Migalhas de Peso

Fato consumado

A expressão fato consumado merece ser dissecada para justificar seu uso no judiciário, suas conseqüências fundamentalmente na prestação dos serviços educacionais. No mundo jurídico, entende-se a locução como sendo resultado da situação excepcional verificada com a incapacidade do judiciário na entrega, em tempo hábil, da prestação jurisdicional, provocando, neste caso, solução extralegal; é demonstração exposta da incompetência do sistema na dicção do direito da parte, situação criada com a concessão da liminar ou com a sentença dependente de recurso.

7/9/2005


Fato consumado


Antonio Pessoa Cardoso*


A expressão fato consumado merece ser dissecada para justificar seu uso no judiciário, suas conseqüências fundamentalmente na prestação dos serviços educacionais. No mundo jurídico, entende-se a locução como sendo resultado da situação excepcional verificada com a incapacidade do judiciário na entrega, em tempo hábil, da prestação jurisdicional, provocando, neste caso, solução extralegal; é demonstração exposta da incompetência do sistema na dicção do direito da parte, situação criada com a concessão da liminar ou com a sentença dependente de recurso.


Entre os vários segmentos da sociedade, os estudantes em maior número bateram às portas do judiciário para obter o direito de matrícula na faculdade: em função de pedido de transferência, face à mudança de domicilio no emprego público; reprovação em uma ou mais matérias e impedimento de matrícula na série seguinte; ingresso na universidade sem conclusão do segundo grau; exame supletivo sem a idade mínima, inadimplência, etc.


Nos anos setenta havia uma lei que garantia a matrícula de filhos de proprietários rurais, nas faculdades de Agronomia e Veterinária; o ingresso do vestibulando dependia somente da nota igual ou superior à mínima obtida pelo último aprovado, além da exibição do título de propriedade rural. A proteção da lei do sistema de cotas era garantida pelo judiciário, mas a “Lei do Boi”, como era chamada, foi revogada, porque as escolas já não suportavam o número excedente de alunos.


Os tribunais são desafiados na aplicação da teoria do fato consumado desde a década de sessenta, e o entendimento sempre foi no sentido de que se torna impossível desconstituir situações jurídicas consolidadas pelo tempo, porque não convém a modificação, “sob pena de afrontar valores”; outra compreensão cria graves inconvenientes de ordem prática, não só para o beneficiado, como para terceiros. Esclarece-se que o juiz não deve ficar adstrito aos dados técnicos dos autos, mas considerar os fatos sociais gerados pela decisão.


Ministro Francisco Rezek, como relator do RE n. 108.010-8/PB, em 1986:


“EMENTA. MANDADO DE SEGURANÇA. LIMINAR. SITUAÇÕES CONSOLIDADAS. Merecem respeito as situações estabilizadas pelo tempo, a partir do deferimento de liminar em mandado de segurança”.


Ministra Eliana Calmon, como relatora do RESP 390977/DF, em 2003:


EMENTA. ADMINISTRATIVO. ESTUDANTE. CURSO DE GRADUAÇÃO. INGRESSO SEM TER O ALUNO COMPLETADO O ENSINO MÉDIO.


1.Pela demora da Justiça, a aluna ingressou irregularmente, mas já concluiu o curso.

2. Curso universitário regular, faltando dois semestres para o término do curso – teoria do fato consumado.

3. Recurso especial provido”.

Outras decisões no STJ: servidor municipal transferido compulsoriamente de Patos/PB para Caicó/RN, de faculdade particular para pública com liminar concedida há mais de três anos (REsp n. 239.402); estudante de universidade particular no Recife assumiu cargo em comissão em Natal, liminar mantida por quatro anos (REsp. 140.726); exame supletivo sem a idade mínima, violação da lei de diretrizes e base, iminência de encerramento do curso superior (REsp. 163.185); aluno matriculado no curso de Engenharia, sem concluir o 2º grau, realizou o curso universitário ao abrigo de liminar, REsp. 3.534).


Na verdade, entende-se estranha tal prática de poder. É que a morosidade como explicação para a teoria do fato consumado não se justifica. No caso do mandado de segurança, por exemplo, a Lei 1.533/51, artigo 17, determina prioridade no seu processamento; a Lei 4.348/64, artigo 1º, fixa o prazo de 90 dias para eficácia da liminar, prorrogável por 30 dias, quando provado acúmulo de processos para julgamento. Então, a liminar perde efeito após 120 dias. Como então se servir da teoria do fato consumado para manutenção da liminar um, dois, cinco anos depois? Clara a incompetência e a falta de gerenciamento da questão pelos tribunais, em nítido descaso com os preceitos legais aplicáveis à espécie. O outro motivo, desaparecimento dos autos da ação ordinária ou paralisação do processo no cartório, é insubsistente, pois há quase meio século se serve deste expediente para impedir o uso da lei nos julgamentos. Não se sabe de um só caso de apuração e punição, por atraso na prestação jurisdicional, face ao fato consumado. Enquanto isto os trapaceiros obtém vantagens indevidas diante do desdém da justiça, que termina por facilitar para uns, infratores da lei, e dificultar para outros, cumpridores das normas, o acesso à universidade.


O rito é sempre o mesmo: o advogado aciona o judiciário, obtém liminar, é efetivada a matricula sem que o aluno preencha os requisitos exigidos ou tenha se submetido a vestibular naquela faculdade; após esta fase o processo não mais se movimenta ou quando muito é exarada a sentença e o recurso não sobe ao tribunal para reexame; a incúria do sistema no andamento do processo, ajuda o acadêmico. Há casos nos quais o advogado retira os autos de cartório e devolve anos depois, quando o estudante já colou grau. O objetivo é impedir julgamento final da causa.


A morosidade da justiça conta também com a conivência da entidade educacional, porque não acompanha nem reclama seguimento do processo, talvez em face do pagamento do curso, como se fosse o aluno matriculado regularmente. Se a faculdade quisesse zelar pelo cumprimento da lei e pelo direito de outros acadêmicos, que certamente não tiveram acesso aos estudos, porque negada matrícula diante da falta de vaga, se quisesse teria emprestado zelo para localização e reexame da sentença. Não se movimentou e a inoperância beneficia o infrator e a faculdade. Induvidoso é que o procedimento gera situação fática consolidada pelo lapso temporal. Nada foi feito por ninguém para impedir a consumação do ato ilícito e imoral.


O mestre Aliomar Baleeiro insurgiu-se contra esta teoria, sob o argumento de que

“ninguém pode tirar proveito do erro do juiz, sobretudo rapazes que não se empenharam em cumprir seus deveres e vão servir mal à sociedade durante a vida”. Naquela oportunidade, o ministro narrou frase dita por seu avô que lhe ficou na memória:


“como eles se formam eu sei, como eles aprenderam a ler é que fico admirado”.


A teoria do fato consumado não tem sido aplicada no caso de servidores públicos nomeados contra disposição constitucional ou legal. Como relator o ministro Félix Fischer, no REsp. n. 293461/CE:


“Inadmissível a aplicação, in casu, da chamada “teoria do fato consumado”para justificar a permanência do candidato no cargo, apenas em face de estar no seu exercício, tendo em vista a reversibilidade da situação de fato e também a ausência do direito do autor”


Fora do âmbito da educação registram-se casos de aplicação da teoria do fato consumado. Rumoroso foi o questionamento da privatização do sistema Telebrás. O STJ decidiu:


"EMENTA: AGRAVO REGIMENTAL - PRIVATIZAÇÃO DO SISTEMA TELEBRÁS - FATO CONSUMADO - RESULTADO POSITIVO - CIRCUNSTÂNCIAS SUPERVENIENTES - DESPROVIMENTO.


I - A ocorrência, com resultado positivo, do leilão de privatização do sistema TELEBRÁS, constitui fato consumado que se afigura inconveniente, na espécie, revolver.

II - Circunstâncias supervenientes, decorrentes de crise mundial no mercado financeiro, demonstram a conveniência e oportunidade da manutenção do certame.

III - Impugnação recursal que não elide as razões da decisão agravada.

IV - Recurso a que se nega provimento."


Alegou-se que a manutenção do status quo evitaria graves inconvenientes de ordem prática, não só para o beneficiado, mas também para terceiros.


Ainda embasado nesta teoria reconhece-se o contrato de gaveta, evita-se a destruição de construções de obras públicas, como pontes, portos, aeroportos feitas ao arrepio da lei.


A teoria do fato consumado extrapolou os limites do judiciário e alcançou o executivo. É o que ocorre com as Medidas Provisórias para mudar até mesmo as leis processuais, a exemplo da MP 2.180, editada mais de quarenta vezes. Aliás, através desta esdrúxula legislação e usando a teoria do fato consumado liberou-se a comercialização de soja transgênica, sob o fundamento de que evitaria problema social e econômico, itens considerados mais importantes que a saúde do brasileiro.


A aplicação da teoria do fato consumado depõe contra a seriedade e eficiência da prestação jurisdicional e já se torna lugar comum no dia-a-dia das decisões judiciais sobre educação, concursos, licitação e construção de obras públicas. Em inúmeras comarcas, varas judiciais e tribunais do país existem demandas nas quais foram invocadas este “jeitinho” para considerar prejudicado o julgamento, porque obtidas liminares ou sentenças dependentes de recursos. O judiciário viola a lei, porque concede à parte direito sem ter; num segundo momento o judiciário desrespeita a lei para cicatrizar aquela situação proibida pela lei.


Reclamam-se providências saneadoras do sistema, pois já se passaram mais de 40 anos de uso indevido deste expediente.Grassa a conferência de direito à parte somente porque não houve julgamento tempestivo da causa. Juridicamente, não tem sustentação legal o direito alegado pelo jurisdicionado, apesar de liminar ou sentença em seu favor, mas a inoperância do judiciário, resultado, em geral, de má fé, provoca aplicação da teoria do fato consumado.


A teoria do fato consumado é retratada na música de Djavan:


“No fundo eu julgo o mundo um fato consumado e vou embora. Não quero mais, me aprofundar nessa história. Arreio os meus anseios, perco o veio e vivo de memória. Eu quero é viver em paz”.
_______________________

* Juiz em Salvador





 

_____________________


Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Artigos Mais Lidos

Afinal, quando serão pagos os precatórios Federais em 2025?

19/12/2024

Decisão importante do TST sobre a responsabilidade de sócios em S.A. de capital fechado

20/12/2024

Planejamento sucessório e holding patrimonial: Cláusulas restritivas societárias

20/12/2024

As perspectivas para o agronegócio brasileiro em 2025

20/12/2024

A sua empresa monitora todos os gatilhos e lança as informações dos processos trabalhistas no eSocial?

20/12/2024