Há poucas semanas, sentada em frente a uma cliente, aparentemente esmorecida com as reiteradas condutas da administração fazendária de violação a seus direitos, ouvi a seguinte indagação, em tom de desabafo, antes do início da reunião.
Por que o Estado pode desrespeitar, reiteradamente, os nossos direitos sem que nada lhe aconteça e, desproporcionalmente, nos cobra tantos deveres? Se não cumprimos nossos deveres, arcamos com consequências severas. Já, para o Estado, não há consequência alguma quando desrespeita os nossos direitos? Como vencer a luta contra um Estado que desrespeita a Constituição do País, despudoradamente por repetidas vezes e até da mesma forma, enquanto nós somos obrigados a respeitar instruções normativas e portarias que a contrariam? Ando cansada de precisar recorrer à Justiça para fazer valer meus direitos – enfatizou.
Os olhos da cliente, presidente de uma empresa que sobrevive há mais de oito décadas, não deixaram transparecer indignação, mas desânimo e descrença.
Tudo isso ocorreu num cenário conhecido por nós advogados que vivenciamos a advocacia tributária. A Secretaria de Finanças do Município de São Paulo editou uma instrução normativa estabelecendo a proibição de autorização para emissão de notas fiscais eletrônicas às empresas que deixaram de recolher o ISS por quatro meses consecutivos ou seis meses alternados. A permissão de autorização para emissão da NF-e somente será concedida após o pagamento dos débitos pelo contribuinte.
Situações em que os contribuintes são facilmente considerados devedores do ISS pela administração fazendária com seu apetite voraz de arrecadar não se apresentam raras, sobretudo porque a referida instrução normativa não menciona a suspensão da exigibilidade do débito como razão para e empresa voltar a ter a autorização para emitir a NF-e.
No caso da cliente, a consternação externada na reunião decorria do fato de a Secretaria de Finanças considerá-la devedora do ISS a despeito de os supostos débitos estarem com a exigibilidade suspensa por decisão liminar.
A Secretaria de Finanças lavrou auto de infração exigindo o ISS dos últimos cinco anos. Vencida na esfera administrativa, a empresa acionou o Poder Judiciário com a pretensão de obter a anulação do auto de infração e, para evitar a cobrança antes da sentença, pediu a prolação de uma decisão liminar. Para que o ISS não continue a ser exigido, pediu, também, decisão liminar de reconhecimento do seu direito até a prolação da sentença.
Foi proferida decisão liminar acolhendo o pedido, de modo que o suposto débito se encontra com a exigibilidade suspensa, o que é suficiente para a empresa não ser considerada devedora.
No entanto, para a Secretaria de Finanças ela é devedora e, nessa condição, por força da Instrução Normativa nº. 19, publicada em 17 de dezembro de 2011, está suspensa a autorização para que emita NF-e até a regularização do débito, ou seja, até o pagamento.
O abatimento causado à cliente por esse entendimento atemorizador da Secretaria de Finanças é fundado, pois a negativa de autorização para emitir notas fiscais eletrônicas constitui impedimento para a empresa desenvolver sua atividade econômica, dado que não poderá mais prestar seus serviços (seus clientes exigem e precisam da NF-e). Como não poderá prestar seus serviços, não terá recursos financeiros para honrar seus compromissos com empregados, fornecedores e com o próprio Fisco.
No entanto, a Secretaria de Finanças, ciente disso, estipulou a solução: as empresas estabelecidas no Município de São Paulo, quando tomarem serviços de empresa domiciliada em seu território que não emitir NF-e em razão da suspensão da autorização para tanto, deverão emitir a Nota Fiscal Eletrônica do Tomador/Intermediário de Serviços – NFTS, reter na fonte e recolher o ISS considerado devido.
Conclusões: (a) a instrução normativa condiciona a autorização para emissão de NF-e ao pagamento do ISS que a Secretaria de Finanças entende devido, mesmo que seja impugnável ou esteja com sua exigibilidade suspensa por decisão judicial; (b) o fato de a empresa não ter autorização para emitir NF-e não a impede de desenvolver suas atividades nem facilita que atue na clandestinidade, pois o tomador emitirá NFTS, reterá o ISS dela considerado devido e o recolherá aos cofres públicos municipais.
Nota-se que a façanha instituída pela instrução normativa nº. 19/2011 apresenta-se perfeita para os interesses arrecadatórios do Município.
Entretanto, esqueceu-se o Secretário de Finanças que somente lei pode criar obrigações, em obediência à Constituição Federal.
A instrução normativa criou três obrigações para o tomador de serviços de empresas impedidas de emitir NF-e: emitir nota fiscal eletrônica do tomador/intermediário de serviços (obrigação acessória); reter na fonte o ISS devido ou supostamente devido (obrigação acessória); e recolhê-lo aos cofres públicos municipais (obrigação principal).
Instrução normativa, nos termos da Constituição Federal, somente pode ser expedida para execução das leis, decretos e regulamentos. A Instrução Normativa nº. 19/2011 criou obrigações não previstas em lei, as quais têm servido ao propósito de ladear para, sub-repticiamente, desobedecer decisões liminares que suspendem a exigibilidade do ISS supostamente devido, o que, também, contraria a Constituição Federal.
Lembremos que lei municipal exige a emissão de nota fiscal pelo prestador de serviços, o que a torna necessária para o livre exercício de atividade econômica, e, contrariamente a essa exigência, foi editada a instrução normativa nº. 19/2011 negando a autorização para sua emissão, o que configura restrição a esse livre exercício.
Mas, importa deixar bem assentado que nem mesmo lei poderia condicionar a autorização para emitir nota fiscal ao pagamento do ISS, em respeito à Constituição Federal.
É preciso ter em mente que se a suspensão de autorização para emissão de NF-e, aparentemente, não impede o desenvolvimento de atividade econômica, dúvida não deixa de que o restringe. E essa restrição corresponde à violação da liberdade de exercício de atividade econômica.
Para além desse fato, a suspensão de autorização para emissão de NF-e consiste em meio coercitivo para exigência do ISS, até mesmo daquele que não é devido.
O meio constitucional para o município exigir ISS devido e não pago é o processo judicial em respeito ao princípio do devido processo legal, com observância do contraditório e da ampla defesa. Recordemos que à administração fazendária, assim como a qualquer pessoa, é vedada, pela Constituição Federal, a autotutela ou a justiça de mão própria.
Condicionar a autorização para emitir nota fiscal ao pagamento do ISS, além de restringir o desenvolvimento de atividade econômica, consiste em fazer justiça com as próprias mãos, o que, sem margem para dúvida, contraria a Constituição Federal, dado que ela entregou a jurisdição (poder de dizer o direito) ao Estado-juiz.
O caso exposto é apenas um exemplo de que vivenciamos, no exercício da advocacia tributária, formas e formas de o Estado vilipendiar a Constituição Federal e, por conseguinte, os direitos dos contribuintes. Uma das mais tradicionais consiste na emissão de atos normativos hierarquicamente inferiores à lei que retiram ou esvaziam direitos. O Município de São Paulo utilizou-se, mais uma vez, dessa prática, a qual, aliás, é prodigalizada pelos entes públicos.
Para além da gravidade de retirarem ou esvaziarem direitos dos contribuintes, essas práticas revelam uma conduta de desdém pela Constituição Federal e pelos pronunciamentos do Poder Judiciário, o que é mais grave e complexo.
Reiteradas vezes, o Poder Judiciário já se pronunciou pela inconstitucionalidade da utilização de meios coercitivos para cobrar tributos considerando que a Fazenda Pública deve fazê-lo por meio da ação de execução fiscal. Entrementes, esses expedientes sempre voltam à cena dos filmes de terror protagonizados pelo Estado com sua sanha arrecadatória.
Não se desconhece que o Estado conta com a aceitação dessas práticas por milhares de contribuintes que, atormentados, pagam, imediatamente, tributos que não são devidos. Além disso, há os que não dispõem de recursos financeiros para custear uma demanda judicial com a pretensão de resguardo de seus direitos.
Um antídoto para conter um pouco esses impulsos transgressores da Constituição diante das ambições arrecadatórias do Estado e coibir a disseminação de tais práticas é a reação, não só por meio de ação judicial para sofrear o ímpeto do Fisco, como também mediante ação para reparar os danos que essas condutas causam aos contribuintes. Se ele não for aplicado em tempo, chegará um dia em que a Constituição não valerá mais nada e todos nós ficaremos à míngua de proteção, subordinados, como servos, a um Estado autoritário e acachapante, que de democrático tem só o nome no papel e no discurso, mas nada deixa a desejar aos mais tiranos governantes do Estado absolutista de antanho. Todavia, a aplicação desse antídoto sozinho não basta. É preciso que essas práticas sejam rechaçadas pelo Judiciário, único órgão dotado de poder para determinar que o Fisco respeite a Constituição Federal e, por decorrência, os direitos dos contribuintes.
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* Maria Ednalva de Lima é advogada do escritório Maria Ednalva de Lima Advogados Associados, especialista em Direito Tributário e Educacional
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