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O Conselho Nacional de Justiça e o Poder Ilimitado da Burocracia

Sobre o imbróglio acerca dos limites do CNJ, o advogado enfatiza que, de acordo com a Constituição, o CNJ deve se manter no exercício exclusivo de sua competência de natureza administrativa, e não mais que isso. Para ele, o CNJ vem extrapolando sua competência. E, em comovente desabafo, esclarece que : "com 72 anos de idade e 50 deles dedicados, de forma exclusiva ao Direito e à Justiça, não poderia calar-me diante de tanto absurdo".

23/12/2011

Ovídio Rocha Barros Sandoval

O Conselho Nacional de Justiça e o poder ilimitado da burocracia

O Conselho Nacional de Justiça teve ingresso na Constituição Federal vigente pela Emenda Constitucional n. 45 de 2004 (clique aqui).

Passou a figurar no art. 92 da Constituição da República (clique aqui), logo depois do Supremo Tribunal Federal e acima do Superior Tribunal de Justiça, como órgão do Poder Judiciário.

Estranhíssima posição constitucional conferida a um órgão, essencialmente administrativo e burocrático que, por sua natureza jurídica, não exerce qualquer atividade jurisdicional ou judiciária, vir a ocupar o segundo lugar na hierarquia entre os órgãos do Poder Judiciário.

O Conselho Nacional de Justiça, embora integrante do Poder Judiciário da União não possui o exercício de atividade jurisdicional, privativa dos tribunais, dos juízes de primeiro grau de jurisdição e de outros órgãos judiciários.

Logo, a atividade de referido Conselho tem natureza administrativa. Não legisla, porque não faz parte do Poder Legislativo. Muito menos possui competência constitucional para se imiscuir em matérias da alçada dos Estados, ferindo de morte o pacto federativo.

Todavia o Conselho Nacional de Justiça, no exercício de sua atividade administrativa, vem extrapolando, para ingressar na criação de direito novo, lançando às urtigas as regras próprias de sua competência, chegando ao cúmulo, em diversas oportunidades, de derrogar situações jurídicas sedimentadas com base nas leis vigentes à época em que foram criadas, definidas e constituídas.

A atuação do Conselho Nacional de Justiça está colocando às claras o que, antes de sua criação, seus corifeus procuravam fingir esquecer: "a verdade elementar de que o controle administrativo implica o controle do poder" e "quem controla a burocracia de um poder ou de um órgão, ou instituição, controla, direta ou indiretamente, toda sua cadeia de decisões".1

Toda "burocracia é dominante e a dominação anônima dos burocratas" foi observada por Max Weber que nos ensinou: "a burocracia tem poder predominante e, na medida em que pode, oculta-se da crítica", "mantendo secretos seu conhecimento e intenções", e, "para quem o controla, o aparato burocrático é um instrumento de poder de primeira ordem".2

O colendo Supremo Tribunal Federal deixou clara a natureza jurídica do Conselho como órgão administrativo. Com efeito, em voto vencedor superiormente fundamentado do eminente Ministro Celso de Mello restou decidido: "o Conselho Nacional de Justiça, embora integrando a estrutura constitucional do Poder Judiciário como órgão interno de controle administrativo, financeiro e disciplinar da magistratura – excluídos, no entanto, do alcance de referida competência, o próprio Supremo Tribunal Federal e seus Ministros (ADI 3.367/DF - clique aqui) -, qualifica-se como instituição de caráter eminentemente administrativo, não dispondo de atribuições funcionais que lhe permitam, quer colegialmente, quer mediante atuação monocrática de seus conselheiros ou, ainda, do Corregedor Nacional de Justiça, fiscalizar, reexaminar e suspender os efeitos decorrentes de atos de conteúdo jurisdicional emanados de magistrados e tribunais em geral".3

Sua competência está delimitada na Constituição. Logo não pode o Conselho Nacional de Justiça, em nenhuma de suas atribuições, afrontar a Constituição, a Lei e aos princípios da Federação e da razoabilidade, quanto aos atos que se incluem em sua competência constitucional.

Com toda a razão, o eminente Ministro Marco Aurélio questionou, com a segurança própria dos verdadeiros e destemidos Juízes, o poder do Conselho Nacional de Justiça de administrar o Judiciário.4

Ademais, o Conselho Nacional de Justiça, em diversas oportunidades, puniu magistrados estaduais com suspensão "ab initio" do exercício do cargo, desrespeitando a competência censória primária das Corregedorias dos Tribunais dos Estados da Federação.

O Conselho Nacional de Justiça instaura procedimento administrativo disciplinar (PAD) sem a observância da obrigatoriedade da prévia apreciação dos fatos pela Corregedoria do Tribunal de Justiça a que pertença o magistrado.

Tal prática utilizada pelo Conselho "implica revelar que houve ferimento ao sagrado princípio constitucional do devido processo legal", na certeira dicção do eminente Ministro Celso de Mello, em recente decisão monocrática.5

Na apreciação da atuação do órgão administrativo no controle do "cumprimento dos deveres funcionais dos juízes" (CF, art. 103-B, § 4º.) é necessária a transcrição de alguns trechos da respeitável decisão do eminente Ministro Celso de Mello.

Em sua fantástica decisão, o eminente Ministro rememora decisão que "pôs em destaque o relevo do postulado da subsidiariedade, invocando como fator de harmonização de importantes postulados constitucionais em situação de conflito como o que se registra entre a autonomia dos Tribunais, a um lado, a jurisdição censória do Conselho Nacional de Justiça, de outro".6

Somente diante da aceitação da competência relativa do Conselho Nacional de Justiça, como magistralmente exposta pelo eminente Ministro Celso de Mello, será possível harmonizar-se o postulado da garantia constitucional do autogoverno da Magistratura e prestigiar, em realidade, o princípio angular da Federação.7

O Conselho Nacional de Justiça deve manter-se no exercício exclusivo de sua competência constitucional de natureza administrativa e dentro dos limites fixados no art. 103-B da Constituição da República. Em sua competência constitucional não se inclui, como não poderia ser incluída, atividade censória disciplinar primária junto às Justiças dos Estados e, se por acaso, vier a ser exercida haverá quebra do princípio basilar do Federalismo que se constitui em cláusula pétrea da Constituição brasileira.

Duas recentes decisões do Supremo Tribunal Federal reafirmam o entendimento assente de ser o CNJ um simples órgão administrativo e burocrático e, em certa medida, proclamando que o CNJ não tem competência para legislar, muito menos existe possibilidade de substituir-se ao legislador, devendo respeito estrito à Constituição com o dever de atuar dentro da competência que o texto constitucional lhe confere. Em outras palavras, ressalvadas as funções que a Constituição lhe atribui, não pode o Conselho Nacional de Justiça, como a prática de sua atuação demonstra, exorbitar daquelas funções e, no caso, lembra excesso similar em relação à obra do pintor Apeles, praticado por um sapateiro que, após tecer críticas às sandálias do guerreiro numa pintura e ver corrigido o defeito, ousou fazer observações à lança contida da pintura. E, como o crítico do pintor clássico da Grécia antiga, merece o referido Conselho aqui e agora a mesma repulsa: "Não suba o sapateiro além das sandálias!"

A atual Ministra Corregedora Nacional do Conselho, esquecendo-se de que a competência daquele órgão está definida na Constituição e não lhe cabe, em hipótese alguma, exercer atividade disciplinar primária quanto aos magistrados estaduais de qualquer grau de jurisdição, em desrespeito ao princípio basilar da Federação, veio à imprensa para dizer, data venia, de forma inoportuna e generalizada que as decisões teriam deixado impunes "bandidos vestidos de toga" e só seria possível fiscalizar o Tribunal de Justiça de São Paulo quando "o sargento Garcia viesse a prender o Zorro". Lamentável e mais lamentável, ainda, pelo fato da Ministra ter jogado as infelizes frases para a Imprensa que, mal informada, ignorante da Constituição e gostando do escândalo aproveitou-se do episódio, para atacar, levianamente, o Supremo Tribunal Federal. Chegou-se ao despropósito de o "Estado de São Paulo" do dia 22 de dezembro atacar dois eminentes Ministros da Corte Suprema insinuando que teriam ambos recebido, indevidamente, uma indenização paga pelo Estado, quando Desembargadores do Tribunal de Justiça de São Paulo. Em total desconhecimento da Constituição, o articulista se esquece que conceder-se a um órgão administrativo e burocrático a possibilidade de exercer qualquer tipo de correição no Supremo e por via de conseqüência na atuação de seus Ministros é a negação absoluta do Estado de Direito e a coroação do absurdo.

Cabe a pergunta: de onde vazou tão despropositada e leviana invectiva?

Não é difícil descobrir, pois a burocracia, como já dito, não respeita limites. Atacar-se o Supremo Tribunal Federal e dois de seus ilustres Ministros representa algo impensável em uma verdadeira Democracia e capaz de corar um monge de pedra.

Acompanho há quarenta anos a carreira do excelso Ministro Cezar Peluso. Trata-se de um dos Juízes mais vocacionados da história da Magistratura brasileira. Poucos conseguiram ser, além de um fantástico Juiz, um dos magistrados de maior saber jurídico e senhor de uma formação humanística completa. Procurar-se atacar a pessoa do eminente Ministro Presidente Cezar Peluso é destruir a própria e verdadeira Magistratura e lançar às urtigas o respeito devido ao Chefe do Poder Judiciário da República.

Para finalizar, diante das infelizes frases pronunciadas diante da mídia pela atual Ministra Corregedora Nacional, como se a Magistratura fosse reduto de "bandidos vestidos de toga", cabe anotar para conhecimento de todos que no ano de 2007, o honrado Ministro Corregedor do CNJ Antonio de Pádua Ribeiro trouxe a público que dum universo de 14.500 Juízes em todo o território nacional, apena 20 (vinte) respondiam por corrupção. Assim o combate à corrupção se reduz a poucos e desgarrados juízes, ao contrário do estardalhaço feito pela Imprensa a partir das frases pronunciadas pela senhora Ministra.

Com 72 anos de idade e 50 deles dedicados, de forma exclusiva ao Direito e à Justiça, não poderia calar-me diante de tanto absurdo. A omissão não cabe na alma de quem se acostumou a ser justo em sua vida pessoal e profissional. A injustiça destrói qualquer sentimento de quem sempre amou e ama a verdadeira Magistratura.

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1 FRANCISCO DE PAULA SENA REBOUÇAS in "Rev. dos Tribs.", vol. 826/70.

2 Idem, p. 71.

3 MS 28.611-MG.

4 Jornal "O Estado de São Paulo", edição de 7.12.2006, p. A-4. A reportagem informa a interferência indevida do Conselho em assuntos da competência do Tribunal Superior Eleitoral, levando o Ministro Marco Aurélio a entender que esse procedimento afronta a Constituição, que garante a autonomia administrativa e financeira do Judiciário, "carecendo o Conselho de competência para atuar em substituição aos presidentes de tribunais superiores".

5 Despacho concessivo de liminar no Mandado de Segurança n. 29.065, datado de 28.4.2011.

6 Em referida decisão, Sua Excelência de forma objetiva e clara, depois de anotar o autogoverno da Magistratura como "garantia constitucional de caráter objetivo", expressa o "exercício prioritário, pelos Tribunais em geral, do poder disciplinar quando aos seus membros e aos juízes a eles vinculados". Assim, a "tensão dialética entre a pretensão de autonomia dos Tribunais, e o poder do Conselho Nacional de Justiça", resolve-se com a "incidência do princípio da subsidiariedade como requisito legitimador do exercício, pelo Conselho Nacional de Justiça, de uma competência complementar em matéria constitucional, disciplinar e administrativa", com o papel relevante, "porque harmonizados de prerrogativas antagônicas". Em suma, a competência disciplinar e o poder de controle e fiscalização do Conselho Nacional de Justiça pressupõem, para legitimar-se, a ocorrência de situações anômalas e excepcionais, registradas no âmbito dos Tribunais em geral (MS n. 28.784-MC/DF).

7 Antes da promulgação da EC n. 45/2004 e diante da Reforma do Poder Judiciário pretendida em 1999 endossando a criação do Conselho Nacional de Justiça, com absoluta razão, o eminente desembargador SENA REBOUÇAS alertava que "o nosso Direito Constitucional esteja retroagindo três séculos, permitindo substituir a independência do Judiciário (art. 2º da Constituição Federal) pelo seu controle" – na atualidade por um órgão administrativo e burocrático. Trata-se de "um ilogismo atroz, além de clara inconstitucionalidade, que os juízes estaduais fiquem subordinados a um Conselho Nacional desintegrador da Federação e, portanto, diluidor do Poder Judiciário dos Estados" (ob. cit., pg. 304).

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*Ovídio Rocha Barros Sandoval é advogado do escritório Advocacia Rocha Barros Sandoval & Costa, Ronaldo Marzagão e Abrahão Issa Neto Advogados Associados

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