O Poder só pode ser exercido dentro dos limites estabelecidos pela Constituição e por leis infraconstitucionais que a ela se ajustem...
Quando a um ente administrativo é atribuída determinada função, se este vai além dos limites legalmente estabelecidos, temos o abuso de poder; se um ente administrativo, tendo recebido uma determinada atribuição, procede como se a estivesse exercendo, mas para atingir fim diverso, excluído da sua esfera de poder, temos o desvio de poder. Em ambas as hipóteses há ilegalidade que vicia o ato administrativo praticado pela autoridade administrativa, situação que também pode ocorrer tanto no uso do poder de legislar quanto no poder de julgar (jurisdição) e ninguém pode esquecer que um dos pressupostos de validade de qualquer ato administrativo é a competência do órgão que o realiza, cuja falta o torna nulo na raiz - "nulitas ad radice".
É exatamente o que ocorre na hipótese sob exame: a Constituição Federal faz do Ministério Público partícipe da persecução penal quando lhe entrega, tal como o fazem as leis processuais, o exercício da ação pública seja ela civil seja penal, mas com uma diferença fundamental – cuidando-se da preparação de ação civil pública (que não envolve possibilidade de restrição ao Direito Fundamental de Liberdade de Locomoção) a Constituição não veda que o Ministério Público realize atos de investigação, pelo contrário, o permite expressamente. Mas, quando se trata da colheita de elementos de prova mediante investigação criminal (Polícia Judiciária), a Constituição reserva tal atividade ao órgão constitucionalmente próprio – a Polícia Civil, seja a estadual, seja a federal.
Destarte, se está a investigar para preparar ação civil pública e o Ministério Público pretende ou realiza atos de investigação penal temos nítido o desvio de poder que macula de ilegitimidade sua atividade, defeito que pode ser atacado jurisdicionalmente exacerbando e extrapolando limites que a Constituição lhe impõe. Quando assim procede atua com evidente desvio de poder, com inegável ilegitimidade.
A participação do Ministério Público não é vedada na chamada fase policial - ela cabe como o agente que requisita a abertura de Inquérito Policial, pode requerer às diligências que entender necessárias à posterior formação da "opinio delicti"; o que não pode, pois a Constituição Federal não lhe permite, é substituir a Polícia Civil no exercício da função de Polícia Judiciária.
A insistência do Ministério Público em colher prova em processo criminal tem por base o artigo 8º da lei complementar (federal) 75 de 1993 (lei orgânica do Ministério Público da União) que assim dispõe:
"art.8o.- Para o exercício de suas atribuições o Ministério Público da União poderá nos procedimentos de sua competência: VII - expedir notificações e intimações necessárias aos procedimentos e inquéritos que instaurar e o disposto nos artigos 26 I e V e 80 da lei 8.625/93 que assim rezam:
"art.26 – No exercício de suas funções, o Ministério Público poderá:
I - Instaurar inquéritos civis e outras medidas e procedimentos administrativos pertinentes e, para instruí-los:
a) Expedir notificações, etc. e ainda o artigo 80 que, simplesmente, manda aplicar suas normas, subsidiariamente aos Ministérios Públicos estaduais.
Como se percebe, e não poderia deixar de assim o ser - toda a atuação do Ministério Público está limitada à esfera de sua competência e, no que se refere à Polícia Judiciária tal atividade está limitada ao controle externo como deixa bem claro o artigo 3o da invocada lei complementar 75:
"art.3o.- O Ministério Público da União exercerá o controle externo da atividade policial tendo em vista: e) a competência dos órgãos da Segurança Pública".
A Constituição Federal ao dispor sobre Segurança Pública conferiu as funções de Polícia Judiciária aos órgãos integrantes da Polícia Civil e não ao Ministério Público que as persegue há longo tempo.
Frederico Marques já nos seus "Elementos" (vol.1/130) ensinava que a persecução penal apresenta dois momentos: o da investigação e o da ação penal atribuídos o primeiro à Polícia Judiciária, e o segundo, ao Ministério Público. E não poderia ser diferente pois, do contrário, teríamos instituído os chamados Juizados de Instrução, alheios ao nosso sistema processual que é de cunho acusatório e não inquisitório.
É por essa razão que o artigo 4o do Código de Processo Penal expressamente reserva, tal como a Constituição vigente, às autoridades policiais a polícia judiciária que, segundo Tourinho Filho, tem "por finalidade investigar as infrações penais e apurar a respectiva autoria, a fim de que o titular da ação penal disponha de elementos para ingressar em Juízo" (Proc.Penal vol.I/145), vale dizer: o Ministério Público é o destinatário da investigação do crime e não seu sujeito ativo, pois, na realidade dos Estados de Direito Democrático o Ministério Público é o guardião da Ordem Jurídica função que seria diminuída se, tendo que formar a "opinio delicti" diante de fatos investigados sob sua fiscalização lhe fosse dado, também, investigá-los.
Não só a doutrina mas, notadamente a Jurisprudência tem afastado a possibilidade jurídica do Ministério Público exercer função investigatória diretamente, notadamente do Tribunal de Justiça deste Estado do Rio de Janeiro como também por decisões uniformes do Supremo Tribunal Federal.
No seio do Supremo Tribunal Federal o "leading case" é o Recurso Extraordinário 233.072-4 oriundo do Estado do Rio de Janeiro, sendo relator o eminente Ministro Nelson Jobim em que se decidiu que:
RECURSO EXTRAORDINÁRIO. MINISTÉRIO PÚBLICO. INQUÉRITO ADMINISTRATIVO. INQUÉRITO PENAL. O Ministério Público (1) não tem competência para promover inquérito administrativo em relação à conduta de servidores públicos; (2) nem competência para produzir inquérito penal sob o argumento de que tem possibilidade de expedir notificações nos procedimentos administrativos; (3) pode propor ação penal sem o inquérito policial, desde que disponha de elementos suficientes. Recurso não conhecido.
Em seu longo e bem fundamento voto o eminente Ministro Nelson Jobim acentuou que já participara do debate sobre esse tema ainda quando membro da Assembleia Nacional Constituinte sendo rejeitadas as emendas apresentadas no sentido de se criar o processo de instrução gerido pelo Ministério Público, e que tal pretensão foi também rejeitada quando da elaboração das invocadas lei complementar e a de 8625/93 que dispõe sobre a organização do Ministério Público dos Estados.
Votando em seguida, após pedir vista, o não menos eminente Ministro Maurício Correia lembrou trabalho do saudoso prof. Antonio Evaristo de Moraes para assinalar que:
"O relevante é que, em face do texto constitucional vigente e o da lei orgânica que o regulamentou, parece claro que se adotou um critério diferenciado em matéria de investigações preparatórias: no campo civil, cabe ao Ministério Público instaurar o inquérito civil ou outros procedimentos administrativos pertinentes, no curso dos quais permite que realize diretamente diligencias, inclusive a colheita de depoimentos (item X e alíneas do art.26 cit.). Já em sede penal, matéria prevista em item diverso (XV) do mesmo art.26 lhe é facultado meramente requisitar diligências ou a abertura de inquérito, podendo acompanhá-los", acentuando que:
"Entretanto, apesar dessa diferenciação fixada nos textos ora invocados, o Ministério Público, pelo menos no Estado do Rio de Janeiro, nas esferas federal e estadual, está querendo adquirir o vezo de promover, diretamente, investigações preliminares, expedindo notificações e tomando depoimentos, numa verdadeira usurpação das atribuições da autoridade policial, a quem a Constituição, como se viu, comete as funções de polícia judiciária (art.144, par.1o. IV e par.4o.) e o que é pior, violando o princípio constitucional do contraditório e da ampla defesa ao excluir desses "atos investigativos" a participação tanto do indiciado como de seu advogado.
Voltou o Excelso Pretório a examinar o tema em Acórdão prolatado em 6 de maio 2003, julgando o Recurso Ordinário em Habeas Corpus 01.326-7/DF, tendo como relator o mesmo Ministro Nelson Jobim, voltou a decidir no mesmo sentido.
Embora a Segunda Turma do Excelso Pretório venha recentemente tentando alterar a melhor interpretação às normas constitucionais que excluem das atribuições do Ministério Publico realizar atos de investigação criminal reservadas expressamente à Polícia Civil, a melhor interpretação é a que lhe damos por ser do Plenário da Corte Suprema, autêntica por sua natureza revelando os meandros da tramitação de sua aprovação quando da elaboração da Constituição Federal segundo o voto do eminente Ministro Nelson Jobim acima citado.
Da ilegitimidade do Ministério Público para inquirição
A Constituição Federal dotou o Ministério Público do poder de requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial (CF.art.129, VIII).
A norma constitucional não contemplou a possibilidade do "parquet" realizar e presidir inquérito policial.
Não cabe, portanto, aos seus membros inquirir diretamente pessoas suspeitas de autoria de crime. Mas requisitar diligência nesse sentido à autoridade policial.
Também no seio do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de janeiro outra não em sido a posição dos órgãos fracionários que decidiram sobre o tema.
A E. Seção Criminal sob a relatoria do eminente Desembargador Eduardo Mayr assim decidiu ao conceder o Habeas Corpus n.2.458/2000
-PRINCIPIO DO PROMOTOR NATURAL - INVESTIGAÇÃO CRIMINAL –ATRIBUIÇÕES DA POLICIA JUDICIÁRIA- CONSTRANGIMENTO ILEGAL - ORDEM CONCEDIDA. A proteção constitucional abrange não apenas a liberdade, mas também a validade do procedimento do qual possa resultar alguma restrição a este direito.
Ao Ministério Público cabe com exclusividade a iniciativa de propor a ação penal pública, mas sua atribuição "in poenalibus", não ultrapassa o poder de requisitar diligências investigatórias, e a instauração de inquérito policial e penal militar. Somente quando se cuidar de inquéritos civis é que, além da sua instauração, compete-lhe a efetivação de diligências investigatórias com as medidas e procedimentos pertinentes. (Revista de Direito TJ.RJ - v.52).
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José Lisboa da Gama Malcher é desembargador aposentado e sócio do escritório Gama Malcher Consultores Associados.
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