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O direito do preso de se prover alimentos

Duas das principais preocupações dos redatores do projeto da lei de execuções penais, promulgada em 1984, foram a legalidade e a repressão ao abuso na privação da liberdade de locomoção. Fez-se constar, expressamente, no artigo 3° da lei, o basilar princípio da estrita legalidade na execução penal, garantindo-se ao preso “todos os direitos não atingidos pela sentença ou pela Lei”.

19/9/2005


O direito do preso de se prover alimentos


Filipe Schmidt Sarmento Fialdini*

“O último dos criminosos tem o mais absoluto direito a que com ele se observe a lei; e tanto mais rigoroso há de ser, por parte dos seus executores, o empenho nessa observância, quanto mais excitada se achar a sociedade contra o delinqüente entregue à proteção dos agentes da ordem.” Rui Barbosa1


Duas das principais preocupações dos redatores do projeto da lei de execuções penais, promulgada em 1984, foram a legalidade e a repressão ao abuso na privação da liberdade de locomoção2. Fez-se constar, expressamente, no artigo 3° da lei, o basilar princípio da estrita legalidade na execução penal, garantindo-se ao preso “todos os direitos não atingidos pela sentença ou pela Lei”. Tal ideal foi também reforçado no artigo 185 da mesma, dispondo-se que “Haverá excesso ou desvio de execução sempre que algum ato for praticado além dos limites fixados na sentença, em normas legais ou regulamentares”.


Com a promulgação da Constituição cidadã, em 1988, o princípio da estrita legalidade na execução penal adquiriu status de cláusula pétrea, reconhecendo-se ao preso, inclusive, o direito à indenização pelo erro judiciário ou pela prisão indevida, nos termos do inciso LXXV, do artigo 5°, da mesma.


Assim, com razão, concluiu Mirabete que “se de um lado se podem impor ao condenado as sanções penais estabelecidas na legislação, observadas as limitações constitucionais, de outro lado, não se admite seja ele submetido a restrições não contidas na lei”3. E, vale anotar, se é verdade que tais mandamentos devem ser observados com relação aos condenados, com muito mais razão ainda, se impõem para com os presos provisórios.


A realidade das coisas, contudo, vem se mostrando bem diversa. Impera uma completa inversão de valores na sociedade. Pretende-se que a lei seja cumprida, pela punição dos criminosos, porém, se aceita e se aplaude a ilegalidade para com os presos em geral.


Além das mazelas propiciadas pela total falência do sistema carcerário nacional, sujeitando os encarcerados, em sua maioria, à superlotação, à violência sexual e a condições desumanas, apoiadas muitas vezes pela mídia e pela opinião pública, as autoridades violam, às claras, os mais básicos direitos dos presos, por meio de coações físicas e psicológicas, impondo-lhes o uso indiscriminado de algemas, raspando seus cabelos, impedindo seu acesso à cultura e à literatura, dentre muitos outros constrangimentos abusivos. E ai daquele que, por acaso, conseguir escapar a algum aviltamento! Exige-se que todos, sem exceção, sejam sujeitados à desgraça e à humilhação. A degradação é tamanha que – arriscamo-nos a dizer – a resistência e a fuga ao encarceramento, constituem, em muitos casos, legítima defesa.


Ilustrando tal situação, após a imprensa relatar que ex-prefeito de São Paulo e seu filho, presos recentemente, estavam provendo a si próprios de alimentos, a população se insurgiu indignada e, imediatamente, as autoridades passaram a impedi-los de tanto, como se os mesmos estivessem usufruindo indevido privilégio, em razão de sua situação financeira.


É bem verdade que, infelizmente, nem todos têm acesso a uma alimentação regular e saudável, especialmente a população carcerária, em geral carente de recursos, não tendo a quem recorrer, senão à assistência estatal para alimentar-se. Não por outra razão, a lei de execuções penais garante ao preso o direito a uma alimentação suficiente, prestada pelo Estado (arts. 12 e 41, I).


Não consta de lei alguma, todavia, a obrigação do preso em consumir, exclusivamente, a alimentação fornecida pela administração pública; muito pelo contrário, como dito, o auxílio estatal à subsistência do preso é, antes de mais nada, um direito e, jamais, um dever, muito menos, uma punição.


Aliás, o preso é obrigado a indenizar o Estado, na medida de suas possibilidade, das despesas realizadas com sua alimentação (art. 39, VIII, da LEP). Dessa forma, aquele que decide prover a si próprio, contribui, inclusive, com a desoneração do poder público.


É importante lembrar, também, que, aquilo que se come, reflete-se, inevitavelmente, na saúde física e mental do ser humano. A restrição à liberdade do preso em adquirir aquilo que deseje ingerir, portanto, constitui inegável afronta a sua integridade física e moral, bem como à dignidade humana, em clara violação a importantes preceitos constitucionais.


Percebe-se, por conseguinte, que o preso tem sim o direito de adquirir os alimentos que desejar e a restrição a esta possibilidade constitui constrangimento não autorizado em lei e, como tal, crime de abuso de autoridade, nos termos da alínea b, do artigo 4º, da Lei 4.898/65 (lei de abuso de autoridade), o qual pode importar em detenção de 10 dias a 6 meses, perda do cargo, inabilitação para qualquer função pública pelo prazo de até três anos e no dever de indenizar a vítima.


É preciso, urgentemente, se repensar a questão carcerária do país. Se o objetivo das autoridades é o combate à ilegalidade e à corrupção, é imperioso que, antes de qualquer coisa, sejam as primeiras a dar o exemplo, cumprindo a lei, caso contrário, jamais se poderão legitimar a persecução e a execução penal que venham a desenvolver.


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1
Ruy Barbosa, Criminologia e Direito Criminal: Seleções e Dicionário de Pensamentos, Campinas : Romana, 2003, p. 317.

2Salienta a exposição de motivos da lei de execução penal: “19. O princípio da legalidade domina o corpo e o espírito do Projeto, de forma a impedir que o excesso ou o desvio da execução comprometam a dignidade e a humanidade do Direito Penal. 20. É comum, no cumprimento das penas privativas de liberdade, a privação ou a limitação de direitos inerentes ao patrimônio jurídico do homem e não alcançados pela sentença condenatória. Essa hipertrofia da punição não só viola medida de proporcionalidade, como se transforma em poderoso fator de reincidência, pela formação de focos criminógenos que propicia”.

3Julio Fabbrini Mirabete, Execução Penal, 11ª ed., São Paulo : Atlas, 2004, p. 30.


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* Advogado do escritório Campos e Antonioli Advogados Associados e Pós-graduando em Crimes Econômicos e Processo Penal pela FGV/SP.

 

 

 






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