Seria bom recorrer aos historiadores para colocar a questão nos devidos termos.
O famoso medievalista francês Jacques Le Goff esclarece que o lugar-comum segundo o qual a Igreja se oporia à economia e ao progresso é uma das lendas negras espalhadas pelo Iluminismo (Jacques Le Goff, “Em busca da Idade Média”, Civilização Brasileira).
A verdade é totalmente outra. Acontece que a partir do ano 1.000 até o século XIII ocorreu na Europa um progresso material fantástico (Georges Duby). Cresce o comércio, circulam as riquezas, as operações de câmbio se multiplicam. A pressão exercida pelo crescimento da riqueza bate às portas da Igreja, que dependia de recursos para expandir sua missão. Segundo Le Goff tem início então, a partir do século XI e XII, no seio do próprio clero, um movimento a favor da legitimação do dinheiro. Começa-se a distinguir entre a usura e os juros, condenando-se a primeira e absolvendo a segunda. Pois consta da Bíblia que o ganho é devido a quem dá seu trabalho (Romanos, 4,4). O juro é a recompensa devida ao mercador pelo seu trabalho.
Outro fator da legitimação do dinheiro foi a importação pelos mercadores de bens não produzidos em escala pela cristandade, como as especiarias, por exemplo. Pouco a pouco os mercadores vão se livrando daquela pecha que os perseguia desde o episódio da expulsão dos vendilhões do templo por Jesus.
Mais um fator da legitimação dos mercadores pela Igreja foi seu mecenato nas artes e na cultura, domínios estreitamente unidos ao exercício da fé medieval.
O processo da legitimação do dinheiro, iniciado no seio do clero, em plena Idade Média, foi reforçado pela ética protestante do capitalismo, resultando na inscrição nas notas de dólar, pelos puritanos da América, da famosa inscrição “In God We Trust”, nada mais que a coroação daquele movimento desencadeado no coração da Meia Idade católica (com todo seu malsinado “obscurantismo”).
__________
* Gilberto de Mello Kujawski é procurador de Justiça aposentado, escritor e jornalista
__________