se torne co-participante do processo de criação do Direito, na medida em que caberá a ele, à luz dos elementos disponíveis, construir argumentativamente a solução que irá resolver a situação. A legitimidade de tal atuação dependerá da capacidade do juiz ou tribunal de convencer o auditório ao qual se dirige de que a decisão produzida é constitucionalmente adequada, por ser legítima, justa e compatível com o sistema normativo. O auditório típico de um juiz de primeiro grau é o seu tribunal. O auditório típico de um tribunal, nas questões constitucionais, é o Supremo Tribunal Federal. O próprio STF não é um tribunal de si próprio. Sua legitimidade e credibilidade dependem da compreensão e do assentimento da sociedade como um todo quanto ao papel que desempenha. No fundo, este é o seu auditório final. Comentam-se, abaixo, sumariamente, cinco decisões produzidas pelo STF em questões jurídica e moralmente controvertidas. Todos eles envolvem complexidades inerentes à interpretação constitucional e quase todos suscitam questões afetas à dignidade humana.

1. Anencefalia: legitimidade da interrupção da gestação

A Anencefalia é uma má-formação fetal, devido a um problema no fechamento do tubo neural. Na prática, diante da ausência da calota craniana, o feto se forma sem o cérebro e sem qualquer viabilidade de vida extra-uterina. O diagnóstico é feito no terceiro mês de gestação. Na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 54, o Supremo Tribunal Federal se pronunciou sobre a legitimidade ou não de a mulher poder interromper a gestação após o diagnóstico, se este fosse o seu desejo. O caso era difícil pelas três razões típicas. Em primeiro lugar, pela ambiguidade da linguagem: determinar se o sentido e alcance do direito à vida englobava ou não um feto inviável. Em segundo lugar, pela existência de uma colisão de direitos fundamentais: admitindo-se que houvesse, de fato, um direito à vida potencial por parte do feto, ele se contraporia ao direito da mãe de não se submeter a um sofrimento que considere inútil, com repercussão sobre a sua integridade física e psíquica. E, em terceiro lugar, um descordo moral: em todas as questões que envolvem interrupção da gestação e aborto, contrapõem-se os defensores da liberdade de escolha da mulher – isto é, o exercício de sua liberdade reprodutiva – e os que consideram que o direito à vida é absoluto e se estende ao feto, sendo ilegítima a decisão da mãe de interromper a gestação.

O Supremo Tribunal Federal decidiu que a interrupção da gestação no caso de feto anencefálico é fato atípico, em razão da ausência de potencialidade de vida do feto. Como consequência, reconheceu o direito de a mulher interromper a gestação em tal hipótese, independentemente de autorização judicial.

2. Pesquisas com células-tronco embrionárias: legitimidade da legislação autorizadora

A Lei de Biossegurança (Lei nº 11.105, de 24.03.2005), no seu art. 5º, veio autorizar as pesquisas com células-tronco embrionárias, observados determinados requisitos. Admitia, assim, que os embriões resultantes de procedimentos de fertilização in vitro, que estivessem congelados há mais de três anos, fossem destinados à pesquisa científica, se os genitores dessem autorização. As células-tronco embrionárias contêm material genético apto a se transformar em qualquer tecido ou órgão do corpo humano, o que significa uma fronteira extraordinária para a pesquisa médica, por oferecer perspectiva de tratamento para doenças até aqui sem cura, como mal de Parkinson, lesões medulares e diabetes, dentre outras. O caso também era difícil pelas razões usuais. Havia uma ambiguidade de linguagem relativa ao enquadramento ou não de um embrião congelado no conceito de vida, para fins de proteção constitucional. Também estava presente uma colisão de normas: para quem entendia que se tratava de uma vida potencial, sua preservação se chocava com o interesse dos pesquisadores e dos portadores de doenças cuja cura pudesse ser alcançada por essa linha de pesquisas. Por fim, havia um desacordo moral: preservar o embrião, em nome do direito à vida, ou destiná-lo à ciência, diante da constatação de que ele jamais seria implantado em um útero materno.

Por maioria de votos, o Supremo Tribunal Federal declarou a constitucionalidade da lei, entendendo que um embrião congelado e sem perspectiva de implantação em um útero materno não constituía vida para fins constitucionais. Como consequência, considerou legítimas as pesquisas com células-tronco embrionárias, mesmo que importassem na destruição do embrião.

3. Nepotismo: validade do ato normativo do CNJ que restringiu a nomeação de parentes até o terceiro grau de membros do Judiciário para cargos em comissão

A Resolução nº 7, de 18 de outubro de 2005, do Conselho Nacional de Justiça, vedou a prática de nepotismo no âmbito de todos os órgãos do Poder Judiciário. Como consequência, ficou proibida a nomeação para cargo em comissão ou função gratificada – isto é, investiduras que independem de concurso – de cônjuge, companheiro ou parente em linha reta, colateral ou por afinidade, até o terceiro grau, de membro do Poder Judiciário da mesma jurisdição. No plano federal, bem como em alguns Estados-membros da Federação, já havia leis com teor assemelhado. Não, assim, porém, na maioria dos Estados. Editada a resolução pelo CNJ, ela foi amplamente descumprida pelos tribunais estaduais, sob o fundamento de que a matéria era reservada à lei, sendo insuscetível de ser tratada mediante ato normativo secundário.

Diante disso, a Associação dos Magistrados Brasileiros - AMB ajuizou ação declaratória de constitucionalidade, requerendo ao Supremo Tribunal Federal que reconhecesse a validade da resolução do CNJ. O caso era difícil essencialmente por uma razão: a determinação do sentido e do alcance do princípio da legalidade. De acordo com o conhecimento convencional, esposado pelos tribunais estaduais, na falta de lei não era possível impor a restrição. A AMB sustentou que, no direito contemporâneo, em lugar da legalidade, aplica-se uma noção mais ampla, que é a de juridicidade, que inclui a aplicação direta e imediata da Constituição e seus princípios.

O Supremo Tribunal Federal, por maioria larga, declarou a constitucionalidade da Resolução nº 7, do CNJ. Entendeu que dos princípios da moralidade e da impessoalidade, previstos expressamente na Constituição, era possível extrair a regra proibitiva do nepotismo. Pouco após esta decisão, que se referia apenas ao Poder Judiciário, o STF editou a Súmula nº 13, vedando o nepotismo em todos os Poderes.

4. Uniões homoafetivas: igualdade de tratamento com as uniões estáveis convencionais

Inexiste no direito brasileiro norma expressa regendo a situação das uniões homoafetivas. A Constituição não cuida delas. O art. 226, § 3º faz menção, tão-somente, ao reconhecimento de uniões estáveis entre homem e mulher. O mesmo se passa em relação à legislação ordinária, inclusive o art. 1.723 do Código Civil, que, por igual, somente se refere às relações entre homem e mulher. Diante da ausência de norma expressa, a jurisprudência se dividia entre duas soluções: parte dos tribunais entendia que a relação afetiva entre um homem e um homem, ou entre uma mulher e uma mulher, devia ser categorizada como uma sociedade de fato, cujos efeitos jurídicos, inclusive em caso de dissolução, deveriam ser pronunciados por um juiz cível; a outra parte entendia que, a despeito do silêncio da legislação, a analogia mais próxima era a da união estável, sendo competente a justiça de família. Na ação se pedia que o Supremo Tribunal Federal declarasse que esta última concepção é que estava em conformidade com a Constituição. O caso era difícil por duas razões. A primeira, no tocante à ambiguidade da linguagem, envolvia determinar se a locução união estável, tradicionalmente aplicada às relações heterossexuais, se estendia, também, às relações homoafetivas. Com a dificuldade de que a norma constitucional e a legislação ordinária somente se referiam a “homem e mulher” ao tratar da união estável.

A segunda razão que tornava o caso difícil é a inegável existência de desacordo moral razoável na matéria. De um lado, há segmentos da sociedade que entendem que união estável, assim como casamento, só pode ser entre pessoas de sexos opostos. Sustentam que a homossexualidade é contra as leis da natureza, que há expressa condenação na Bíblia e que, portanto, não deve ser encarada pelo Direito como um fato normal. De outro lado, inúmeros setores consideram que a homossexualidade é um fato da vida, que sua causa é predominantemente genética e que discriminar uma pessoa em razão de sua orientação sexual é como discriminar negros, judeus, ou asiáticos. As relações estáveis homoafetivas se baseiam na afetividade e em um projeto de vida comum. Ou seja: as mesmas características da união estável. Logo, não há fundamento legítimo para o tratamento diverso.

Em surpreendente unanimidade, o Supremo Tribunal Federal decidiu que as uniões estáveis homoafetivas deveriam receber o mesmo tratamento jurídico das uniões estáveis convencionais.

5. Cesare Battisti: a recusa de sua extradição por ato do Presidente da República

Cesare Battisti era um antigo militante da esquerda italiana contra quem a República Italiana ajuizou um pedido de extradição em 24 de abril de 2007. Battisti, integrante de uma organização chamada Proletários Armados pelo Comunismo, fora condenado a prisão perpétua na Itália, acusado de ter participado de ações da referida organização que resultaram em quatro homicídios. No curso do processo de extradição, o Ministro da Justiça concedeu a Cesare Battisti refúgio político, com base na legislação vigente. Em essência, considerou serem plausíveis os argumentos de perseguição política contra ele e, sobretudo, de ausência de devido processo legal no julgamento no qual foi condenado. De fato, Battisti foi submetido a um segundo julgamento, por tribunal de júri, à revelia, pois se encontrava em abrigo político na França. As provas eram exclusivamente os depoimentos de “arrependidos”, alguns já condenados pelos homicídios cuja culpa transferiam para ele. Mais que tudo: os advogados de Battisti haviam sido constituídos pela própria organização – isto é, pelos “arrependidos” que lhe transferiam a culpa – e a procuração dada a eles era falsa, conforme comprovação pericial.

Em um primeiro julgamento, o Supremo Tribunal, por 5 votos a 4, invalidou o ato de concessão de refúgio e autorizou a extradição. Igualmente por 5 votos a 4, o STF estabeleceu que a competência final na matéria – isto é, a decisão de entregar ou não o extraditando ao Estado requerente – era do Presidente da República. O Presidente Lula decidiu não entregá-lo. A questão tornou a ser judicializada, sendo levada a um segundo julgamento. O STF entendeu, então, que a decisão do Presidente era de natureza política e, consequentemente, insindicável judicialmente. Este caso, a rigor, não constituía um caso difícil em sentido técnico. Sua dificuldade foi política. Juridicamente, as três principais teses em discussão configuravam um caso fácil. Eram elas:

1a. A concessão de refúgio extingue o processo de extradição. Tal consequência resulta da dicção expressa da lei e já fora reconhecida anteriormente pelo Supremo Tribunal Federal.

2a. O ato de concessão de refúgio é de natureza política, não constituindo ato vinculado, cujo conteúdo possa ser revisto pelo Judiciário. Tal entendimento corresponde à posição pacífica da doutrina e já fora adotado pelo STF em decisão proferida pouco tempo antes.

3a. A decisão que defere a extradição tem caráter meramente autorizativo, não vinculando o Presidente da República. Esta era, de longa data – e continuou a ser – a jurisprudência pacífica da Corte.

4a. Atos praticados pelo Presidente da República na condução das relações internacionais são privativos do Executivo e não podem ser revistos pelo Judiciário. A tese corresponde ao conhecimento convencional e nunca havia sido questionada.

IX. Conclusão

Como afirmado ao início, o presente texto procurou ordenar e sistematizar ideias e fenômenos que revolucionaram o direito constitucional nas últimas três décadas. No caso brasileiro, os cinco precedentes judiciais apresentados no capítulo final do trabalho ilustram o novo papel da Constituição, da interpretação constitucional e dos tribunais. Apesar das resistências, trata-se de mudanças que impulsionaram o processo social e preservaram liberdades fundamentais, contribuindo para a promoção da dignidade humana. A seguir, em proposições objetivas, uma síntese apertadas das ideias desenvolvidas:

1. A Constituição de 1988 simboliza um vertiginoso sucesso institucional, tendo propiciado o mais longo período de continuidade democrática da experiência constitucional brasileira. De parte isso, tem sido pano de fundo de um duradouro período de desenvolvimento econômico e social. A despeito do texto excessivamente extenso e detalhista, submetido a muitas dezenas de emendas, a parte da constituição que contém normas materialmente constitucionais – como a organização do Estado, dos Poderes e o sistema de direitos fundamentais – permaneceu estável ao longo do tempo.

2. A conquista de normatividade e de efetividade pela Constituição foi o rito de passagem para o direito constitucional contemporâneo. A aplicabilidade direta e imediata da Constituição e o reconhecimento dos direitos constitucionais como direitos subjetivos sindicáveis judicialmente mudaram a face do constitucionalismo brasileiro.

3. O neoconstitucionalismo é produto de transformações profundas no modo como se pensa e se pratica o direito constitucional. O advento de uma cultura pós-positivista e a expansão do papel do Judiciário e da jurisdição constitucional abriram caminho para um constitucionalismo principiológico e voltado para a concretização dos direitos fundamentais.

4. A passagem da Constituição para o centro do sistema jurídico deu lugar ao fenômeno da constitucionalização do Direito, que consiste na leitura do direito infraconstitucional à luz dos princípios, mandamentos e fins previstos na Constituição

5. A nova interpretação constitucional desenvolveu ou aprofundou novas categorias jurídicas, necessárias para lidar com o pluralismo e a complexidade da vida contemporânea. Os chamados casos difíceis envolvem situações para as quais não há soluções pré-prontas no ordenamento jurídico, exigindo a atuação criativa de juízes e tribunais.

6. A judicialização é, em grande medida, um fenômeno mundial. No Brasil, ela é potencializada pela abrangência da Constituição e pelo sistema amplo de controle de constitucionalidade. O ativismo judicial entre nós tem se manifestado de maneira pontual, como forma de atender demandas sociais não satisfeitas pelo processo político majoritário.

7. A dignidade da pessoa humana é um valor fundamental e um princípio constitucional que serve de fundamento ético e jurídico para os direitos materialmente fundamentais, aos quais fornece parte do conteúdo essencial. Dela se extraem regras específicas e vetores interpretativos. O conteúdo jurídico da dignidade é conformado pelo valor intrínseco da pessoa humana, pela autonomia individual e pelo valor comunitário. É imprescindível dar à dignidade uma dimensão objetiva, que permita o seu uso operacional e a poupe do desgaste da banalização.

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1 Sobre o tema, v. Konrad Hesse, La fuerza normativa de la Constitución. In: Escritos de derecho constitucional, 1983. Trata-se da tradução para o espanhol de um ensaio seminal, publicado em 1958. V. tb., Eduardo García de Enterría, La Constitución como norma y el Tribunal Constitucional, 2006. No modelo que vigorou na Europa até o segundo pós-guerra, a Constituição não era vista como uma norma invocável perante os tribunais. As proposições nela contidas funcionavam como mera convocação à atuação do Legislativo e do Executivo. Ao Judiciário não se reconhecia qualquer papel relevante na realização do conteúdo da Constituição. Somente quando tais conteúdos eram desenvolvidos por atos do parlamento ou por atos administrativos, é que se tornavam exigíveis judicialmente.

2 Sobre o tema, v. Luís Roberto Barroso, O direito constitucional e a efetividade de suas normas, 2006 (a primeira versão do texto é de 1987).

3 Aqui cabe relembrar que o constitucionalismo europeu seguiu trajetória diversa do americano até a segunda metade do século passado, quando iniciou um percurso de aproximação. Nos Estados Unidos, desde a primeira hora, a Constituição foi vista como um documento jurídico, dotado de supremacia e força normativa, passível de aplicação direta pelos tribunais. V. Marbury vs. Madison, 5 U.S. (1 Cranch) 137, 1803.

4 Sobre o sentido e alcance dessa expressão, v. Pablo Lucas Verdú, O sentimento constitucional, 2004 (trad. Agassiz Almeida Filho).

5 Autores pioneiros nesse debate foram: John Rawls, A theory of justice, 1980; Ronald Dworkin, Taking rights seriously, 1977; Robert Alexy, Teoria de los derechos fundamentales, 1997 (1ª. ed. Alemã 1986). Sobre o tema, vejam-se também: Gustavo Zagrebelsky, El derecho dúctil: lei, derechos, justicia, 2005 (1ª. ed. 1992); Ernesto Garzón Valdés e Francisco J. Laporta, El derecho y la justicia, 2000 (1ª. ed. 1996). No Brasil, vejam-se: Paulo Bonavides, Curso de direito constitucional, 2004; Luís Roberto Barroso, Fundamentos teóricos e filosóficos do novo direito constitucional brasileiro: Pós-modernidade, teoria crítica e pós-positivismo. In: Temas de direito constitucional, t. II, 2003; Antonio Carlos Diniz e Antônio Carlos Cavalcanti Maia, Pós-positivismo. In: Vicente Barreto (org.), Dicionário de filosofia do direito, 2006. A propósito do sentido do termo, v. a pertinente observação de Albert Calsamiglia, Postpositivismo, Doxa 21:209, 1998, p. 209: “En un cierto sentido la teoría jurídica actual se pude denominar postpositivista precisamente porque muchas de las enseñanzas del positivismo han sido aceptadas y hoy todos en un cierto sentido somos positivistas. (...) Denominaré postpositivistas a las teorías contemporáneas que ponen el acento en los problemas de la indeterminación del derecho y las relaciones entre el derecho, la moral y la política”.

6 V. Ricardo Lobo Torres, Tratado de direito constitucional, financeiro e tributário: Valores e princípios constitucionais tributários, 2005, p. 41: “De uns trinta anos para cá assiste-se ao retorno aos valores como caminho para a superação dos positivismos. A partir do que se convencionou chamar de ‘virada kantiana’ (kantische Wende), isto é, a volta à influência da filosofia de Kant, deu-se a reaproximação entre ética e direito, com a fundamentação moral dos direitos humanos e com a busca da justiça fundada no imperativo categórico. O livro A Theory of Justice de John Rawls, publicado em 1971, constitui a certidão do renascimento dessas idéias”.

7 Sobre a interpretação constitucional contemporânea, v. Luís Roberto Barroso, Curso de direito constitucional contemporâneo, 2008, especialmente o capítulo “Novos paradigmas e categorias da interpretação constitucional”.

8 A primeira parte da frase (“Ontem os Códigos; hoje as Constituições”) foi pronunciada por Paulo Bonavides, ao receber a medalha Teixeira de Freitas, no Instituto dos Advogados Brasileiros, em 1998. O complemento foi feito por Eros Roberto Grau, ao receber a mesma medalha, em 2003, em discurso publicado em avulso pelo IAB: “Ontem, os códigos; hoje, as Constituições. A revanche da Grécia sobre Roma, tal como se deu, em outro plano, na evolução do direito de propriedade, antes justificado pela origem, agora legitimado pelos fins: a propriedade que não cumpre sua função social não merece proteção jurídica qualquer”.

9 V. Pietro Perlingieri, Perfis do direito civil, 1997, p. 6: “O Código Civil certamente perdeu a centralidade de outrora. O papel unificador do sistema, tanto nos seus aspectos mais tradicionalmente civilísticos quanto naqueles de relevância publicista, é desempenhado de maneira cada vez mais incisiva pelo Texto Constitucional”. Vejam-se, também, Maria Celina B. M. Tepedino, A caminho de um direito civil constitucional, RDC 65:21, 1993 e Gustavo Tepedino, O Código Civil, os chamados microssistemas e a Constituição: premissas para uma reforma legislativa. In: Gustavo Tepedino (org.), Problemas de direito civil-constitucional, 2001.

10 Na Alemanha, a idéia da Constituição como ordem objetiva de valores, que condiciona a leitura e interpretação de todos os ramos do Direito, foi fixada no julgamento do célebre caso Lüth, julgado em 1958, pelo Tribunal Constitucional Federal alemão, que assentou: “Los derechos fundamentales son ante todo derechos de defensa del ciudadano en contra del Estado; sin embargo, en las disposiciones de derechos fundamentales de la Ley Fundamental se incorpora también un orden de valores objetivo, que como decisión constitucional fundamental es válida para todas las esferas del derecho” (Jürgen Schwabe, Cincuenta años de jurisprudência del Tribunal Constitucional Federal alemán, 2003, Sentencia 7, 198). No caso concreto, o tribunal considerou que a conduta de um cidadão convocando ao boicote de determinado filme, dirigido por cineasta de passado ligado ao nazismo, não violava os bons costumes, por estar protegida pela liberdade de expressão.

11 O termo foi colhido em Pietro Perlingieri, Perfis do direito civil, 1997, p. 33. Aparentemente, o primeiro a utilizá-lo foi Carmine Donisi, Verso la ‘depatrimonializzazione’ del diritto privato. In: Rassegna di diritto civile 80, 1980 (conforme pesquisa noticiada em Daniel Sarmento, Direitos fundamentais e relações privadas, 2004, p. 115).

12 Luiz Edson Fachin e Carlos Eduardo Pianovski Ruzyk, Um projeto de Código Civil na contramão da Constituição, Revista Trimestral de Direito Civil 4:243, 2000: “(A) aferição da constitucionalidade de um diploma legal, diante da repersonalização imposta a partir de 1988, deve levar em consideração a prevalência da proteção da dignidade humana em relação às relações jurídicas patrimoniais”. A respeito da repersonalização do direito civil, v. também Adriano de Cupis, Diritti della personalità, 1982.

13 Sobre este tema, v. Daniel Sarmento, Direitos fundamentais e relações privadas, 2004; e Jane Reis Gonçalves Pereira, Direitos fundamentais e interpretação constitucional, 2005.

14 V. Patrícia Batista, Transformações do direito administrativo, 2003; Gustavo Binenbojm, Da supremacia do interesse público ao dever de proporcionalidade: Um novo paradigma para o direito administrativo, Revista de direito administrativo 239:1, 2005; Daniel Sarmento (org.), Interesses públicos versus interesses privados, 2005; Humberto Ávila, Repensando o “princípio da supremacia do interesse público sobre o particular”, Revista Trimestral de Direito Público 24:159, 1999. V. tb. Diogo Figueiredo Moreira Neto, Mutações do direito administrativo, 2000; Celso Antônio Bandeira de Mello, Curso de direito administrativo, 2003; Odete Medauar, Direito administrativo moderno, 1998.

15 A dignidade humana é melhor caracterizada como um princípio, e não como um direito fundamental, como se sustenta, por exemplo, na Alemanha. V. 27 BVerfGE 1 (caso Microcensus) e 30 BVerfGE 173 (1971) (caso Mephisto). Esta posição, aliás, tem sido pertinentemente questionada. V. Dieter Grimm, Die Würde des Menschen ist unantastbar. In: 24 Kleine Reihe, 2010, p. 5.

16 Uma lei é inconstitucional em abstrato quando é contrária à constituição em tese, isto é, em qualquer circunstância, e por isso é nula. Uma lei é inconstitucional em concreto quando em tese é compatível com a constituição, mas produz uma consequência inaceitável em uma circunstância particular.

17 Immanuel Kant, Groundwork of the Metaphysics of Morals, 1998, p. 42.

18 O caso envolveu a proibição, por violar a ordem pública e a dignidade humana, a prática do evento “arremesso de anão”, levado a efeito em algumas casas noturnas. Nela, um anão era arremessado pelos clientes do estabelecimento à maior distância possível, em disputa por um prêmio. V. Conseil d’État, Decisão 136727, 27 de Outubro de 1985. Ver também Long et al., Le Grands Arrêts de la Jurisprudence Administrative, 1996, p. 790 e s.

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* Luís Roberto Barroso é professor Titular de Direito Constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Mestre em Direito – Yale Law School. Doutor e Livre-docente – UERJ. Professor Visitante – Universidade de Brasília (UNB), Conferencista Visitante – Universidade de Poitiers, França, e Universidade de Wroclaw, Polônia. Visiting Scholar – Harvard Law School (2011). Advogado do escritório Luís Roberto Barroso & Associados

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