Migalhas de Peso

O coronel Adamastor

Um assassinato seguido de suicídio no dia do Natal. Um condomínio repleto de crianças e um coronel, de pejo para lá de duvidoso, vestido de Papai Noel. Apesar da tragédia dos primeiros parágrafos, a crônica termina em comédia.

23/2/2012

José Geraldo da Fonseca

O coronel Adamastor

Zezinho tinha exatos quatro anos quando o coronel Adamastor bateu as botas. Me lembro como se fosse hoje. Era dia de Natal, por volta das nove, nove e pouco da noite.

Pum!Pum!

Dois tiros vindos do apartamento do coronel selaram a paz e o caos no bloco dois. A vizinha de porta deu um berro, desesperada, e uns condôminos voaram pra lá pensando que tinha explodido um bujão de gás. Chutaram a porta e deram de cara com Gracinha, com quem o coronel vivia há quatro ou cinco anos, debruçada pelada no vaso do banheiro, um buraco do tamanho de uma goiaba varando da nuca à testa, e o coronel esparramado de barriga pra cima na cama do casal, ainda com a roupa de Papai Noel. Tinha os olhos esbugalhados no teto e o Smith & Wesson 45 na mão, caído displicentemente sobre o travesseiro ensopado de sangue. O tiro foi dado de dentro da boca. Varou o olho esquerdo, arrancando a tampa da cabeça e grudando um chumaço de cabelo branco na cabeceira da cama de jacarandá maciço.

Deus que me livre do fogo dos infernos, mas a morte do coronel foi um alívio para o condomínio. Era um chato! Por volta das cinco da madrugada, o puto saia à varanda, sem camisa e com aquele barrigão de fora, e tocava a "alvorada" com uma corneta toda amassada que dizia dos tempos do "glorioso 5º BI", o batalhão de infantaria de que se orgulhara de ter pertencido. Ninguém aguentava aquela merda, mas o sujeito era um dos mais antigos moradores do prédio e todo mundo que comprava ou alugava apartamento por ali era logo avisado daquele estrupício. Descobriu-se, muito tempo depois, que seu sobrenome não era "Salvatore" coisa nenhuma, mas "Salvador". A sua fina linhagem siciliana foi por água abaixo quando recebeu uma intimação da 2ª Vara Criminal para responder à acusação de homicídio. O porteiro recebeu o Oficial de Justiça e disse que ali não morava nenhum "Salvador". O meirinho voltou ao Cartório, mas o Dr. Guilherme Peçanha insistiu na intimação. Foram lá o meirinho e uma guarnição da Polícia Militar. Um cabo e dois soldados. Interfonaram, e o coronel Adamastor teve de descer pra assinar a contrafé. Quando apresentou o erregê, o porteiro Raimundo viu que estava escrito "Adamastor Salvador da Silva", e não "Salvatore", como o militar gostava de ser chamado. A indiscrição do Raimundo correu de boca em boca pelo prédio feito notícia ruim e logo alguém escarafunchou a vida do coitado até descobrir que o brioso coronel não era coronel coisa nenhuma! Nunca fora. O pai tinha sido soldado raso da antiga Força Pública, e o filho herdara o gosto pela caserna. Como tinha pé-chato, fora dispensado do serviço militar no Tiro de Guerra da cidade. Quando Adamastor se mudou com Gracinha para aquele condomínio, o pai já era falecido, e o sujeito, pra botar banca nas reuniões do prédio, apresentou-se ao síndico como "coronel". Foi pela patente de coronel que se elegeu membro do Conselho Consultivo. Nunca quis ser síndico. Falsamente modesto, dizia que a sindicatura era a mais nobre patente na hierarquia de um prédio, e não era tarefa para um simples coronel que, como ele, mal tinha umas duas ou três medalhinhas por atos de bravura. Com isso, não assumia encargo nenhum e se livrava das taxas condominiais, que, a julgar pela decadência do prédio, estavam pela hora da morte.

Enquanto a farsa da patente existiu, o coronel deliciava a criançada e os pinguços da cantina contando lorota dos tempos em que sua família se metera com a máfia em Palermo, no sul da Itália. Dizia que o pai fugiu para o Brasil depois de um entrevero com Totó Riina, o capo que dominava o comércio de enxofre e citrino no cais de Palermo e pretendia espalhar o negócio até Nova Iorque, onde se associaria a ninguém menos que Al Capone. Como a família se recusara a ceder parte dos limoeiros de Ciaculli para Don Vito Caló construir uma pista de pouso para o tráfico de heroína, incendiaram a plantação de madrugada e mandaram para sua mãe um par de sapatos de homem com os cadarços cortados. Isso, segundo contava, era o recado da máfia de que sentença de morte do marido tinha transitado em julgado. Provavelmente, o coronel não sabia nem onde ficava Palermo, e tudo o que sabia sobre a máfia era por ouvir dizer.

Gracinha tinha sido a acompanhante doméstica de dona Henriqueta, a primeira mulher do coronel, única filha de um atacadista de cereais do Mercado Municipal da cidade onde Adamastor morara. Trinta anos mais jovem que o coronel, era o sonho de consumo da homarada do prédio. E sabia disso. Adamastor tinha sido um simples auxiliar administrativo do antigo INAMPS, e um dia Henriqueta aparecera por lá na flor dos seus vinte anos procurando informação sobre um seguro enorme que o pai deixara para ela antes de morrer. Não se sabe ao certo como foi que Adamastor enrolou Henriqueta, mas o fato é que se casaram. Não tiveram filhos. Diziam que Adamastor era impotente. Assim que dona Henriqueta adoeceu por causa de uma nefrite, Adamastor contratou Gracinha para ajudar nos cuidados da mulher. Lá um dia, a mulher morreu e o Adamastor foi receber o tal seguro. Não se sabe por que cargas d’água o pessoal da seguradora passou a desconfiar da morte de dona Henriqueta. Adamastor contratou um primo advogado e entraram com ação contra a seguradora pra receber a bufunfa. A meio caminho, o juiz mandou exumar o cadáver de dona Henriqueta e descobriu o fígado e os rins entupidos de vidro moído. Adamastor passou de autor a réu no processo e a coisa foi parar na 2ª. Vara Criminal, agora presidida pelo Dr.Guilherme Peçanha.

Já que Gracinha estava por ali, por ali ficou. Passou a ocupar o lugar de dona Henriqueta. Vizinhança, todo mundo sabe, é coisa muito maldosa, e logo Adamastor começou a se sentir incomodado com os olhares suspeitosos no elevador, na piscina, no salão de festas. Mudou-se dali com Gracinha e foi sentar praça no condomínio onde o Zezinho morava. Zezinho era um molequinho feliz, magrelinho mas muito boa gente. O pai, Zé Carlos, era auxiliar de contabilidade da Petrobrás. Era casado com Dagmar, que tinha sido recepcionista do DETRAN até engravidar do Zezinho. Gravidez de risco, deixou o emprego e passou boa parte dos nove meses com o pé pra cima, deitada no sofá vendo Ana Maria Braga, Jacinto Figueira Junior e Vigilante Rodoviário. O menino nasceu prematuro, esmilinguido, mas logo ganhou sustança e deu de correr solto pelo prédio, fazendo as traquinagens próprias da sua idade.

Três vezes por dia, duas pela manhã e uma à noite, depois do Jornal Nacional, ninguém na vizinhança ficava em paz com os gemidos e urros do coronel. "Ai, Gracinha, ai Gracinha! Assim você me mata! Vai mais devagar! Vai mais devagar!" Aquilo incomodava as mulheres bem casadas, que só trepavam uma vez por mês, assim mesmo por obrigação, e despertava a libido dos machos mal-comidos do prédio. Morriam de inveja do coronel. Quem se julgasse meio homem no condomínio comia a Gracinha com os olhos quando ela passava, toda serelepe, na direção do mercadinho pra comprar gincobiloba para a canja do coronel. As mulheres achavam os gritos do coronel uma imundície, e passaram a evitá-lo até mesmo no elevador de serviço. O que ninguém sabia é que o coronel Adamastor era impotente e tinha hemoróidas, e cagar, pra ele, era um sacrifício de dar pena. E o diabo é que o sujeito cagava três vezes por dia, religiosamente, dia após dia, duas de manhã e uma à noite, após o Jornal Nacional. E Gracinha, pobrezinha, tinha de devolver as tripas ao cu do coronel com os dedos, uma a uma, daí a gritaria do militar que o pessoal do prédio jurava que era fornicação.

De uns tempos para cá, mais ou menos na época em que a barriga do coronel deu de crescer além da conta, o síndico convidou-o para ser o Papai Noel do prédio. Aposentado, o homem aceitou, e todo ano, no dia 25, lá ia o Adamastor se arrastando pelo play, fingindo-se mais velho do que já era, levando às costas um sacão de presentes comprados pelos pais, a fazer a alegria da criançada.

Por causa dos "ai, Gracinha! Assim você me mata!", todo santo dia, três vezes por dia, duas pela manhã e outra à noite, depois do Jornal Nacional, as mães zelosas passaram a proibir que suas filhas recebessem presentes do seu Adamastor. É que o pobre oficial cumpria rigorosamente o script de um bom Papai Noel de shopping, e botava as crianças no colo pra perguntar se tinham estudado direitinho, se respeitaram a mamãe, se cuidaram bem do condomínio, essas coisas. As mães tinham medo de que coronel Adamastor bolinasse as suas filhas e a entrega de presentes na véspera do Natal ficara mesmo restrita aos meninos, que nunca sentavam no colo do bom velhinho. Pegavam os presentes e saiam voando dali. Pois foi num evento desses que o Zezinho achegou-se ao bom velhinho e ficou ali, tristinho, mirradinho, esperando o homem retirar do saco o presente que fizera por merecer. O coronel Adamastor viu o menino aproximar-se, ressabiado, botou o guri sentado na sua perna, e lhe disse:

— Como é o seu nominho, meu amiguinho?

— José Carlos Sobral Cerqueira — respondeu-lhe o menino, assim, completinho, como lhe ensinaram em casa—. Mas o senhor pode me chamar de Zezinho.

— Muito bem, Zezinho — disse-lhe o coronel —. Pela sua carinha eu sei que você é um menino muito educadinho e obedece à mamãe e ao papai. Aqui está o seu presentinho.

— Muito obrigado, Papai Noel — respondeu-lhe o Zezinho —. Mas hoje é meu aniversário, e o presente que eu queria era outro.

— Não me diga, Zezinho! Parabéns! Quantos aninhos você faz? E o que você gostaria de ganhar? Talvez o Papai Noel até tenha...

— Na verdade, Papai Noel, eu queria pedir pro senhor pedir alguma coisa pra mamãe...

— Claro, Zezinho! Claro! Pra mamãe? O que é que você quer que o Papai Noel peça pra mamãe? Diga! Diga que o Papai Noel pede!

— Eu queria que o senhor pedisse pra mamãe desistir de se separar do papai e não mandasse ele embora de casa...

— Eu peço, Zezinho. Juro que peço! Mas me diga: por que a mamãe quer se separar do papai?

— Não sei direito. Ontem à noite eles brigaram feio e a mamãe até jogou o ferro elétrico na cara do papai e mandou ele sumir de casa senão de noite ela ia cortar o pinto dele...

— Oh, meu Deus! — indignou-se o bom velhinho — Isso não se faz! E por que a mamãe fez isso?

— Bem. Eu fingi que tava dormindo enquanto ele brigavam e ouvi a mamãe dizer que ela ia cortar o bilau dele porque tinha descoberto que faz mais de um ano que o papai anda comendo a Gracinha, mulher do colonel Adamastor...

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* José Geraldo da Fonseca é desembargador, presidente da 2ª turma do TRT-RJ

 

 

 

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