Migalhas de Peso

Sobre a manifestação da parte acusadora após a apresentação de resposta escrita pela defesa no processo penal

O ato afronta a legislação processual penal.

10/7/2012

É comum se ouvir dizer, numa referência a Goldschmidit, que o processo penal é o termômetro político do Estado. Um processo inquisitorial, autoritário, não pode ser compatível senão com um Estado autoritário. Por outro lado, um Estado Democrático exige um processo penal acusatório, que assegure direitos e garantias aos indivíduos a ele submetido.

Assim é que a Constituição brasileira, ao propor a estruturação de um Estado Democrático de Direito, trouxe em seu bojo princípios e garantias que devem lastrear o processo penal pátrio. Dentre estes, destacamos dois que constituem a base sobre a qual deve se assentar o processo penal: legalidade e ampla defesa.

O princípio da legalidade é o esteio do processo penal. Não é sem fundamento que se diz que, na seara criminal, forma é garantia. As garantias constitucionais consubstanciam-se nas leis processuais, cujo respeito é imprescindível para cumprir as finalidades do processo criminal. Não se trata de formalismo inútil. Trata-se de respeito aos princípios constitucionais positivados na norma processual.

Assim, não se pode desrespeitar uma forma imposta pela lei (sob a pena, inclusive, de incorrer em uma nulidade). Não se pode, por outro lado, criar novas formas não previstas legalmente, pois aí, além do risco de se cair em um formalismo exacerbado, tem-se, da mesma forma, uma violação a garantias do indivíduo.

Por sua vez, a ampla defesa, cujo fundamento encontra-se no artigo 5º, LV, da Constituição da República, é a garantia máxima do acusado, sendo diretamente ligada ao princípio da presunção de inocência e ao contraditório. Se este consiste na oportunidade de participação das partes no processo, em iguais condições, é a ampla defesa que viabiliza a participação do acusado de forma efetiva. É válido lembrar que nos pratos da balança, em que se põe de um lado o Estado-acusador e, do outro, o acusado, este é o lado mais frágil. A ampla defesa cumpre, então, o papel de equilibrar esta relação, para que se possa construir um processo penal democrático.

Este princípio tem desdobramentos importantes no curso do processo. Enquanto o órgão acusador (Ministério Público, via de regra) atua de forma vinculada, a defesa é livre, desde que respeitadas, obviamente, as limitações de direito. Por outro lado, a defesa técnica é obrigatória, mesmo que a dispense o acusado, sendo que sua ausência constitui nulidade absoluta.

Uma importante repercussão do princípio da ampla defesa consiste no direito à última palavra. Por tais razões, as testemunhas da acusação são ouvidas antes das arroladas pela defesa. Da mesma forma, com as inovações trazidas pela reforma de 2008, o interrogatório, meio de defesa, passou a ser o último ato da instrução processual. As alegações finais da acusação devem sempre preceder as da defesa. Em síntese, em todo ato processual em que houver participação das partes, a defesa tem direito a se manifestar depois da acusação.

Todavia, em manifesto desrespeito ao princípio da legalidade e, também, ao da ampla defesa, a jurisprudência tem facultado ao órgão acusador uma participação extra, não prevista na lei, que consiste na possibilidade de manifestar-se após a apresentação da resposta à acusação, e antes da apreciação desta pelo magistrado.

A lei processual é clara. O artigo 396 prevê que, recebida a denúncia ou a queixa, o juiz mandará citar o acusado para responder por escrito à acusação. Referida resposta é disciplinada pelo artigo 396-A. Em seguida, o artigo 397 dispõe que após o cumprimento do artigo 396-A o juiz se manifestará sobre eventual absolvição sumária. A sucessão de atos é bem delineada: é apresentada a resposta à acusação e, logo após, o juiz decide quanto à absolvição sumária. Não há qualquer previsão legal de manifestação da parte acusadora entre estes dois atos processuais.

E nem poderia. Afinal, como já apresentado anteriormente, é corolário do princípio da ampla defesa que a esta seja dada a última palavra. Assim, se o órgão acusador se manifesta após a resposta escrita, há um patente desequilíbrio: enquanto a acusação tem duas oportunidades de falar no processo (denúncia e manifestação posterior), a defesa tem apenas uma (resposta escrita). A violação ao princípio da ampla defesa é manifesta.

Tampouco a abertura de nova vista para a defesa seria a solução para tal impasse. Primeiro porque esta sucessão de atos (a cada manifestação da acusação, uma manifestação da defesa, depois outra da acusação) levaria ao infinito, sem qualquer lógica processual. Segundo porque, ainda assim, estar-se-ia violando outro princípio estrutural de um Estado de Direito: o princípio da legalidade. Onde o legislador se omitiu, não cabe ao juiz legislar. É o mandamento que pode ser extraído do artigo 2º da Constituição da República, que estatui que os poderes executivo, legislativo e judiciário são independentes e harmônicos entre si.

Argumenta-se que a manifestação do órgão acusador posterior à resposta escrita decorreria de uma analogia com o procedimento relativo aos processos de competência do tribunal do júri que, no artigo 409, prevê que apresentada a defesa, o juiz ouvirá o Ministério Público ou o querelante sobre preliminares e documentos. Não há, contudo, qualquer razão para se proceder a tal analogia. Em primeiro lugar, porque mesmo em se tratando de leis processuais penais, a analogia em desfavor do acusado deve ser refutada. Outrossim, referida analogia afronta a ampla defesa e não pode, por conseguinte, ser aceita.

É evidente, portanto, que a manifestação do órgão acusador posteriormente à apresentação da resposta escrita, que tem se tornado costumeira na prática judiciária, afronta a legislação processual penal e, também, princípios de ordem constitucional, a exemplo da legalidade e da ampla defesa.

Uma leitura constitucional do processo penal impede que o mesmo seja visto como mero instrumento de realização do direito material. Processo é garantia, e deve cumprir o papel de efetivar os direitos previstos na Constituição, servindo, assim, à consolidação de um projeto democrático. As regras processuais, sobretudo quando consagram normas constitucionais, devem, portanto, ser respeitadas. Atitudes contrárias geram um perigoso precedente, de atentado contra os alicerces de um Estado de Direito.

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*Jéssica Freitas é advogada do escritório Castellar Guimarães Advogados Associados.

 

 

 

 

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