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O projeto de (re)codificação do Direito Comercial brasileiro

O texto, além de conter inúmeras deficiências, não consegue satisfazer nenhum dos objetivos a que se propõe.

15/2/2012

Alfredo Sérgio Lazzareschi Neto

O projeto de (re)codificação do Direito Comercial brasileiro

O amplo debate de ideias e a divergência de opiniões são instrumentos fundamentais de qualquer democracia participativa. Quem quer ostentar a honra de ter um projeto de lei de sua autoria debatido pela sociedade deve examinar com objetividade as críticas recebidas e colocar-se à disposição para discutir a fundo suas ideias.

À luz disso, aqui vão algumas breves anotações sobre o Projeto de Código Comercial elaborado pelo prof. Fábio Ulhoa Coelho. Antes de passar às críticas, presto homenagens ao autor do Projeto, ilustre professor com conhecimento jurídico tão amplo e eclético que possui obras publicadas em praticamente todas as áreas do Direito privado.

Segundo a exposição de motivos do Projeto, os objetivos do novo Código são "reunir num único diploma legal, com sistematicidade e técnica, os princípios e regras próprios do Direito Comercial", "simplificar as normas sobre a atividade econômica, facilitando o cotidiano dos empresários", bem como eliminar lacunas quanto à "inexistência de preceitos legais que confiram inquestionável validade, eficácia e executoriedade à documentação eletrônica, possibilitando ao empresário que elimine toneladas de papel", de modo que o Projeto – diz a exposição de motivos – se justificaria "também sob o ponto de vista da sustentabilidade ambiental" (sic).

O Projeto, contudo, além de conter inúmeras deficiências, não consegue satisfazer nenhum daqueles objetivos.

Promete preencher lacunas, mas não disciplina vários contratos empresariais relevantes, tais como alienação fiduciária em garantia, concessão comercial, arrendamento mercantil, crédito documentado, faturização, fiança e penhor mercantil, abertura de crédito, conta corrente, financiamento à exportação, cartão de crédito, contrato de câmbio, construção por encomenda ("built to suit"), dentre outros.

Além disso, apesar de anunciar a unificação do regime de títulos de crédito, o Projeto surpreendentemente não cuida do cheque, das cédulas de crédito rural, comercial e industrial, da cédula de crédito à exportação, do certificado de depósito agropecuário, da cédula de crédito bancário, da cédula de crédito imobiliário etc.

Ou seja, o Projeto está longe de unificar qualquer coisa, em especial as regras próprias do Direito Comercial no tocante a contratos empresariais e títulos de crédito, parecendo muito mais uma consolidação parcial de ideias esparsas do que um código sistematizado.

Como se isso não bastasse, também não simplifica as normas sobre a atividade econômica, uma vez que propõe lamentável retrocesso ao pretender cindir o Direito obrigacional. De fato, apesar da oposição de alguns doutrinadores à unificação do Direito privado por ocasião das discussões do novo Código Civil, pelo menos à época houve consenso quanto à unificação do Direito obrigacional, em virtude da dificuldade existente para se determinar a lei aplicável (Código Civil ou Comercial) a certos contratos de acordo com a atividade (empresarial ou não) exercida pelos contratantes.

O Projeto contém inovações inconcebíveis para o Direito Societário. Põe em xeque, por exemplo, o voto múltiplo – importante instrumento que possibilita a participação de acionistas minoritários na administração das companhias –, já que deixa a sua existência a critério do estatuto (e, portanto, do controlador). A justificativa do prof. Fábio Ulhoa Coelho para essa alteração no sistema vigente é que a utilização do sistema de voto múltiplo seria aritmeticamente inviável, conforme consta da gravação da audiência pública ocorrida no dia 2 de dezembro de 2011 no auditório da AASP.

Mas como poderia a utilização do voto múltiplo ser "aritmeticamente inviável" se o sistema é aplicado diariamente em centenas de companhias abertas e fechadas há mais de 35 anos?

Além disso, apesar de o prof. Fábio Ulhoa Coelho dizer que não vai alterar a disciplina das sociedades anônimas, a verdade é que o Projeto pretender modificar todo o regime de "operações societárias" (transformação, incorporação, fusão e cisão), conforme o disposto nos arts. 240 a 267, que se aplicam também às companhias.

Quanto à validade da documentação eletrônica – justificativa para a "sustentabilidade ambiental" do Projeto –, além de a questão ter sido tratada na Medida Provisória 2.200/01 (em vigor), e ser objeto de vários outros projetos de lei em tramitação no Congresso, não há razão alguma para criar regime exclusivo da matéria para o empresariado. A questão deve ser regulada de forma uniforme para todos os cidadãos, empresários ou não.

Tendo em vista os vários defeitos estruturais do Projeto, passou-se então a sustentar que o Código proposto seria meramente "principiológico". Contudo, a despeito do esforço da doutrina comercialista mundial, nenhum país jamais conseguiu a autêntica façanha de reunir num único lugar, de forma completa e sistematizada, os princípios das várias e complexas áreas do Direito Comercial, parecendo que se quer transformar essa iniciativa legislativa na mais nova jabuticaba nacional.

Mas até nos princípios o Projeto comete falhas. Com efeito, como "princípio do Direito Comercial Societário", estabelece a "subsidiariedade da responsabilidade dos sócios pelas obrigações sociais", regra que, mal posta como está no Projeto, poderá ser utilizada como o "argumento que faltava" para que se impute de vez aos sócios a responsabilidade pelo pagamento de todas as dívidas da sociedade, podendo atingir até mesmo acionistas de companhias abertas, com resultados nefastos para a economia nacional e o mercado acionário.

Além disso, o Projeto simplesmente não trata de inúmeros outros princípios de Direito Societário igualmente relevantes, tais como igualdade de tratamento entre acionistas da mesma classe, intangibilidade do capital social, irrevogabilidade das prestações dos sócios, realidade do capital social, sanação dos defeitos das deliberações sociais etc.

Infelizmente tem mais. No art. 657 do Projeto está prevista a curiosa figura do "facilitador". Em breves palavras, o juiz de qualquer processo poderá nomear um "facilitador" quando for "complexa" a questão discutida, de fato ou de Direito, ou no caso de "processo volumoso". Diz o § 3º do art. 657 que "o facilitador entregará ao juiz, no prazo por este assinalado, relatório com a síntese da lide, principais argumentos aduzidos pelas partes, provas produzidas e demais elementos que permitam a completa compreensão da demanda". Isto é, ao facilitador competiria ler todo o processo, analisar os argumentos das partes e elaborar o relatório da sentença, cabendo ao magistrado tão somente redigir a fundamentação e o dispositivo.

Como conceber que o relatório da sentença – cuja extrema relevância é enfatizada nos bancos da faculdade – seja entregue a um terceiro (que, dado o silêncio do texto, sequer formado em Direito precisa ser)? Quando será "complexa" uma questão de Direito Mercantil a ponto de o juiz poder ser desincumbido da obrigação de relatar o que vai julgar, decidindo sobre o que um terceiro lhe escreveu? Além de inconstitucional – porque a regra autoriza a terceirização de parte substancial da atividade jurisdicional –, tal instituto não é próprio de um Código Comercial.

O legislador brasileiro precisa agir com responsabilidade e seguir o exemplo dos países civilizados: devemos antes de tudo aprender a aperfeiçoar aquilo que temos – o Código Civil e a legislação civil e comercial extravagante. Como bem disse o grande jurista Orlando Gomes, "inovar não significa amor indiscriminado à novidade, senão aproveitamento da experiência de outros povos e da própria experiência nacional condensadas na doutrina e na jurisprudência".

O Projeto foi redigido pelo prof. Fábio, e só por ele: não contou com a participação da comunidade jurídica. Sem nenhuma discussão prévia, está tramitando na Câmara a toque de caixa. Não houve a colaboração de juristas, advogados militantes, magistrados e empresários. Como bem lembrou o prof. Erasmo Valladão França, nem mesmo o extraordinário jurista Miguel Reale teve a veleidade de redigir sozinho o anteprojeto do Código Civil de 2002.

As raras leis pátrias que primam pela excelência não foram gestadas no curso do processo legislativo; resultaram de amplo debate e do indispensável processo de amadurecimento. Justamente por isso a comunidade jurídica não vê com bons olhos a realização de audiências públicas destinadas a dar mera aparência de participação da sociedade, para com isso tentar legitimar fatos já consumados.

Cumpre por fim registrar que, ao contrário do que vem noticiando a imprensa, o Conselho Superior de Assuntos Jurídicos e Legislativos (CONJUR) da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo – FIESP manifestou-se favoravelmente à edição de um novo Código Comercial, não tendo em momento algum debatido o Projeto elaborado pelo prof. Fábio Ulhoa Coelho.

Trata-se, pois, de Projeto com vários equívocos, alguns irreparáveis, e que não serve nem mesmo para atingir as finalidades por ele mesmo proclamadas, com desdobramentos calamitosos para o país e, fundamentalmente, para o nosso mercado de capitais.

___________

* Alfredo Sérgio Lazzareschi Neto é advogado, conselheiro do CONJUR da FIESP, Vice-Presidente da Comissão de Mercado de Capitais e Governança Corporativa da OAB/SP, e autor do livro "Lei das Sociedades por Ações Anotada".

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