Ludwig van Beethoven destaca-se pela mente brilhante que exigiu o respeito à música e ao compositor por corresponderem à arte na concepção mais pura do termo. Alguns outros compositores, como George Frideric Handel, na Alemanha e Inglaterra, buscaram o mesmo feito, não da forma tão sofrida que a vivenciada por Beethoven ou, antes, Mozart, mas a música sempre, para eles, era tida como algo superior e prioritário. Beethoven defendia que: “A música é a revelação superior a toda sabedoria e filosofia.” e “Ninguém devia barganhar com um artista.”
Diferentemente de seus pares, comportava-se como parte do processo criativo, fenômeno que não obedecia às regras composicionais, critério temporal ou posição política. Predominava em sua alma não ser ele funcionário da música, a compor dentro de um rígido horário de trabalho, comprometendo-se com inúmeras encomendas e a cumprir prazos estabelecidos por seus patrocinadores (reis, clero e nobres). É claro que para sobreviver Beethoven equiparou-se, por vezes, à prática de mercado, todavia, este comportamento não predominava em seu desenvolvimento criativo. Esta realidade muito bem ilustrada é por Edward Carpenter, em Angel's Wings:
“Embora sua vida exterior, pela surdez, doença, preocupações financeiras e pobreza, fosse despedaçada em mil miseráveis fragmentos, em seu grande coração ele abraçou toda a humanidade; penetrou intelectualmente em todas as falsidades até atingir a verdade; e, em seu trabalho artístico, deu um esboço aos religiosos, aos humanos, aos democráticos, aos amores, ao companheirismo, às individualidades ousadas e a todos os altos e baixos do sentimento, o esboço de uma nova era da sociedade. Ele foi de fato e deu expressão a um novo tipo de homem. O que esta luta deve ter sido entre suas condições internas e externas – de seu eu real com os solitários e pobres arredores nos quais estava encarnado – nós só sabemos através de sua música. Quando nós a ouvimos, compreendemos a tradição antiga de que, de vez em quando, uma criatura divina dos céus distantes toma uma forma mortal e sofre para que isto possa abraçar e redimir a humanidade.”
A genialidade de Beethoven não se explica por estudos neurológicos, tão somente por suas obras, que foram muitas, grandiosas, as quais mesmo na sua complexidade exprimem uma simplicidade singela, em especial o conjunto das nove sinfonias. Neste contexto, reconhece-se que a Nona Sinfonia, executada pela primeira vez em 07 de Maio de 1824, ultrapassou fronteiras, permanece viva intensamente no dia a dia de todos e de modo indiscriminado.
Sabe-se, através de relatos históricos, que Beethoven manteve rascunhos da Nona por mais de três décadas, representando ela uma grande obra e sendo a mais importante das obras do compositor. Em razão desta grandiosidade conquistada, a Nona adquiriu independência, descolou-se da partitura, ultrapassou as portas das salas de concerto e dos teatros, alcançou e impregnou o imaginário do homem, ainda que perante o mais mediano dos mortais. Foi e é, ainda que através de partes ou movimentos, elemento inspirador dos mais importantes fatos históricos da humanidade e de diversas manifestações culturais: eleita, pelo Ministro da Propaganda de Hittler – Goebbels -, trilha sonora da propagada superioridade alemã; em contraposição, símbolo de liberdade e superação quando cantada por um coro de meninos judeus em Auschwitz; executada quando da queda do muro de Berlin, sob a regência de Leonard Bernstein; tema do jimgle cantado por um coral de galinhas para promoção do Guaraná Antárctica; abertura dos Jogos Olímpicos de 1936, em Berlim; trilha sonora do filme Laranja Mecânica, de 1971 e do filme Amada Imortal, de 1994; e, em 2001, decretada patrimônio da humanidade pela UNESCO, agência especializada da Organização das Nações Unidas para a educação, ciência e cultura.
A música não é algo pré-estabelecido e convencionado, mas sim resultado do trabalho criativo e da pujança sentimental. Por isto que a Nona alegra e exalta, como pretendia Beethoven, mas também deprime ou ceifa a intelectualidade. Eis que fruto do emotivo e não do racional. É a experiência do transcendental. Tanto é verdade que foi composta por um Beethoven surdo, que não teve condições de ouvir os aplausos quando de sua execução ao público.
A Nona compõem-se de quatro movimentos, dentre os quais se destaca o último com o final inspirado no poema “Ode à Alegria”, de Friedrich von Schiller, de 1785. Beethoven leu este poema muito provável em 1782, quando ainda em Bonn e levou perto de 32 anos para musica-lo. O referido poema representava, por conta do contexto histórico, o cosmopolitismo, iluminismo, a superação das rédeas religiosas e políticas, a tolerância e a conscientização do homem sobre a pertença a um único mundo, representado pela fraternidade. Beethoven absorveu estes sentidos acrescidos das Guerras Napoleônicas e dos valores da Revolução Francesa.
Beethoven fez uso do poema “Ode à Alegria” praticamente na íntegra. Transplantando a Nona não uma leitura do passado e dos problemas temporais da Alemanha ou da França, mas sim como provocação ao homem para que promovesse um futuro melhor, mais romântico, fraterno e heroico. Como se a alegria sempre estivesse à disposição do homem logo ao alcance de suas mãos, restando o seu reconhecimento. O desapego de Beethoven, ao menos neste momento, é perceptível quando deixa claro, através da “Ode à Alegria”, que a felicidade humana deve transpor o clero, a política, eis que existe algo universal e voltado a todos sem discriminação.
A construção da Nona dá-se com o primeiro movimento, em um silêncio rememorativo e sem repouso as controvérsias e combates sofridos pelo homem. Quando ele enxerga estes fatos o movimento torna-se tortuoso:
“É difícil se encontrar algo mais requintado em toda a música do que o movimento de abertura, tão serenamente simples e ao mesmo tempo tão majestoso em suas ideias – Tecnicamente, sua complexa manipulação do material é maravilhosa e suas qualidades expressivas..são excelentes.”
(E. Markham Lee, The Story of Symphony)
Todavia, Beethoven não quer que as lembranças tortuosas prevaleçam, então, no segundo movimento, através da comunicação entre as partes, com uma expressiva organicidade, trava uma guerra contra o ódio e o remorso, na realidade contra todos que não amam ou não sabem o que é amar.
O terceiro movimento demonstra a natureza impaciente de Beethoven, já que equivale à impaciência pela não chegada do repouso e da resolução na vida dos que amam. Consequentemente, o último movimento, com a “Ode à Alegria” e com o coral, corresponde à provocação, à mudança de hábito, à guerra contra a dor, a uma vida humana, plena e luminosa, ou seja, à promessa de resolução das tensões. Percebe-se da primeira estrofe do poema a exaltação à alegria:
“Oh amigos, mudemos de tom!
Entoemos algo mais agradável
E cheio de alegria”
Muito se escreve sobre a Nona Sinfonia, porém, a gama de sentimentos que ela floresce é a impressão que deve sobressair e sempre cheia de alegria.
A múltipla produção autoral
Constata-se que a Nona, em razão do seu histórico autoral, conseguiu ultrapassar fronteiras e barreiras linguísticas e de compreensão. Sobre o viés do poema, este alçou notoriedade que jamais obteria em situação de normalidade literária, precisou da Nona para seu registro perante o universo.
Ocorre que a Nona produziu outro efeito - a produção autoral fundamentada em sua melodia e letra. Este novo quadro muito bem representado é pelo Conselho da Europa que encomendou ao regente Herbert von Karajan a composição de três arranjos (para piano, instrumento de sopro e orquestra), todos com base na Nona Sinfonia, na realidade na parte final do último movimento, quando da “Ode à Alegria”. Em 1985 foi adotado como Hino da União Europeia, sendo executado nas cerimônias oficiais como modelo de integração entre os povos.
Na área da música, é corriqueiro a composição ter por fundamento uma obra literária ou um poema, foi assim também, apenas como exemplo, com o poema a “Era da Ansiedade”, de W. H. Auden, de 1947, o qual se encontra imortalizado na Sinfonia n.º 2, de Leonard Bernstein.
Interessa observar que à época de Beethoven não existia a proteção que se tem hoje sobre a criação autoral. Beethoven ao finalizar uma composição adotava o maior zelo pelo acordo com a respectiva casa editorial. Ele, em particular, relacionou-se com várias. Este cuidado se justificava financeiramente porque após a publicação da partitura ele, como compositor, deixava de ter exclusividade autoral. Qualquer outra casa editorial poderia publicar a mesma partitura com base na primeira publicação. Beethoven opunha-se apenas perante publicações errôneas no comparativo com sua composição original e o fazia por meio de cartas pouco elegantes, nas quais exigia reimpressão para retificar os equívocos anteriores.
Como homem de negócios e em busca de maior aporte financeiro muitas vezes vendia a partitura de modo concomitante para várias casas editoriais, buscando que até o final de todas as negociações as primeiras editoras contactadas não publicassem para que as demais não tomassem conhecimento da venda múltipla.
Neste contexto, o uso de partes de uma composição para a criação de outra também era um costume na ausência do conceito que hoje se conhece de plágio. Beethoven fez segundo uso e muitos outros de suas composições e de terceiros, assim, como dentre outros, o fez Wolfgang Amadeus Mozart.
De modo diverso se apresenta os usos enumerados da Nona Sinfonia neste artigo, eis que contemporâneos à nova sistemática dos Direitos Autorais. Isto porque a Nona, mesmo diante da ausência da proteção do Direito Autoral à época, para os termos atuais, encontra-se inserida no conceito de domínio público, ou seja, não há mais autoria exclusiva sobre ela, em virtude da legislação aplicável quando de sua composição (nem tanto pelo falecimento de Beethoven ou a inexistência de herdeiros ou a expiração do prazo de proteção, como o é hoje). Qualquer um pode fazer uso da Nona, desde, é claro, que não de modo a denegrir este patrimônio cultural da humanidade e desde que se faça referência à fonte, evitando-se, assim, a vulgarização da obra, a dúvida autoral e o enriquecimento ilícito. Comparativamente, têm-se algumas editoras no Brasil que incluem nas capas das obras que publicam imagens de pinturas, as quais, da mesma forma, já se encontram em domínio público.
De modo diverso acontece com as obras derivadas, diante dos tratados e leis vigentes, que são bens autorais exclusivos de seus criadores. E sobre estas se faz necessário que os interessados peçam autorização para usos diversos ou mesmo tenham cessão de direitos autorais sobre as mesmas.
Os três arranjos de Karajan, de per si, para serem usados na íntegra ou parcialmente, precisam ter autorização, eis que mesmo com o falecimento do regente, mantêm-se a proteção dentro de um determinado lapso temporal, o qual, a depender do país, varia entre 50 e 70 anos. Mas, como Hino da União Europeia corresponde a símbolo estatal. Não de um país, mas de todos os países que compõem o processo de integração da União Europeia. Encontrando-se protegido nas diversas constituições dos países integrantes da UE.
Estas alterações, da esfera protetora dos direitos autorais, serviram para incentivar os compositores a produzirem intelectualmente, proteger estes do uso abusivo e ilegal, privilegiar a remuneração sobre as obras criadas e promover à acessibilidade da sociedade sobre os bens culturais. Todavia, Beethoven, em que pese a miséria, as doenças e proezas necessárias, compôs, dentre outras, a Nona Sinfonia, a qual, sem uma explicação plausível, alcançou a eternidade, seja como Nona Sinfonia, seja como fundamento para a múltipla produção autoral decorrente ou superveniente.
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* Patrícia Luciane de Carvalho. Advogada e Professora de Direito da Propriedade Intelectual/SP
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