Impenhorabilidade de bens em face do Código Civil de 2002.
Daniel Penteado de Castro*
A fim de podermos analisar a impenhorabilidade de bens prevista na legislação brasileira, devemos ter em mente como normas básicas o disposto no artigo 649 do Código de Processo Civil (regra geral dos bens considerados impenhoráveis), juntamente com o previsto na Constituição Federal de 1988, em seu artigo 5º, inciso XXVI (o qual consagra como cláusula pétrea a impenhorabilidade da pequena propriedade rural trabalhada pela família), o artigo 10, da Lei nº 6.830/1980, que dispõe sobre a proteção na execução fiscal dos bens declarados por lei como impenhoráveis), sem prejuízo da impenhorabilidade do bem de família prevista nos artigos 1.711 a 1.722 do Código Civil de 2.002 e na Lei nº 8.009/90.
Importante fazer uma breve distinção entre o bem de família convencional ou voluntário, disciplinado nos artigos 1.711 a 1.722 do Código Civil em vigor e o bem de família legal, previsto na Lei nº 8.009/90. No bem de família convencional, a entidade familiar ou terceiro podem destinar, por escritura pública, registrada no registro de imóveis, até 1/3 do seu patrimônio líquido para instituir bem de família sobre imóvel destinado ao domicílio familiar ou sobre valores mobiliários cuja renda será aplicada na conservação do imóvel e sustento da família. Assim, o registro do bem de família convencional no Cartório de Imóveis trará como efeito a publicidade desse ato, a fim de evitar, no primeiro momento, que eventual penhora recaia sobre referido imóvel.
Em contrapartida, o bem de família legal, regulado pela Lei nº 8.009/90 tem aplicabilidade ampla, cujo instituidor do bem é o próprio estado, decorre de norma de ordem pública e prescinde de prévia instituição, ao assegurar a impenhorabilidade do imóvel residencial urbano ou rural, próprio do casal e da entidade familiar. Nesse caso, a oponibilidade da penhora só será possível em juízo.
Em ambos os institutos há exceções de impenhorabilidade, onde não será válido o bem de família se a dívida for oriunda de pensão alimentícia, em razão dos créditos de trabalhistas, tributários e demais despesas relativas à própria residência e das respectivas contribuições previdenciárias, pelo titular de crédito decorrente do financiamento destinado à construção ou à aquisição do imóvel, para a cobrança de IPTU, taxas e contribuições devidas em função do imóvel familiar, além de fiança concedida em contrato de locação.
Em relação à fiança locatícia, embora haja disposição expressa na Lei nº 8.009/90 (art. 3º, VII), como exceção, a impenhorabilidade quando a dívida for oriunda de fiança concedida em contrato de locação, recentemente o Supremo Tribunal Federal, ao julgar o Recurso Extraordinário nº 352.940-4, adotou entendimento pela manutenção da impenhorabilidade do bem, tendo em vista que, nesse caso, estar-se-ia protegendo um bem maior, que seria o direito constitucional de moradia.
Segundo o Relator dessa decisão, Ministro Carlos Velloso, a Emenda Constitucional nº 26/2.000 incluiu na redação do artigo 6º da Constituição Federal de 1.988 a moradia, entre os direitos sociais garantidos, sendo esta prerrogativa, portanto, direito fundamental constitucionalmente protegido.
Embora referida decisão ainda seja um precedente isolado, tal julgado é temerário na medida em que confronta o texto da lei em vigor, e, ao mesmo tempo, representa uma insegurança jurídica para o mercado imobiliário nas operações que envolvam a fiança locatícia.
Destarte, o fundamento da impenhorabilidade é evitar que o devedor seja levado a uma situação incompatível com a dignidade humana, a fim de buscar maior proteção ao indivíduo que se encontra em situação econômica desfavorável, ainda que tenha sido o causador dessa situação. Visa a proteção dos bens necessários e úteis a manutenção da dignidade humana. Em relação ao bem de família, a lei apresenta caráter mais amplo, cujo objetivo é proteger a família do devedor, assegurando um lugar para residir.
E a principal discussão trazida nesse artigo está no disposto no artigo 391 do Código Civil em vigor, cuja redação, que não parece feliz, prevê que “pelo inadimplemento das obrigações, respondem todos os bens do devedor”. Importante lembrar que a lei é clara, ao deixar de prever hipótese alguma de impenhorabilidade.
Há quem entenda que como a lei posterior revoga a anterior, estariam derrogadas, por força do advento do Código Civil de 2.002, a impenhorabilidade prevista na Lei nº 8.009/90 e no artigo 649 do Código Processo Civil, permanecendo tão-somente a matéria que regula a impenhorabilidade no próprio Código Civil em vigor. Contudo, essa argumentação não parece ser a mais acertada, por não existir antinomia de normas, na medida em que só uma lei de mesma hierarquia ou hierarquia superior tem o condão de tirar a eficácia de outra lei.
Nesse liame, lei geral só é derrogada por lei geral, como ocorreu com o advento do Código Civil de 2.002 em face do Código Civil de 1.916 e lei especial somente é derrogada por lei especial, a exemplo da Lei nº 8.009/90, que está em vigor até hoje, após o advento do Código Civil de 2.002.
Em verdade, o artigo 391 do Código Civil deve ter sua interpretação conjunta com os artigos 591, 648 e 649 do Código de Processo Civil, segundo os quais o devedor responde, para o cumprimento de suas obrigações, com todos os seus bens presentes e futuros, salvo as restrições estabelecidas em lei, não estando sujeitos à execução os bens que a lei considera impenhoráveis ou inalienáveis, o que parece ser a interpretação mais adequada.
Por outro lado, é importante destacar que o Código Civil de 2002 teve seu espírito encorpado na concepção do ilustre jurista Miguel Reale, da chamada teoria tridimensional do direito, onde o direito não é visto apenas pelo prisma normativo e positivado, mas especialmente fica integrado em três prismas.
O primeiro prisma seria o do fato (análise dos fatos sociais ligados ao caso concreto e suas peculiaridades, vinculado ao seu tempo e ao contexto da sociedade), seguida a análise do valor (caráter idealista e filosófico, dando importância aos princípios e aos valores ligados ao caso concreto e da sociedade), e, por fim, o último prisma seria a observância da própria norma.
Assim, o juiz não mais estará limitado a julgar de acordo com os preceitos da lei, mas sim dialetizar, confrontar sua convicção pelo prisma do fato, do valor e da norma – daí a chamada Teoria Tridimensional do Direito. A título de exemplo desse novo espírito encontram-se as chamadas cláusulas gerais previstas no Código Civil de 2.002, como a boa-fé objetiva (artigo 422), a função social do contrato (artigo 421), a função social da propriedade e os princípios da eticidade, operabilidade e demais conceitos referentes à propriedade que se espraiam no Código Civil de 2.002.
Por um lado, a adoção da teoria tridimensional representa um ganho de poderes conferidos ao juiz ao fundamentar suas decisões, uma vez que estas não ficarão mais limitadas somente ao estrito rigor da norma, o que pode representar o crescimento de decisões inovadoras positivas ou temerárias, exageradas e teratológicas.
Por outro lado, há também um aspecto apetecível, na medida em que a observância da teoria tridimensional pode beneficiar a prestação jurisdicional em casos concretos cujos pleitos venham ser razoáveis, contudo carentes de fundamentação legal ou cuja aplicabilidade da norma já tenha caído em desuso, casos onde o processo legislativo ainda não editou leis suficientes a atender as necessidades e anseios da sociedade, cuja observância dos valores e dos fatos atrelados ao caso concreto viabilizem a devida prestação da tutela jurisdicional.
Desta feita, caberá a jurisprudência sedimentar o alcance e limites das normas dita abertas do Código Civil em vigor, de modo a expor os entendimentos e novas tendências a cada peculiaridade inserta no caso concreto, notadamente no que diz respeito à impenhorabilidade de bens aqui tratada e o propalado artigo 391 do Código Civil.
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* Advogado do escritório Felsberg, Pedretti, Mannrich e Aidar - Advogados e Consultores Legais
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