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Assinatura digital na lei baiana de processo administrativo

"Finalmente, temos lei geral para o processo administrativo na Bahia", comemora o causídico. Porém, além de aplausos, a lei estadual baiana 12.209/11 merece reflexões mais detidas, já que causa preocupação a definição de "assinatura digital".

7/2/2012

Henrique Silva de Oliveira

Assinatura digital na lei baiana de processo administrativo

Finalmente, temos lei geral para o processo administrativo na Bahia. Publicada na véspera dos 511 anos do Descobrimento, e objeto de inspiradas palestras promovidas pela Procuradoria Geral do Estado, a lei estadual 12.209 segue a trilha de diplomas legais editados por outros entes da federação, a exemplo da lei paulista 10.177 (de 1998) e da lei federal 9.784 (de 1999). A lei baiana chega após sedimentação na cultura jurídica do país de que dispor o estado membro sobre processo administrativo não fere o art. 22, inc. I, da Constituição Federal.1 2

Os três atos normativos mencionados acima guardam evidente afinidade com o Código de Procedimento Administrativo da República Portuguesa (dec.-lei 442, de 15/11/1991): trazem disposições vagas, recheadas de menções a princípios, com o propósito assumido de limitar os poderes das autoridades, viabilizar o exercício de direitos e garantias individuais e orientar administração e administrados à prática de atos processuais. Tudo isso de uma maneira generalista, sem que se afastem disposições procedimentais especiais (como as do processo administrativo fiscal, por exemplo).

A lei baiana traz alguns diferenciais dignos de elogios. Por exemplo, menciona a arbitragem (art. 182), filiando-se à corrente que estimula métodos extrajudiciais de resolução de disputas que envolvam o Poder Público. Também introduz, e nisso expende quase dez por cento de seus artigos, regras atuais sobre "o uso da tecnologia de informação e comunicação no processo administrativo". Praticamente conclama o Estado a direcionar seus investimentos para a modernização de seu aparato procedimental.

Os propósitos dos cento e noventa e cinco artigos da lei merecem aplausos. Merecem, também, reflexões mais detidas. Dentre elas, e no contexto das inovações tecnológicas anunciadas, causa preocupação a definição de "assinatura digital" presente no artigo 86, inciso III:

Art. 86 - Para os fins desta Lei, considera-se:

(...)

III - assinatura eletrônica: as seguintes formas de identificação inequívoca do signatário:

a) assinatura digital baseada em certificado digital emitido por Autoridade Certificadora credenciada, na forma de lei específica; (...)

A razão de nossa apreensão é que o diploma cuida de definir matéria de competência da União, já que assinatura é o meio pelo qual se confere autenticidade a documentos particulares e públicos, e é matéria de cunho eminentemente cível. É de competência privativa da União , já exercida tanto do ponto de vista normativo quanto do ponto de vista material-administrativo, ao instituir e aparelhar a Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira (ICP-Brasil).3

O que significar "autoridade certificadora credenciada, na forma de lei específica" (grifamos)? Observe-se que autoridade certificadora (AC) e a autoridade de registro (AR) são, por definição de lei federal, instituições credenciadas no âmbito do ICP-Brasil4. Portanto, ou a expressão é redundante, ou o legislador estadual pretendeu criar a possibilidade de o Estado da Bahia editar lei sobre credenciamento, além de credenciar e descredenciar ACs e ARs. Em outras palavras, teria o Estado da Bahia a faculdade de não reconhecer o credenciamento realizado no âmbito do ICP-Brasil.

Ora, o Estado não pode rejeitar ACs e ARs sem desrespeitar as regras do ICP-Brasil. Essas "autoridades" integram um sistema público centralizado, que tem como "primeira autoridade da cadeia" a autoridade certificadora raiz (AC-Raiz). Essa, por sua vez, detém tal prerrogativa na condição de executora do comitê gestor do ICP-Brasil. O referido comitê congrega representantes de órgãos e entidades legitimados técnica, política e juridicamente para exercer tal missão, em âmbito nacional.

Além disso, arquitetura organizacional do ICP-Brasil encontra-se plasmada em ato normativo5 editado por órgão da União, no exercício de competência legislativa privativa para dispor sobre a autenticidade de documentos públicos e particulares. Matéria de Direito Civil, portanto.

Não se trata de filigrana jurídica. Temos acompanhado movimento crescente em prol da digitalização da atividade procedimental do Estado, não somente na esfera jurisdicional (PROJUDI, e-PJ etc.), mas principalmente (e de forma ainda mais dispersa) no âmbito do Poder Executivo. Apesar da lei recente, o Estado da Bahia há muito adota meios eletrônicos em seu regulamento dos processos administrativos fiscais6, cujas disposições, em nossa opinião, permanecem inalteradas com a edição da nova lei. A SEFAZ/BA segue a direção da Receita Federal do Brasil (RFB), embora por caminhos um tanto distintos, já que esta adota o ICP-Brasil para as práticas fiscais mais rotineiras e caminha para a digitalização de todos os seus processos administrativos tributários com o projeto chamado e-processo, sempre utilizando os mecanismos do ICP-Brasil.

Preocupa-nos que os administrados passem a ter que utilizar mais de um modelo de assinatura digital, operacionalizado por ACs diversas, apenas para atender ao credenciamento deste ou daquele ente político, deste ou daquele órgão ou entidade. Em outras palavras, o receio é de que, em lugar de se seguir o caminho da dinamização da atividade da Administração Pública, essa exigência burocratize o procedimento e traga ainda mais custo ao cidadão.

Nossa preocupação se replica em todas as instâncias processuais, mesmo no âmbito do Poder Judiciário na sua tarefa de dar efetividade à Lei do Processo Eletrônico7. Ou se adota o sistema de credenciamento único pelos órgãos do Poder Judiciário, conforme previsto na lei8, ou se adota o credenciamento de forma irrestrita, pelos modelos desenvolvidos por qualquer AC integrante do ICP-Brasil.

Assim, nas entrelinhas da recente legislação processual da Bahia, é necessário que se deixe transparecer uma política pública clara, que privilegie as estruturas já há algum tempo assentadas – as quais, com grande dose de sabedoria, mantiveram-se calcadas em um modelo centralizado. Do contrário, além da ofensa a lei federal (a Lei do ICP-Brasil, editada via medida provisória, mas que possui eficácia de lei ordinária) e à regra constitucional de reserva de competência, corre-se o risco de se onerar excessivamente, uma vez mais, o cidadão que pretende cumprir corretamente com suas obrigações acessórias.

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1 Desconhecemos maior problematização da questão. Em julgados como o da ADI 2374 (Relator Min. Gilmar Mendes, Tribunal Pleno, julgado em 06/10/2004, DJ 16-02-2007 PP-00019 EMENT VOL-02264-01 PP-00100 LEXSTF v. 29, n. 346, 2007, p. 51-71), a questão foi tratada de forma periférica.

2 Art. 22, inc. I, da Constituição da República: "Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre: I - direito civil, comercial, penal, processual, eleitoral, agrário, marítimo, aeronáutico, espacial e do trabalho; (...)" - grifamos.

3 O marco legal do ICP-Brasil é a Medida Provisória nº 2.200-2, que fez dez anos em 24 de agosto último.

4 Arts. 6º, caput, e 7º da Medida Provisória nº 2.200-2/2001.

5 Art. 10 da Medida Provisória nº 2.200-2/2001.

6 Dec. 7.629, de 9.7.199, que aprova o regulamento do processo administrativo fiscal (RPAF) e contém disposições esparsas sobre o processamento eletrônico de documentos, a comunicação e a prática de atos processuais.

7 Lei nº 11.419, de 19.12.2006, cujo art. 1º, inc. III, parece ter sido a fonte da redação truncada do art. 86 da Lei Baiana nº 12.209/11.

8 Art. 2º, § 3º, da Lei nº 11.419, de 19.12.2006.

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* Henrique Silva de Oliveira é sócio do escritório Trigueiro Fontes Advogados

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