O nCC e sua aplicação: do que pouco se tem dito
Jorge Cesa Ferreira da Silva*
O ano de 2002 abriu com um novo Código Civil, dando início a uma produtiva temporada de debates jurídicos. Contudo, paradoxalmente tais debates não se estenderam para a sociedade civil. O novo texto, dedicado a regular relações das
Muito se tem falado de algumas modificações da incorporadas no texto legal. Muitas delas contudo, apesar da importância do seu conteúdo simbólico, pouco ou nada acrescentam ao ordenamento vigente. É o caso da igualdade entre os sexos, já vivenciada desde a Constituição de 1988, ou do abandono do vocábulo "homem" para designar "ser humano". Outras, de impacto um pouco maior, já são também conhecidas, como a diminuição da maioridade civil para 18 anos.
Para além dessas, modificações bem mais profundas passaram quase desapercebidas. Somente para exemplificá-las, pode-se lembrar a inclusão, no início do texto, de importantíssimo trecho dedicado aos direitos de personalidade, que acaba por dar o sentido geral das novas normas, e a superação da visão meramente individualista dos direitos subjetivos para uma visão social e funcionalizada, conectanto, à grande maioria dos institutos, expressa ou tacitamente, o respeito à função social, como é o caso da propriedade, do contrato e da empresa.
Mas ao lado dessas mudanças, que, para facilitar a compreensão, podem ser chamadas de "textuais", o código também muda em outras instâncias, que, para os mesmos fins, podem ser chamadas de "contextuais": mudam os mecanismos de aplicação que, incorporados ou pressupostos, o novo Código porta. O novo Código possui um modo operativo distinto do anterior e, sem compreende-lo, dificilmente se poderá entender a razão e o sentido geral da mudança.
Três elementos desse "pano de fundo" me parecem fundamentais como base de apresentação: o papel que o novo Código se atribui; a utilização das cláusulas gerais como fatores de mobilidade e adequação e a função do culturalismo.
O Código Civil de 1916 não só representava um importante texto de lei, como também um projeto de nação. Pode-se dizer, aliás, que pressupunham um projeto unitário de sociedade, de feições burguesas. Um mesmo projeto não faz o menor sentido na sociedade plural de hoje. O Código de 2002, assim, não se quer porta-voz de um novo projeto de sociedade, tarefa da Constituição, e tampouco o tradutor ideológico dessa sociedade. Assume por missão ser o eixo central do sistema legal de direito privado, de modo a melhor congregar os diversos microssistemas (lei das S/As, CDC, Lei de Locações etc.) entre si e com a Constituição. Nisso se reflete a importância de uma parte geral que se inicia pelos direitos de personalidade e é isso que justifica, por exemplo, a ausência de regras sobre casamento entre pessoas do mesmo sexo ou da regulação da engenharia genética.
Como eixo central, não pode o Código cerrar-se em um dado momento histórico. Para isso, fez-se aberto às mudanças sociais e ideológicas por meio da adoção de cláusulas gerais, modo de legislar pelo qual conseqüências jurídicas são atribuídas a suportes fáticos abrangentes e de conteúdo valorativo. São essas cláusulas gerais o melhor caminho para a incorporação, no tecido normativo, dos preceitos da ética social, sempre mutáveis historicamente. Esses preceitos entram para o sistema jurídico por intermédio do caso, ou melhor dizendo, por intermédio do juiz que valora o caso.
Por constituir um espaço privilegiado para a atuação judicial, o novo Código Civil poderia dar ensejo a um exagero: a possibilidade de um desmedido arbítrio judicial. Contudo, aqui se mostra importantíssima a compreensão de um pano de fundo que perpassa o projeto desde a sua redação primeira, o "culturalismo". Legado de Reale, o culturalismo tem diversos sentidos e alcances, mas é de ser entendido aqui – muito mais do que uma simples dado óbvio dos processos interpretativos – como a verdadeira vinculação do juiz aos padrões históricos e culturais reinantes na sociedade. Exemplificado na expressiva utilização normativa dos "usos e costumes locais", o novo Código impõe ao juiz, sobretudo na aplicação das cláusulas gerais, considerar não somente o momento do caso em si, mas os traços da cultura, que não se desenvolve aos saltos, mas sempre dentro de padrões evolutivos que pressupõem o passado e que sejam capazes de se generalizar dentro de um dado espaço.
Não se trata, vale dizer, de uma barreira evolutiva. Trata-se de fixar padrões para a evolução normativa, padrões esses que partem das nossas raízes culturais ocidental, passam pela influência européia, mas que se focam na realidade brasileira.
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*escritório Veirano Advogados
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