A inocência no Balcão
Cyro Marcos da Silva*
“A criança é julgada pura, inocente, e aquele que descrever as coisas de alguma outra maneira pode ser acusado de ímpio, sacrílego dos ternos e sagrados sentimentos da humanidade.” ( FREUD, Sigmund – “A vida sexual dos seres humanos – Vol. XVI- Amorrortu Editores )
Balcon em francês é terraço, uma varanda, alpendre, suspenso sobre uma fachada de edifício. Em português, lembra mais um lugar onde se compra e vende mercadoria. Naquela época, numa entrevista que fizeram a Jean Genet, este lembrou numa só navalhada, uma dura verdade: “A inocência é perversa”.
Nesta época turbulenta em que estamos vendo as instituições governamentais do país se afundarem numa lama movediça de corrupção, o que se tem ainda tentado salvar é uma célula de inocência, a do mandatário supremo da nação. Se praticou ou não a corrupção com suas próprias mãos, nada disto foi dito. Até agora não há notícia alguma de que a lama tenha chegado ao asssento principal. Muitos ainda têm o presidente como inocente. Pois bem: ainda que o inocente seja aquele que não conhece o nocere , o prejudicar, o mal, conforme nos ensina a etimologia da palavra inocente, sua responsabilidade, por isto, não é nem um milímetro menor daquela que, neste caso, é de lhe ser exigida. Por que? Porque o lugar que Presidente da República é dado sustentar, foi-lhe outorgado por via de um mandato advindo de milhões de votos de confiança que o elegeram para o cargo. Se o Brasil merece coisa muito melhor, é preciso esclarecer primeiramente, que coisa é esta, e ainda: muito melhor do que o que? E ainda se pode perguntar: de onde, de quem, de que posição, viria até o Brasil esta tal coisa melhor que ele estaria a merecer?
Há algum ato da parte do chefe da nação, no sentido de fazer com que se possa pelo menos ter uma idéia de qual seria o mérito do Brasil? Ou seremos forçados a pensar que a tal coisa melhor seria apenas um devaneio de palácios europeus, cenários de fantasioso clima de perfeição de corte imperial, onde o deslumbramento de valsas – ou de canções juninas - continue sempre a tocar enquanto o TITANIC afunda?
Voltemos a LE BALCON ( ou ao balcão )e lembremo-nos que nesta peça, um bordel abriga, maternalmente, aqueles inocentes senhores do povo, que ali se instalam algumas horas, travestindo-se das mais significativas insígnias de um Estado ( de juiz que condena, general que comanda e bispo que perdoa ). Ali no bordel reina, o tempo todo, a absoluta, monótona, severa e rígida ordem de uma cena inalterável para que o desfrute, o gozar, não se abale nem se atrapalhe com as mazelas da vida diária. Enquanto isto, narra esta peça teatral, do lado de fora o mundo está caindo, as instituições todas postas na berlinda.
Será que alguém, que ficou detido pela fantasia, deslumbrado com a roupagem da mesma, dela já gozando há algum tempo no calorzinho do quarto de um bordel, conseguirá, do lado de fora, onde aí sim, está uma verdadeira zona, enxergar o perigo e o tamanho da fantasia e fazer funcionar um trabalho?
Será que no final desta história teremos o que teve o final do Balcão de Genet?
Qual o final?
Ah....é preciso ler a peça.
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* Magistrado aposentado, atualmente psicanalista
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