Gustavo Binenbojm*
Qualquer nova nomeação para a Corte é sempre um fato político, cercado de ampla cobertura da imprensa e acalorados debates nos mais diversos setores da opinião pública. O que há de especial no momento atual, entretanto, é a abertura quase que simultânea de duas vagas no Tribunal: uma, decorrente da morte do ex-presidente, Juiz William Renquist; e a outra, surgida com a aposentadoria da Juíza Sandra O`Connor, que após vinte e quatro anos no Tribunal, celebrizou-se por seus votos decisivos em julgamentos importantes. Após o falecimento de Renquist, O'Connor aceitou adiar sua aposentadoria até que o novo Chief Justice (presidente) seja empossado, o que, de toda forma, não impedirá a nomeação de um outro Juiz para a Corte ainda por George W. Bush.
Os perfis de Renquist e O'Connor eram distintos. Enquanto Renquist exerceu sua profissão de fé republicana de maneira rígida e constante, O'Connor combinava posturas conservadoras e progressistas, sem sempre de forma previsível. Nada obstante isso, seus votos de minerva foram fundamentais para a preservação de direitos de minorias, como as mulheres (aborto), os homossexuais (proibição da criminalização de práticas homossexuais) e os afrodescendentes (ações afirmativas). Em um tribunal normalmente dividido ao meio em casos difíceis, a nomeação de Roberts para a presidência – e de outro Juiz conservador para a vaga de O'Connor – é o pulo do gato de Bush para formar uma estável maioria e dar à Corte um perfil marcadamente republicano.
Formado pela prestigiosa Faculdade de Direito da Universidade de Harvard, John Roberts foi assistente de William Renquist, trabalhou para os governos de Reagan e Bush-pai ocupando cargos políticos e trilhou uma vitoriosa carreira como advogado no escritório Hogan & Hartson. Há apenas dois anos, Roberts foi indicado pelo Presidente Bush para o cargo de Juiz da Corte Federal de Apelações de Washington DC, considerado o mais influente tribunal do Judiciário norte-americano, logo abaixo da Suprema Corte. Na verdade, Roberts fora indicado para o mesmo cargo por Bush-pai, ainda no início da década de noventa, mas o Senado à época deixou de apreciar a sua indicação no prazo devido, por considerá-lo um extremado conservador.
Como membro da Associação Nacional dos Advogados Republicanos, Roberts exibe um perfil ideológico afinado com o do Presidente Bush. Embora nem sempre a história confirme as previsões dos especialistas, acredita-se que Roberts se juntará a Juízes conservadores da Suprema Corte, como Antonin Scalia e Clarence Thomas, fortalecendo o movimento de restrição aos avanços da chamada Revolução dos Direitos Civis. No caso do aborto, por exemplo, embora seja pouco provável que o célebre caso Roe v. Wade venha a ser reformado, a tendência é que, com o apoio de Roberts, a Corte passe a admitir a constitucionalidade de leis cada vez mais restritivas ao direito da mulher à interrupção da gravidez indesejada. Em relação a matérias como direitos trabalhistas e proteção ao meio ambiente, Roberts já deu sinais de que tenderá a interpretá-los sempre de forma a não onerar excessivamente as grandes corporações.
O que mais preocupa, todavia, é a postura que a Corte passará a adotar em relação aos direitos individuais vis-à-vis dos poderes já extremamente amplos do aparelho do Estado. A chamada “Lei Patriótica” já permite que cidadãos sejam mantidos em prisões sem acusações formais, sem direito a processo ou a um advogado. Buscas e apreensões já são feitas sem ordem judicial e sem observância do devido processo legal. E o governo ainda quer mais. Ninguém imagine que Roberts vá atravessar o caminho do Presidente Bush. Por isso ele foi escolhido.
Especula-se que o próximo nome a ser indicado por Bush seja o de um hispânico conservador, como o seu atual attorney general, Alberto Gonzalez. A estratégia republicana de conquistar os negros (tradicionalmente identificados com a plataforma democrata) poderá ser repetida com a população hispânica, mediante escolha de representantes do grupo étnico, ligados ao Partido Republicano, para cargos públicos de destaque na política americana. Essa foi a estratégia que orientou a nomeação de Clarence Thomas para a Suprema Corte (um afrodescendente ultraconservador) e que pode vir a se repetir com um hispânico.
Ao longo de seus mais de duzentos anos de existência, a Suprema Corte dos Estados Unidos se tornou uma espécie de caixa de ressonância da consciência jurídica universal. A autoridade moral e intelectual de suas decisões exerceu um relevantíssimo papel civilizatório pelo Mundo afora, moldando a cultura política e jurídica dos povos e servindo à promoção da dignidade do homem. Eu mesmo, como jurista e professor, tive minha formação profundamente marcada pela mítica influência da mais célebre Corte de Justiça da história da humanidade. Que a onda obscurantista, agora consubstanciada na indicação de John Roberts, não seja longa e forte o bastante para transformar o trabalho da Suprema Corte norte-americana em apenas história.
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*Advogado do escritório Binenbojm, Gama & Carvalho Britto - Advocacia
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