Clausulação da legítima e a justa causa do art. 1.848 do Código Civil
Alexandre Laizo Clápis*
1. ORIGEM DA JUSTA CAUSA E SEU ALCANCE
Não se trata de disposição novidadeira em nossa legislação pátria1 . A necessidade de se estabelecer a motivação para imposição das cláusulas restritivas sobre a legítima surgiu com o Decreto nº 1.839, de 31/12/1907, disposição legal também conhecida como Lei Feliciano Pena. Tal era a redação do dito Decreto:
“Art. 1º Na falta de descendentes e ascendentes, defere-se a successão ab intestato ao conjugue sobrevivo, si ao tempo da morte do outro não estavam desquitados; na falta deste, aos collateraes até ao sexto gráo por direito civil; na falta destes, aos Estados, ao Districto Federal, si o de cujus for domiciliado nas respectivas circumscripções, ou á União, si tiver o domicilio em territorio não incorporado a qualquer dellas.
Art. 2º O testador que tiver descendente ou ascendente succesivel só poderá dispor de metade do seus bens, constituindo a outra metade a legitima daquelles, observada a ordem legal.
Art. 3º O direito dos herdeiros, mencionados no artigo precedente, não impede que o testador determine que sejam convertidos em outras especies os bens que constituirem a legitima, prescreva-lhes a incommunicabilidade, attribua á mulher herdeira a livre administração, estabeleça as condições de inalienabilidade temporaria ou vitalicia, a qual não prejudicará a livre disposição testamentaria e, na falta desta, a transferencia dos bens aos herdeiros legitimos, desembaraçados de qualquer onus.
Art. 4º Esta lei obrigará desde sua data.
Art. 5º Ficam revogadas as disposições em contrario.” (destaques acrescidos).
Do termo “condições de inalienabilidade temporaria ou vitalicia” contida no art. 3º acima transcrito é que a doutrina brasileira, em especial o professor José Ulpiano Pinto de Souza, extraiu o entendimento da necessidade do testador declarar expressamente a motivação para a imposição de cláusula restritiva de inalienabilidade sobre os bens que integrassem a legítima. Aliás, é bom que se registre que dentre outras alterações esta lei elevou a cota disponível do testador para a metade e garantiu aos herdeiros necessários, por conseqüência, a metade da herança do testador (art. 2º).
Apesar de extenso, vale destacar o pensamento de José Ulpiano2 , sobre a necessidade do testador declarar expressamente os motivos para a imposição da cláusula restritiva de inalienabilidade. Argumentou o insigne jurista no seguinte sentido:
“Que significado tem a palavra – condições – do art. 3º da cit. lei nº 1.839 de 1907, verbis: ‘estabeleça as condições de inalienabilidade temporária ou vitalícia?
A palavra condição é uma daquellas que, no uso jurídico, se pronunciam muito freqüentemente sem ater-se a uma idéia precisa e por isso tem muitas significações. As vezes é adoptada para significar um requisito essencial de qualquer facto jurídico : por exemplo, quando se diz o consentimento é condição essencial do contracto; o decurso do tempo é condição essencial da prescripção. Outras vezes significa cláusula ou pacto pelo qual uma parte estipula certas vantagens, ou impõe alguns onus á outra parte: por exemplo, si Antonio sócio de José promete de ir á Europa tractar dum negocio social, com a condição de que, durante sua ausencia, José adminstrará os seus bens. Várias vezes significa estado ou qualidade da pessôa, como quem diz – condição de pai de família, de eleitor: por isso é que o art. 131 do cod. Civ. ital. diz: ‘Il marito é capo della famiglia; la moglie segue la condizione civile di lui’. Há casos também em que condição equivale á causa final, como quando: ‘faço doação a Ticio para edificar uma casa’.
Mas, todos estes significados se afastam do sentido rigoroso ou technico em que a condição é definida como um acontecimento futuro e incerto do qual depende a efficácia ou a resolução da obrigação, verificando-se elle ou não : condição neste sentido é - id quod condit, isto é, o que funda, o que constitui um acto jurídico. É visível que o art. 3º da lei n. 1.839 de 1907 não empregou a palavra - condições no seu sentido rigoroso ou téchnico, mas em sentido differente, á maneira dos casos supra-referidos, onde a palavra condição não está sujeita a uma idéia precisa.
Somente ahi é que a lei emprega a palavra condições; não o fazendo quando faculta a convertibilidade, ou a incommunicabilidade, ou a exclusiva administração da mulher herdeira. Parece que não pode ter outro significado diverso do seguinte: circunstâncias, causas, motivos, hypotheses, porque a figura jurídica - encargo está implícita em todas as cláusulas nelle facultadas. A lei ahi quer dizer que o ascendente determinará os motivos, as circunstâncias, as hypotheses, ou, em suma a causa pela qual o descendente terá a faculdade de alienar os bens herdados ou fóra da qual não poderá alienal-os temporária ou vitaliciamente.
Mas, daquelle notado procedimento do legislador, ao facultar as diversas cláusulas mencionadas nesse art. 3º, é forçosa a seguinte conclusão : o ascendente, para determinar a conversão dos bens legitimarios em outras espécies, para prescrever a sua incommunicabilidade, para attribuir á mulher herdeira a sua livre administração, basta-lhe manifestar a sua vontade, sem expressar os motivos, as hypotheses, as circunstancias, ou as condições, ou a causa porque o faz; mas, para estabelecer a sua inalienabilidade - precisa expressar os motivos, as circunstancias, as hypoteses, ou as condições, ou a causa porque a estabelece. De modo que, si o testador limitar-se a estabelecer puramente que os bens ligitimarios serão inalienaveis, sem expressar os seus motivos ou condições, ou melhor, a sua causa, arrisca-se a impugnação da validade de sua clausula, deante desta interpretação restricta. Ora, esta interpretação restricta é amaparada na regra juridica que diz que a disposição restrictiva, ou excepcional do direito commum, deve ser entendida dentro dos seus rigorosos termos. Quem invoca uma excepção á regra geral, deve provar que o acto excepcional invocado guardou todos os termos da lei excepcional. Quem invoca uma preferência, deve provar ou está sujeito á impugnação de que o seu título preferencial afastou-se, neste ou naquelle ponto, da lei especial que o amparava. Assim, será repelido por terceiro o credor hypothecario que não exhibir escriptura publica ou exhibil-a sem registro; será repellido por terceiro o credor pignoratício que não estiver na posse do objecto penhorado, na hypothese, por exemplo, de não ter havido tradição. Do mesmo modo o herdeiro legitimario, em luta com credores, que têm a seu favor a regra geral de que o patrimonio do devedor é garantia irremovivel de suas obrigações, si invocar o testamento do seu ascendente para impugnar a respectiva penhora em execução normal, está sujeito á discussão do credor, que lhe dirá: a verba testamentaria para ser respeitada devia ter declarado os motivos, as condições, a causa vestita, segundo os Reinicolas, da inalienabilidade do bem penhorado, mas o não tendo feito-está fóra da lei, e estando fóra da disposição restrictiva, não pode ser acceita a excepção que invocais áquella regra geral, porque ella é um mero conselho, sem obrigatoriedade” (destaques acrescidos).
A justificativa do Senador Feliciano Penna, citada por Clóvis Beviláqua3 , para o projeto do Decreto nº 1.839/1907, é de expressiva coerência e ainda oportuna em nossos dias. Afirmou o referido legislador: “trata-se de uma providência tutelar, a que os testadores recorrerão nos casos, em que o conhecimento íntimo das relações, em que se acharem, determinar a sua necessidade ou conveniência. Não são raros os casos, em que a incapacidade dos herdeiros anniquila, em pouco tempo, grandes fortunas, adquiridas com enorme sacrifício, ficando elles immersos em profunda miséria.”
As disposições legais de Feliciano Penna vigoraram até o advento da Lei nº 3.071, de 1º/01/1916 (Código Civil), que entrou em vigor em 1º/01/1917. A partir de então, com origem e inspiração no art. 3º do Decreto 1.839/1907 já transcrito acima, vigorou a norma do art. 1.723, o qual estabelecia que:
“Não obstante o direito reconhecido aos descendentes e ascendentes, no art. 1.721, pode o testador determinar a conversão dos bens da legítima em outras espécies, prescrever-lhes a incomunicabilidade, confiá-los à livre administração da mulher herdeira, e estabelecer-lhes condições de inalienabilidade temporária ou vitalícia. A cláusula de inalienabilidade, entretanto, não obstará à livre disposição dos bens por testamento e, em falta deste, à sua transmissão, desembaraçados de qualquer ônus, aos herdeiros legítimos.” (grifou-se)
Denota-se que a intenção do legislador ao repetir os preceitos do Decreto nº 1.839/1907 foi a de proteger os interesses da família. Com o referido dispositivo legal assegurou os direitos dos herdeiros necessários contra eventuais arbitrariedades do testador ao manter intangível a metade da herança (legítima) e, em compensação, muniu o testador com mecanismos jurídicos (cláusulas restritivas de inalienabilidade, incomunicabilidade e impenhorabilidade) para evitar as conseqüências desastrosas decorrentes da incapacidade ou inabilidade dos herdeiros, capazes de reduzir de maneira inconseqüente o patrimônio amealhado durante anos com o esforço privativo do testador, com prejuízo exclusivo dos próprios herdeiros.
Vale destacar que se repetiu no art. 1.723 transcrito acima a expressão “estabelecer-lhes condições de inalienabilidade temporária ou vitalícia” então constante no citado art. 3º da Lei Feliciano Pena. Ao que parece, manteve-se a necessidade do testador expressar os motivos que o levaram a clausular a legítima. Afinal, como defendido pelo professor José Ulpiano, não se pode considerar as cláusulas restritivas de inalienabilidade, incomunicabilidade e de impenhorabilidade condição na acepção técnica da palavra. Sabe-se que condição no sentido técnico próprio “é cláusula que, derivando exclusivamente da vontade das partes, subordina o efeito do negócio jurídico a evento futuro e incerto4.” . Destaca Caio Mário da Silva Pereira5 que: “a aceitação deste conceito requer um esclarecimento, que constitui observação de Enneccerus: não é possível dissociar, na declaração condicionada, a determinação principal da determinação acessória; a verdade certa é que a emissão de vontade já nasce sujeita à modalidade, que é dela inseparável.”
Em outro momento o renomado jurista Caio Mário da Silva Pereira6 ensina que: “A palavra condição é empregada em direito em três sentidos. No primeiro, técnico próprio ou específico, traduz a determinação acessória, que se origina da vontade dos interessados, e é neste sentido que neste capítulo a estudamos. Numa segunda acepção, é tomada como requisito do negócio, e é neste sentido que aparece em expressões como estas: condições de validade do negócio jurídico, condição de capacidade para contratar, condição de forma do testamento. Não há em qualquer desses casos, em verdade, uma condição, mas um requisito do negócio jurídico. Numa terceira variação de significado, alia-se a palavra condição a um pressuposto do negócio, ou uma cláusula que ao direito acede naturalmente, e que é dele inseparável. É o que os autores denominam de condição legal (conditio iuris), a que se dá também o nome de condição imprópria, porque ainda que aposta ao negócio sob a forma condicional, implica repetir apenas a exigência da lei, não passando a declaração de vontade de pura e simples. Se o adquirente declara que faz o contrato de compra e venda sob a condição de o alienante ser maior, não se cogita de condição, mas de requisito do negócio; se o testador institui o legado sob a condição de o legatário sobreviver-lhe, não realiza nenhum negócio condicional, pois que a cláusula é uma exigência natural de eficácia da deixa. Mas condição há, com seu contorno bem definido, quando alguém estipula que fará o aluguel da casa, se transferir sua residência para outra localidade, porque aqui subordina o negócio a um acontecimento que é futuro e é incerto; derivada a cláusula da vontade do agente, não é uma decorrência necessária do direito respectivo. Os autores esclarecem, e o artigo 121 do Código deixou sublinhado, que somente se considera condição a cláusula que deriva ‘exclusivamente da vontade das partes’. Não constitui, em suma, condição o requisito que provém da lei ou da própria natureza do direito a que acede.”
Carlos Maximiliano7 , no capítulo referente às “modalidades das disposições testamentárias”, de sua obra Direito das Sucessões, muito bem define o que se entende por condição no direito sucessório:
“Condição é uma relação arbitrária entre a disposição causa mortis e um evento futuro e incerto, positivo ou negativo, do qual o testador faz depender a eficácia das suas determinações. Também podem assim definir: é determinação arbitrária, por meio da qual o testador faz depender de um acontecimento futuro e incerto a eficácia jurídica da vontade declarada; ou, como prefere SAVIGNY – é aquela espécie de restrição que une arbitrariamente a existência de uma relação de direito a um acontecimento futuro e incerto.”
Não é o que ocorre com as cláusulas restritivas. A inalienabilidade (Código Civil, art. 1.911, caput8 ) representa apenas limitação ao direito de propriedade. O instituído pode se valer de todos os atributos da propriedade (usar, gozar, fruir e de reivindicar o bem de quem injustamente o detenha), exceto o de dispor (jus abutendi) da coisa gravada. O que está condicionado a evento futuro e incerto é apenas a morte do autor da herança, não a aquisição do bem pelo sucessor necessário com determinadas características impostas pelo testador. Ao contrário, com a morte transmitem-se de forma inconteste os bens considerados inalienáveis aos herdeiros desta categoria. A inalienabilidade se torna uma característica específica atribuída ao bem e não depende de outro acontecimento (futuro e incerto) para que surta os efeitos dela decorrentes e vigorará plenamente a partir da abertura da sucessão (Código Civil, art. 1.784 ).
Orosimbo Nonato10 entende que as cláusulas restritivas não podem ser consideradas condições no termo técnico próprio daquele a que se refere o dito art. 121 do Código Civil atual. Afirma o doutrinador que:
“Alguns entendem que as cláusulas são condições. Exemplo, Roquebest. Mas é êrro: faltam-lhe os caracteres das condições – nem suspende, nem resolvem, nem há incerteza objetiva. Mais nada fica na dependência da vontade do beneficiado; a cláusula vai do querer do disponente ao bem, ou, talvez, assuma a feição de modus, se lhe falta a praticabilidade real” (grifos nossos).
Sobre o assunto Carlos Maximiliano11 preleciona que:
“O art. 1.723 do Código Civil autoriza o disponente a – ‘estabelecer condições de inalienabilidade’, relativamente à legítima; porém o vocábulo condições não é empregado, ali, no sentido de acontecimentos futuros e incertos; corresponde a modos de ser, situações jurídicas. A norma positiva citada não torna condicional a herança; sujeita o seu uso, gozo e disposição a restrições preestabelecíveis.” (destaques acrescidos).
Segundo José Ulpiano12 , a inalienabilidade melhor se enquadra na teoria da indisponibilidade real, pois a proibição de se alienar o bem decorre de expressa disposição legal. Afirma o renomado jurista que:
“A indisponibilidade real não é um onus ou um direito real na cousa alheia, para poder-se-lhe oppôr o art. 6º da lei hypothecaria; isto é – não é um desmembramento da propriedade transferido ou retido por terceiro, é um corte, um anniquilamento do direito de dispor ou do jus abutendi, uma qualidade que assume o bem deante de certas eventualidades, sendo que entre estas está a clausula de inalienabilidade.”
Portanto, o legislador tanto no art. 3º do Decreto nº 1.839/1907, quanto no art. 1.723 do Código Civil de 1916, usou a expressão condições com referência às causas ou circunstâncias que motivam o testador a clausular a legítima. Ou seja, tal expressão guarda relação com os motivos e não com evento futuro e incerto. Em outras palavras, decorre do seguinte exercício de raciocínio: impõem-se a cláusula de inalienabilidade em razão de tal e qual circunstância, motivo ou causa.
O testador usa do recurso da inalienabilidade por conhecer - e ninguém melhor do que ele - em detalhes as características de cada um dos legitimários e as circunstâncias que cercam cada um deles. E se já se sabe que algum dos reservatários é reconhecidamente inábil na administração das reservas financeiras ou que celebrou casamento com consorte dado à extravagâncias desmedidas ou com certa probabilidade de fracasso - e basta a dúvida para justificar tal remédio -, razoável que o testador proteja não só o patrimônio a ser transmitido (saisine), mas principalmente o herdeiro necessário para que este possa se valer do patrimônio herdado como fonte de recursos para sua própria manutenção e sustento. Sem deslembrar as situações em que os reservatários são menores e geralmente dependentes do de cujus.
Sobre o citado art. 1.723 do Código Civil de 1916 ter mantido a expressão estabelecer-lhes condições de inalienabilidade, como já estabelecia o referido art. 3º do Decreto 1.839/1907, Clóvis Beviláqua13 manifestou entendimento no sentido contrário ao de José Ulpiano, ou seja, pela desnecessidade de serem manifestados expressamente os motivos para a imposição das cláusulas restritivas. Asseverou o ilustre jurista:
“Em particular, a locução – estabelecer-lhes condições, não significa, de modo algum, que o testador seja obrigado a declarar os motivos de sua determinação; ou que torne a sua eficacia dependente de algum acontecimento futuro e incerto. O vocábulo condições é aqui empregado no sentido correspondente a modos de ser, situações jurídicas. É commum dizer-se a condição do escravo, do estrangeiro do filho natural. O Codigo, semelhantemente, disse condições de inalienabilidade temporaria e vitalicia, para significar a situação jurídica imposta aos bens. E não se explicaria porque o testador, dispensado de dar as razões pela quaes torna os bens da legitima incommunicaveis, fosse obrigado a explicar-se quanto á inalienabilidade, ou somente a pudesse estabelecer condicionalmente.”
Com todo respeito à abalizada opinião doutrinária acima indicada, parece que neste aspecto a interpretação mais segura é no sentido defendido por José Ulpiano, mesmo na vigência do Código Civil de 1.916. Ou seja, pela necessidade de ser apresentada a causa para clausulação da legítima, para que não houvesse o risco de se alterar a vontade do autor da herança em razão da falta de tal requisito legal, frente a eventuais questionamentos feitos não só por terceiros (cônjuges ou credores, por exemplo), mas também pelos próprios beneficiários. A prática, no entanto, mostrou que os autores das liberalidades que se utilizavam das ditas cláusulas restritivas, na maioria das vezes, não declinavam as causas justificadoras da clausulação.
Mas, bem ou mal, mal ou bem, o legislador do novo Código Civil entendeu oportuno acabar com a divergência existente quanto à interpretação e alcance da expressão condição e determinar a necessidade do testador declinar expressamente a justa causa para clausulação da legítima. O referido art. 1.848 do novo Código Civil determina que:
“Salvo se houver justa causa, declarada no testamento, não pode o testador estabelecer cláusula de inalienabilidade, impenhorabilidade, e de incomunicabilidade, sobre os bens da legítima.” (grifou-se)
A nova redação, como dito, acabou com a divergência anterior ao eliminar do texto a expressão condições de inalienabilidade e substituir por justa causa. Agora há que haver declaração expressa do testador de qual a causa para imposição das cláusulas restritivas de inalienabilidade, impenhorabilidade e de incomunicabilidade. Todos os comentários doutrinários apresentados acima feitos à expressão condições valem para explicar a justa causa, apesar desta expressão ser mais adequada que a anterior.
Muitos entendem descabida a possibilidade de se clausular a legítima especialmente pelo fato desta pertencer de pleno direito aos herdeiros necessários. Argumentam, ainda, no sentido de que tais bens devem ser transferidos aos sucessores legitimários nas mesmas condições e características detidas pelo autor da herança, sem que haja limitações no exercício do direito de propriedade dos bens sobre os quais havia expectativa legal e que com a morte são adquiridos.
Defendem, também, os discordantes, que a clausulação da legítima decorre do sentimento extremamente patriarcal e individualista imposto ao ordenamento civil pelo legislador de 1916, que expressa excessivo arbítrio do testador e impede ação dos sucessores e de terceiros, além de perpetuar instituto inadequado à circulação de riquezas na sociedade atual.
É preciso lembrar que, apesar de garantido o direito dos herdeiros necessários sobre à legítima, os bens só integrarão a esfera patrimonial dos sucessores, por óbvio, se existente tal parcela e somente após a abertura da sucessão, como já mencionado. Enquanto não se verificar esta situação (abertura da sucessão) há mera expectativa de direito dos reservatários, ou, como considerou José Ulpiano14 ao se referir à legítima, um “direito de espectativa de caracter real.”. O autor da herança, como titular de domínio de seu patrimônio, pode administrá-lo da maneira que lhe convier, e, ainda, elaborar disposição de última vontade, inclusive com clausulação da legítima, desde que motivada.
Não se analisará detalhadamente cada uma das cláusulas restritivas, mas não há como negar que a cláusula de inalienabilidade, a par da proteção conferida, representa medida antipática e de significativo entrave à circulação da propriedade gravada por muitos anos, e que pode acarretar prejuízos aos próprios sucessores legitimários que herdam bens com tal restrição e impedir, por exemplo, que se ofereça tais bens em garantia para obtenção de financiamentos. Vale registrar que a inalienabilidade acarreta a impenhorabilidade e a incomunicabilidade, nos termos do que estabelece o art. 1.911, do Código Civil, com origem na Súmula 49 do Supremo Tribunal Federal15 , de 16/12/1963. A cláusula de inalienabilidade deve ser utilizada pelo testador em casos de necessidade extrema. A impenhorabilidade, por sua vez, acarreta grave barreira às pretensões dos credores dos herdeiros. Não se deve perder de vista que nosso ordenamento jurídico16 sempre prestigiou o conceito de vinculação de todo o patrimônio do devedor às obrigações assumidas como garantia do adimplemento. E o Código Civil atual reforçou tal preceito ao estabelecer no art. 391 que “Pelo inadimplemento das obrigações respondem todos os bens do devedor.” Assim, também como a inalienabilidade, a impenhorabilidade deve ser estabelecida em situações sérias e legítimas para que não haja injusto e desmedido prejuízo para os eventuais credores dos herdeiros necessários que com estes contratarem com a máxima boa-fé.
Já a incomunicabilidade constitui ferramenta protetiva para segregar o patrimônio herdado por ocasião da partilha de bens quando do término da sociedade conjugal. Zeno Veloso17 , seguindo o pensamento de Orlando Gomes, entende que a imposição da cláusula de incomunicabilidade deveria ser feita livremente sem necessidade de ser declinada a justa causa exigida pelo caput do dito art. 1.848:
“Não deveria ter sido incluída na previsão do art. 1.848 a cláusula de incomunicabilidade. De forma alguma ela fere o interesse geral, prejudica o herdeiro, desfalca ou restringe a legítima: muito ao contrário. O regime legal supletivo de bens é o da comunhão parcial (art. 1.640, caput), e, neste, já estão excluídos da comunhão os bens que cada cônjuge possuir ao casar, e os que lhe sobrevierem, na constância do casamento, por doação ou sucessão (art. 1.659, I). Assim sendo, se o testador impõe a incomunicabilidade quanto aos bens da legítima de seu filho, que se casou sob o regime da comunhão universal, nada mais estará fazendo do que seguir o próprio modelo do Código, e acompanhando o que acontece na esmagadora maioria dos casos.”
Como já dito acima, apesar das opiniões divergentes, o art. 1.848 do atual diploma civil autoriza a imposição de cláusulas restritivas sobre a legítima mas exige que seja declinada expressamente a justa causa pelo testador. Trata-se de uma forma de proteção dos próprios herdeiros necessários que, no Código anterior, recebiam suas cotas partes livremente gravadas pelo testador com cláusulas de inalienabilidade, incomunicabilidade e impenhorabilidade sem que houvesse oportunidade de se conhecer as intenções e motivos do autor da herança ou da liberalidade, como ocorre nos contratos de doação, situação que se analisará adiante.
Isto parece refletir o princípio fundamental de socialidade que, juntamente com os de eticidade e de operabilidade, nortearam o legislador do novo Código Civil, em contraposição ao excessivo individualismo patriarcal da sociedade agrícola do início do século passado, que permeou de forma marcante as regras do Código Civil superado.
Manteve-se, em princípio, o sistema anterior do Decreto nº 1.839/1907 que, quando houver, põe a legítima a salvo e inibe as arbitrariedades por parte do autor da herança. Da perspectiva do testador, que não pode impedir a transmissão da legítima em razão do princípio da saisine (Código Civil, art. 1.784) e por ser esta intangível – o que limita a livre disposição de todo patrimônio por testamento -, a lei permite que os bens que compõem tal parte da herança sejam gravados com cláusulas restritivas a fim de proteger o patrimônio transmitido de eventual revés financeiro ou do insucesso de um casamento de qualquer dos herdeiros, desde que haja justa causa declarada. Ao que parece, a finalidade maior do legislador é proteger a família. Como destaca Ademar Fioranelli18 , “a família, ineludivelmente, é o maior bem da sociedade.”
A nova regra acabou por conceder aos herdeiros reservatários o direito de conhecer as razões e os motivos que permitiram ao testador concluir pela necessidade de imposição das cláusulas restritivas e até mesmo, se o caso, questioná-las judicialmente.
É bem verdade que o termo justa causa é extremamente vago, indeterminado e impreciso. Judith Martins Costa19 ensina:
“Ocorre que os conceitos formados por termos indeterminados integram, sempre, a descrição do ‘fato’ em exame com vistas à aplicação do direito. Embora permitam, por sua vagueza semântica, abertura às mudanças de valorações (inclusive as valorações semânticas) – devendo, por isso, o aplicador do direito averiguar quais são as conotações adequadas e as concepções ética efetivamente vigentes, de modo a determiná-los in concreto de forma apta -, a verdade é que, por se integrarem na descrição do fato, a liberdade do aplicador se exaure na fixação da premissa.”
Conseqüentemente, caberá ao juiz, em cada caso, o poder-dever de preencher o conteúdo exato da questão submetida à norma, dar-lhe concreção e especificar os limites das questões essenciais. Vale registrar que, ao contrário da cláusula geral em que a atividade do juiz é mais complexa, para os conceito indeterminados contidos nas normas o caso é de subsunção.
Não há criação de direito pelo juiz, mas simples interpretação do dispositivo legal. O “juiz se limita a reportar ao fato concreto o elemento (vago) indicado na fattispecie (devendo, pois, individuar os confins da hipótese abstratamente posta, cujos efeitos já foram predeterminados legislativamente)...”20 .
É o que acontecerá com as disposições do art. 1.848 do Código Civil em vigor. Clausulada a legítima o juiz deverá (i) verificar se atendido o requisito legal de justa motivação, tendo em conta tratar-se de norma de ordem pública e (ii) se manifestada a causa, avaliar quanto a justeza, seriedade, pertinência, etc., da respectiva motivação.
A legítima em nosso direito há tempos é considerada parte sagrada e intocável da herança e o legislador do novo Código Civil manteve esta orientação já tradicional em nosso ordenamento jurídico. Tal proteção era prevista no art. 2º, do Decreto nº 1.839/1907, que autorizou o testador dispor livremente de apenas da metade da herança e considerou a outra metade reservada aos herdeiros necessários.
Dispõe o art. 1.846 do Código Civil que “pertence aos herdeiros necessários, de pleno direito, a metade dos bens da herança, constituindo a legítima.”. Depreende-se que a reserva é, portanto, intocável pelo autor da herança em razão do direito assegurado aos herdeiros necessários de receberem a legítima. E para tanto basta que pertençam a tal categoria de sucessores. Disponível, por sua vez, é a meação que o autor da herança pode dispor livremente quando há herdeiros necessários. (Código Civil, art. 1.78921 ).
São valiosos os ensinamentos de Clóvis Beviláqua22 sobre a legítima:
“Attendendo aos interesses da familia, o Codigo limitou essa liberdade á metade dos bens do testador, quando houver descendentes ou ascendentes sucessiveis, isto é, que não sejam excluidos da herança por disposição de lei (indignos), ou por acto do succedendo (desherdados). A socialização do direito e o reclamo dos sentimentos ethicos oppõem-se a que se ponha nas mãos do individuo essa arma perigosa da plena liberdade de testar, com a qual o egoismo póde praticar revoltantes injustiças, desfazer o bem estar domestico e conturbar a base economica da sociedade.
Legítima é a porção dos bens que a lei reserva aos herdeiros descendentes e ascendentes, que, em virtude dessa segurança legal de seus interesses contra o arbiitrio do testador, se denominam herdeiros necessarios, reservatorios, forçados ou legitimarios. A primeira denominação é a que o Codigo prefere, por ser mais expressiva. Esses herdeiros não podem ser privados da sua legitima, senão nos casos especiaes, e pelos modos, que a lei prescreve. Por direito romano, herdeiro necessario era o que não podia deixar de adir á herança, como o filho familia e o escravo, depois protegidos pelos beneficios da obstenção e da separação. No direito patrio, é o que a lei institue forçosamente, ainda que faculte a sua exclusão, como pena civil por actos, que especifica.”
Ensina Itabaiana de Oliveira23 que: “Legítima é a porção da herança que o testador não pode dispor por ser, pela lei, reservada aos herdeiros necessários.”
Orosimbo Nonato24 define que: “O nome de reserva deriva de subtrair-se a quota, que a compõe, ao poder de dispor do de cuius, destinada, reservada, que está, a determinadas pessoas.”
Carlos Maximiliano25 leciona que: “A legítima é intangível: não pode ser diminuída na essência, ou no valor, por nenhuma cláusula testamentária.”
A proteção à legítima está, também, presente nas disposições legais relativas à doação que, no art. 54926 do Código Civil, proíbe a liberalidade do quanto exceder àquilo que o doador poderia dispor em testamento, sob pena de nulidade. Ou seja, como nas disposições de última vontade o testador tem liberdade para dispor livremente apenas da parte disponível - considerada como metade da herança (Código Civil, art. 1.789) -, no momento em que instrumentalizada a liberalidade o quanto doado não poderá ultrapassar esta meação disponível. A inobservância de tal preceito legal caracteriza o que a doutrina denomina como doação inoficiosa que, nas palavras de Orlando Gomes27 , entende-se como “aquela em que o doador, no momento da liberalidade, excede a legítima dos herdeiros.”
Soma-se aos demais doutrinadores citados acima a preciosa lição de José Ulpiano sobre a legítima:
“Portanto, o conceito que a reserva é o direito de successão dos herdeiros reduzido a uma quota do patrimonio é o fundamento da inteira theoria da legitima ou reserva, no direito patrio. Ella não equivale a uma parte do que o herdeiro reservatário teria conseguido ab intestato, porque não se mede simplesmente pela somma do patrimônio hereditario qual é deixado, mas é preciso para ser calculada computar no patrimonio, conforme regras estabelecidas, mesmo os bens doados pelos ascendentes inter vivos. Em summa, ella, em vida do de cujus, garante ao herdeiro uma certa quota do patrimonio impedindo alienações de determinada natureza, ou melhor – restringe o direito natural do proprietario de dispôr do proprio patrimonio, por ser ella um direito de espectativa de caracter real. É uma limitação imposta ao de cujus relativamente á sua propriedade; e as disposições que a infringirem são impugnaveis dentro de certos limites: o seu objecto está sujeito á reivindicação ou á reducção. Por tudo isso é que o defuncto não podia graval-a, nem com uma condição, nem com um onus qualquer.”
Evidente que o legislador, quanto à legítima, restringiu a liberdade do testador de dispor livremente do próprio patrimônio.A regra é que aos legitimários, em razão da já comentada intangibilidade desta parte da herança, é assegurada a expectativa real relativa à metade dos bens do falecido28 , e devem receber a respectiva cota reservada de forma límpida, imediata e sem qualquer embaraço ou restrição.
A proteção da legítima é tão séria que os herdeiros necessários só poderão ser afastados da sucessão nas situações expressamente previstas em lei. Trata-se das hipóteses de exclusão por indignidade (Código Civil, arts. 1.814 e 1.1815), que afasta tanto os herdeiros necessários quanto os testamentários e que tem como força geradora as hipóteses previstas em lei; e da deserdação, ato pelo qual se afasta os herdeiros necessários da sucessão, com expressa indicação no testamento das razões que devem ser aquelas indicadas em lei (Código Civil, arts. 1.961 e seguintes).
Além das referidas situações de indignidade e de deserdação, hipóteses de exclusão da sucessão, a lei prevê a possibilidade do autor da herança tocar a parte reservada dos sucessores necessários e impor cláusulas restritivas. Poder-se-ia pensar que se trata de relativizar a intangibilidade da legítima. Ao contrário, trata-se de reforçar ainda mais a limitação do testador sobre tal reserva. Assim, é possível limitar o direito de propriedade dos bens que integram a cota reservada com a imposição das cláusulas restritivas, mas é indispensável atender ao requisito legal da manifestação da justa causa.
Sobre a imprescindível necessidade de se manifestar a justa causa para imposição das cláusulas sobre a legítima, Zeno Veloso29 destaca que:
“O estabelecimento da cláusula de inalienabilidade, quanto aos bens que integram a legítima, deve observar o que dispõe o art. 1.848. Este Código limitou bastante a aposição de cláusulas restritivas, que eram admitidas, francamente, pelo art. 1.723 do Código Civil de 1.916. Agora, nos termos do art. 1.848, salvo se houver justa causa, declarada no testamento, não pode o testador estabelecer cláusula de inalienabilidade, impenhorabilidade, e de incomunicabilidade sobre os bens da legítima.”
E a indicação da causa não é único requisito exigido pelo art. 1.848 para a imposição das cláusulas restritivas. Referido dispositivo legal determina que ela (causa), seja justa, com razão suficientemente séria e legítima para que se sustente em eventual impugnação feita pelo próprio herdeiro ou por terceiros interessados (cônjuges, credores, etc.). Assim, ressalvadas as opiniões contrárias, não basta declaração de que as cláusulas de inalienabilidade, de impenhorabilidade e de incomunicabilidade são impostas para preservação ou segregação do patrimônio, pois estas são as finalidades substantiva e primária das referidas cláusulas restritivas. A motivação deverá guardar correlação com as particularidades e circunstâncias que envolvem instituidor e instituídos. Mais uma vez oportuna a lição de José Ulpiano30 :
“Licito, porem, não é o testador estabelecer as circusntancias, os motivos ou as condições, que sua vontade ou phantasia determinar para a inalienabilidade temporaria ou vitalicia.Não: em primeiro lugar devem ser interesses sérios, legítimos, moraes, approvaveis, racionaes, ou de natureza tal que não possam ser protegidos ou realizados senão por meio da inalienabilidade.”
Silvio Rodrigues31 preleciona que:
“Não basta que o testador aponte a causa. Ela precisa ser justa, podendo-se imaginar a pletora de questões que essa exigência vai gerar, tumultuando os processos de inventário, dado o subjetivismo da questão. Se o testador explicou que impõe a incomunicabilidade sobre a legítima do filho porque a mulher dele não é confiável, agindo como caçadora de dotes; ou se declarou que grava a legítima da filha de inalienabilidade porque esta descendente é uma gastadora compulsiva, viciada no jogo, e, provavelmente, vai dissipar os bens, será constrangedor e, não raro, impossível concluir se a causa apontada é justa ou injusta.”
Mas é preciso que os operadores do direito, em especial os notários, alertem as partes sobre a imperiosa necessidade de se motivar a clausulação da legítima, especialmente sobre o problema de ser justa a causa para a respectiva imposição, para que não haja o risco de ser alterada a vontade do autor da herança por ocasião do inventário. É preciso que as partes saibam que os motivos e as causas para justificar a imposição das cláusulas restritivas devem ser sérios, ainda que de certo modo constrangedor para os envolvidos. É o instituidor quem deve avaliar se a imposição das cláusulas valerá o eventual acanhamento gerado com os instituídos. E deverá estar ciente de que o não atendimento do requisito legal justa causa poderá acarretar alteração em sua vontade.
2.A JUSTA CAUSA NOS NEGÓCIOS JURÍDICOS DE DOAÇÃO
Mas não são só os testadores que devem estar atentos ao requisito legal que exige a motivação justa para clausular a legítima, os doadores também devem observar tal preceito.
Inicialmente é preciso destacar que não há na parte que trata sobre as regras do contrato de doação (Capítulo IV, do Título VI, Livro I, da Parte Especial do Código Civil - artigos 538 a 564) dispositivo relativo à imposição de cláusulas restritivas aos bens objeto de liberalidades inter vivos, como ocorre expressamente no direito das sucessões (artigos 1.848 e 1.911).
Mas a redação do parágrafo único do art. 1.911 do Código Civil atual ao fazer referência sobre a possibilidade de alienação de bens gravados com cláusulas restritivas, mediante autorização judicial e com a necessária sub-rogação, expressamente prevê a hipótese da doação. É o que se conclui da simples leitura do referido dispositivo em especial da seguinte parte:
“...por conveniência econômica do donatário ou do herdeiro...”
Ora, ao permitir que os bens clausulados sejam alienados pelo donatário, mediante autorização judicial, o legislador expressamente admitiu a possibilidade das cláusulas restritivas serem impostas nos contratos de doação e não apenas nos testamentos.
Existe, ainda, a hipótese de serem instituídas tais restrições nos contratos de compra e venda em que há doação da quantia por um para que outro adquira onerosamente o bem. Trata-se da doação modal brilhantemente defendida por Ademar Fioranelli32 . Afirma o insigne registrador paulista que:
“Surge, aqui, a doação modal, perfeitamente possível numa escritura de venda e compra, desde que realizadas simultaneamente. Como diz Pontes de Miranda, ‘na doação modal, o donatário é vinculado ao modus’ (Tratado de Direito Provado, 46/205).”
“Na espécie, ocorreu a doação da quantia sub modus, ou seja, para que com ela fosse adquirido determinado imóvel clausulado de inalienabilidade e impenhorabilidade, atos esses que podem ser formalizados na mesma escritura, uma vez que, ainda na lição de Pontes de Miranda, ‘no contrato de doação, pode-se estabelecer que o modus seja atendido simultaneamente à prestação com que se concluiu o contrato’ (ob. Cit., p. 209); modus que não beneficia somente aos donatários, mas também a prole; porquanto, com a cláusula, é evitada a dilapidação do bem que refoge ao patrimônio comum. Portanto, são perfeitamente possíveis e legítimos os atos praticados num único título, envolvendo compra e venda em decorrência da doação do numerário para a aquisição; a imposição do gravame das cláusulas, e ainda, num segundo plano, a constituição do usufruto, em favor dos doadores. O título é conforme o direito, sendo passível de registro.”33
Portanto, não procede a afirmação de que nas doações em que são impostas cláusulas restritivas não há necessidade de ser declinada a justa causa por ser este requisito adstrito ao âmbito dos testamentos. É imprescindível, aliás, que o doador expressamente declare no instrumento causal em que há imposição de cláusulas se a respectiva liberalidade é feita da parte disponível ou legítima de seu patrimônio.
E neste sentido a doutrina brasileira há muito admite que as cláusulas restritivas sejam impostas não só nos testamentos, mas também nos contratos de doação. J.M. Carvalho Santos34 afirma que:
“A cláusula de inalienabilidade pode ser imposta não sòmente pelo testador, mas, também, pelo doador.”
Itabaiana de Oliveira35 também considera possível clausular a legítima nos contratos de doação. Ensina o jurista que:
“ADIANTAMENTO DA LEGÍTIMA - Nos adiantamentos da legítima, têm lugar as restrições permitidas no art. 1.723 do Cód. Civil, porque, sendo elas uma doação, bem pode o doador determinar o encargo que lhe aprouver, uma vez que não seja proibido por lei;...”
Da mesma forma Agostinho Alvim36 :
“A cláusula de inalienabilidade poderia figurar nas doações, ainda que a lei não o permitisse expressamente, uma vez que não é ilícita.Mas o certo é que a lei a admite, no art. 1.676 do Código Civil, que a ela se refere como podendo constar em testamento, ou doação.”
E, para tanto, é permitido aplicar as regras do direito das sucessões aos negócios jurídicos gratuitos inter vivos. Orlando Gomes37 sintetiza tal entendimento da seguinte forma:
“A natureza contratual da doação é atualmente inquestionável. Os códigos incluem-na entre os contratos, ainda que reconheçam se deva submeter a algumas regras aplicáveis ao testamento.”
É o que ocorre com o art. 1.848. Está permitido clausular bens nos contratos de doação – inclusive nas modais, como dito -, valendo-se, para tal, do referido dispositivo legal que está contido nas regras do direito sucessório.
Assim, se declarado no título que o bem doado é destacado da parte disponível, desnecessário que se manifeste a justa causa exigida pelo mencionado art. 1.848, caput. No entanto, nas situações em que tais liberalidades refiram-se ao adiantamento daquilo que compõe a legítima, indispensável que o doador apresente expressa motivação para a clausulação, pelos mesmos fundamentos apresentados anteriormente.
Aliás, é bom frisar que os adiantamentos de legítimas somente podem ser instrumentalizados por meio de contratos de doação.
E se, ao adiantar a legítima, o doador impõe cláusulas restritivas, imperativo que apresente sua justa causa para atender ao requisito legal e legitimar sua pretensão.
As doações que se enquadrem na hipótese do art. 544, do Código Civil, em especial, por se tratar de liberalidade de ascendente em favor de descendentes ou cônjuge, representam adiantamento daquilo que a eles (descendentes ou cônjuge) caberá na herança do doador. Esta (herança), por sua vez, como já se sabe, é composta das partes denominadas legítima e disponível (Código Civil, artigos 1.846 e 1.857).
Nos negócios jurídicos de doação feitos de ascendente para descendentes ou cônjuge, nos quais se configure antecipação do que lhes caberá na herança (legítima + disponível), com imposição de cláusulas restritivas de incomunicabilidade e de impenhorabilidade, é necessário que o doador declare expressamente se o quanto doado é destacado da parte legítima ou da disponível de seu patrimônio.
Se o doador considerar que tal destaque é feito da parte legítima de sua herança, imprescindível que se declare a justa causa para imposição das referidas cláusulas restritivas de inalienabilidade, incomunicabilidade e de impenhorabilidade, em atenção ao que determina o art. 1.848 do Código Civil, que serve de supedâneo aos negócios jurídicos de doação, não só por se tratar de liberalidades, como ocorre nos testamentos, mas por não haver nas regras relativas ao contrato de doação (Código Civil, artigos 538 e seguintes) previsão legal que autorize tais cláusulas nesta espécie de contrato. Se declarado expressamente que é da disponível, desnecessário constar a justa causa.
CONCLUSÃO
Sabe-se que as regras do direito das sucessões são de ordem pública. Não podem o autor da herança nem os beneficiários alterar as respectivas disposições legais por convenção, por exemplo. Carlos Maximiliano38 ensina:
“Além das especificações oferecidas pelo Direito Positivo, temos as da jurisprudência. ‘Quando apesar de todo esfôrço de pesquisa e de lógica, ainda persiste razoável, séria dúvida sôbre ser uma disposição de ordem pública ou de ordem privada, opta-se pela última hipótese, porque esta é a regra, aquela, a limitadora do direito sôbre as coisas, etc., a exceção’: não há lugar para analogia, nem sequer para a exegese extensiva.
Excepcionais, em mais alto grau do que nos outros ramos das ciências jurídicas, serão leis de ordem pública relativas ao Direito das Sucessões; porque ‘os preceitos que o legislador edita nesta matéria, são essencialmente supletivos da vontade dos particulares.”
Desta forma, há que se observar a obrigatoriedade de ser declinada expressamente nos contratos de doação e nos testamentos a justa causa para clausulação da legítima.
Especialmente nos negócios jurídicos de doação, não se pode pretender aplicar as disposições contidas no art. 1.848 de forma parcial, ou seja, valer-se o doador apenas das cláusulas restritivas e ignorar a necessária motivação. Se pretender clausular a legítima deverá atender todos os requisitos contidos no dito art. 1.848, em especial a justa causa.
Como ensinou José Ulpiano, quem quer se valer da exceção à regra geral deve provar que o ato extraordinário atendeu ao que preceitua a correspondente norma. No caso, a regra geral refere-se à intangibilidade da legítima, mas se o autor da herança pretender instituir cláusulas restritivas sobre a cota parte dos legatários - exceção à regra geral da intangibilidade -, deverá atender ao requisito legal que exige justa motivação.
Relevante o entendimento de Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka39 sobre a necessidade de se declinar a justa causa exigida pelo art. 1.848:
“Atualmente, e por força do caput do art. 1.848 do atual Código Civil, apenas se o testador indicar justa causa, a ser avaliada e conferida pelo juiz presidente do inventário, em processo autônomo, todavia, por ser questão de alta indagação, será possível a aposição de cláusulas de tão relevante alcance e graves conseqüências.”
“Indicada a causa, será ela analisada pelo magistrado, ouvido o herdeiro sobre quem pese a cláusula. Este, se concordar com a cláusula aposta, poderá ainda assistir à contradita levada a efeito por seu cônjuge, por seus credores etc.”.
A clausulação da legítima será necessariamente avaliada pelo juiz do inventário em processo independente. Enquanto não finalizada a avaliação jurisdicional sobre a imposição das cláusulas restritiva sobre a legítima não se seguirá com o inventário, pois há significativa conseqüências sobre os bens a serem partilhados.
E será no procedimento autônomo ao inventário que se permitirá o questionamento não só da existência ou não da causa para clausulação da legítima, mas também quanto ser ou não justa, séria, oportuna e pertinente. Este será o momento em que os herdeiros, os cônjuges e os credores dos herdeiros poderão impugnar a intenção do autor da herança (doador ou testador) de apor as cláusulas restritivas. Se o magistrado constatar ausência da justa causa ou ser esta insuficiente, tais restrições poderão ser desconsideradas e possibilitadas a alienação, oneração, penhora e eventual comunicação com o patrimônio do consorte.
Portanto, insiste-se na importância dos notários alertarem os testadores e os doadores para que apresentem expressamente nos respectivos instrumentos a justa causa como determina o art. 1.848 do novo Código Civil para que, no futuro, não se desvirtuem suas vontades quanto à inalienabilidade, impenhorabilidade e a incomunicabilidade dos bens recebidos pelos reservatários. Da mesma forma, devem os registradores qualificar negativamente os instrumentos de doações (inclusive as modais) caso não haja expressa motivação para imposição das cláusulas restritivas40.
Evidentemente que notários e registradores devem apenas exigir que seja declinada pelos doadores e testadores a justa causa, mas não cabe a estes profissionais a valoração de tais declarações, se são ou não suficientes e justas, tarefa reservada à esfera jurisdicional. Mas cabe aos formadores dos testamentos e dos contratos de doação alertar os interessados sobre a seriedade da motivação.
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“Cada um poderá vender a sua cousa a quem quizer, e pelo melhor preço que puder e não será obrigado vendel-a a seu irmão, nem a outro parente, nem poderão dizer que a querem tanto por tanto. Nem poderão os filhos, nem outros descendentes desfazer a venda, e haver a cousa tanto por tanto, por dizerem que foi a seu avoengo.
§ 1º Porém, se o testador em seu testamento deixar sua herança, ou legado a alguma pessoa, mandando que o não possa vender, nem emalhear, senão algum seu irmão ou parente mais chegado, cimprir-se-ha o que pelo testador for mandado.
§ 2º E bem assim, se algum deu, ou vendeu alguma cousa sua a outrem, com condição que não a possa vender, nem alienar, senão a seu irmão, ou a outra certa pessoa, fazendo-se a emalheação em outra maneira, será nenhuma e de nenhum efeito.”
2Das Clausulas Restrictivas da Propriedade, Escolas Prof. Salesianas, 1910, São Paulo, pág. 89.
3 Código Civil dos Estados Unidos do Brasil, Editora Rio, 3ª tiragem, 1979, edição história, pág. 923.
4 Código Civil, art. 121.
5 Instituições de Direito Civil, Forense, Rio de Janeiro, 20ª edição, 2004, vol. I, pág. 556.
6 Op. cit., pág. 555
7 Freitas Bastos, São Paulo, 4ª edição, 1958, vol. II, pág. 187.
8 “A cláusula de inalienabilidade, imposta aos bens por ato de liberalidade, implica impenhorabilidade e incomunicabilidade.”
9 “Aberta a sucessão, a herança transmite-se, desde logo, aos herdeiros legítimos e testamentários.”
10 Estudos sobre Sucessão Testamentária, Revista Forense, Rio de Janeiro, 1957, vol. II, pág. 313.
11 Direito das Sucessões, Freitas Bastos, São Paulo, 4ª edição, 1958, vol. III, pág. 25.
12 Op. cit., pág. 151 e 152.
13 Op. cit., pág. 924.
14 Op. cit., pág. 127.
15 “A cláusula de inalienabilidade inclui a incomunicabilidade dos bens.”
16 Código de Processo Civil, art. 591. “O devedor responde, para cumprimento de suas obrigações, com todos os seus bens presentes e futuros, salvo as restrições estabelecidas em lei.”
17 Novo Código Civil, Coordenação Ricardo Fiúza, Saraiva, São Paulo, 1ª edição, 2003, pág. 1668.
18 Direito Registral Imobiliário, safE, Porto Alegre, 2001, pág. 155.
19 A Boa-Fé no Direito Privado, RT, 1ª edição, 2ª tiragem, 2000, pág. 326.
20Judith Martins Costa, Op. cit.
21 “Havendo herdeiros necessários, o testador só poderá dispor da metade da herança.”
22 Op. cit., pág. 918
23 Tratado de Direito das Sucessões, Max Limonad, São Paulo, 4ª edição, 1952, vol. 2, pág. 626.
24 Op. cit., pág. 356.
25 Direito das Sucessões, Freitas Bastos, São Paulo, 4ª edição, 1958, vol. III, pág. 24.
26 “Nula é também a doação quanto à parte que exceder à de que o doador, no momento da liberalidade, poderia dispor em testamento.”
27 Contratos, Forense, Rio de Janeiro, 24ª edição, 2001, pág. 215.
28Caio Mário da Silva Pereira, Instituições de Direito Civil, Forense, Rio de Janeiro, 2004, vol. VI, pág. 26.
29 Comentários ao Código Civil, Saraiva, São Paulo, 2003, vol. 21, pág. 234.
30 Op. cit., pág. 98.
31 Direito Civil, Saraiva, São Paulo, 26ª edição, 2003, pág. 127.
32 Op. cit., pág. 161.
33 Sobre a doação modal importante a opinião de Sérgio Jacomino manifestada em trabalho publicado na Revista de Direito Imobiliário, nº 48, ano 23, janeiro – junho de 2000, pág. 245, sob o título Doação modal e imposição de cláusulas restritivas.
34 J.M. Carvalho Santos, Código Civil Brasileiro Interpretado, Freitas Bastos, 11ª edição, vol. XXIII, pág. 320.
35 Op. cit., pág. 654.
36 Da Doação, Saraiva, São Paulo, 2ª edição, 1972, pág. 250.
37 Orlando Gomes, Op. cit., pág. 212
38 Op. cit., vol. 1, pág. 45.
39Comentários ao Código Civil, Saraiva, 2003, vol. 20, págs. 258 e 264.
40Constituição Federal, art. 37, caput; Lei Federal nº 8.935/1994, artigos 1º e 31, inciso I; Lei Federal nº 6.015/1973, art. 1º.
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* Do 13º Registro de Imóveis de São Paulo
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