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O projeto do Código Comercial

O advogado acha desnecessária a criação de um Código Comercial. Ademais, questiona a legitimidade de um único autor para o projeto, sugerindo, em contrapartida, que fosse constituída uma comissão de juristas para discutir o aprimoramento da legislação empresarial.

13/12/2011

Erasmo Valladão Azevedo e Novaes França

O projeto do Código Comercial

Conforme já noticiou este prestigioso jornal eletrônico, acha-se em tramitação um projeto de novo Código Comercial. Segundo consta, o seu autor é colega de turma do Ministro da Justiça, que teria declarado, no Congresso Nacional, que faria de tudo para aprová-lo no próximo ano.

O procedimento de consulta pública sobre o projeto iniciou-se no dia 2 p.p., no auditório da Associação dos Advogados de São Paulo – entidade da qual tenho o orgulho de ter sido conselheiro por mais de dez anos e que não costuma se omitir no debate das grandes questões jurídicas nacionais.

Naquele dia, tive a oportunidade de declarar, perante o autor do projeto, minha total contrariedade à ideia de um novo Código Comercial, bem como ao conteúdo do projeto que, com a devida vênia, é de péssima qualidade.

A ideia de código, em primeiro lugar, é algo deslocado no tempo. Só se justificaria para exprimir um conjunto de regras jurídicas gerais, o que o projeto em questão não faz. Pelo contrário, é de uma exuberante prolixidade, contendo 670 artigos, afora incisos e parágrafos, e pretende regular matérias as mais díspares, tais como o empresário e as sociedades empresárias, o estabelecimento, as obrigações e contratos empresariais, os títulos de crédito (entre os quais os "títulos armazeneiros"), a recuperação judicial, extrajudicial e a falência, o agronegócio, o "processo empresarial", etc., propondo ainda alterações nos Códigos Civil (clique aqui) e Penal (clique aqui).

Deixa de lado, porém, matérias importantíssimas: cheque, cédulas de crédito industrial, investimentos coletivos, como são os fundos de investimento, em todas as suas modalidades, só disciplinados em regulamentos da CVM, seguros, contratos derivativos, etc. E as deixa de lado porque, naturalmente, é inviável a ideia de um código oni-abrangente.

Pretende, contudo, ser um código "principiológico". Leiam-se os princípios dispostos nos seus artigos 4º, 5º, 6º e 7º: estão todos na Constituição Federal (clique aqui) (que já é também exuberantemente prolixa), não havendo necessidade de repeti-los em uma lei. Os demais "princípios" são também totalmente desnecessários ou equivocados (leia-se, para se ter gritante exemplo, aquele constante do art. 113, inciso III).

No tocante ao direito societário, pretendeu regular as sociedades empresárias, entre as quais as sociedades anônimas (art. 144, parágrafo único: "No que não for regulado neste Código, sujeita-se a sociedade anônima a lei especial"!), mexendo com o diploma legislativo porventura mais esplêndido que se produziu na segunda metade do século passado em nosso país. Leiam-se os arts. 144 a 149, 151 a 154, 158, 159 e 161 do projeto: são absolutamente inúteis, pois já constam da Lei de S/A (clique aqui).

Relativamente aos temas realmente importantes – e da ordem do dia – das sociedades anônimas (conflito de interesse: formal ou substancial?; o sistema de invalidades), o projeto é totalmente omisso.

Segundo se prometeu no debate mencionado de início, esta parte do projeto, concernente às sociedades anônimas, será extirpada, mas é evidente que a tal "principiologia" do projetado Código afetará a lei 6.404/76. No que diz respeito às sociedades limitadas, o projeto não inova em absolutamente nada o sistema do Código Civil.

Tem-se criticado – e eu mesmo fui um desses críticos – a sistemática do Código, sobretudo no tocante aos quóruns elevados para aprovação de diversas matérias. Deve-se lembrar, contudo, que é tradição nacional o desrespeito aos direitos da minoria.

O Brasil é o único país do mundo a conter uma previsão de dividendo obrigatório mínimo. E isso não bastou para a proteção da minoria: foi necessário acrescentar ainda o § 6º ao art. 202 da LSA a fim de que os lucros não destinados a reservas sejam obrigatoriamente distribuídos como dividendos. Com quóruns elevados, há efetiva proteção à minoria: quem não detém ¾ do capital social – o que, obviamente, implica um maior custo – é forçado a dialogar com a minoria. Mas, se o problema é este, mudem-se os quóruns.

Não é necessário um novo Código Comercial. No que diz com o direito das obrigações, sua unificação segue a sábia lição do nosso grande Teixeira de Freitas que, décadas antes de Vivante, em 20/9/1867, a propôs ao Governo Imperial. Muitos outros equívocos do projeto poderiam ainda ser apontados, mas o reduzido espaço deste artigo é insuficiente para tanto.

O signatário finaliza com a questão central: qual é a legitimidade de um autor só, por mais ilustre que possa ser, para pretender elaborar, isoladamente, um projeto de Código Comercial? Só na ditadura se viu isso. O extraordinário jurista que foi o Prof. Miguel Reale não se sentiu capaz – embora o fosse, dada a incontestada vastidão e profundidade do seu saber – de elaborar sozinho um projeto de Código Civil. Elegeu uma comissão de altíssimo nível - Moreira Alves, Agostinho Alvim, Sylvio Marcondes, Clóvis do Couto e Silva, Ebert Chamoun e Torquato Castro – para fazê-lo, tendo apenas supervisionado os trabalhos. Essa exemplar lição de humildade, própria dos verdadeiros sábios, poderia aqui bem ser aproveitada – se o fizesse, o autor do projeto apenas iria se engrandecer.

Melhor fariam o Ministro da Justiça e o deputado Vicente Cândido, até mesmo em obséquio a um desejável processo democrático de elaboração das leis se, ao invés de darem prosseguimento ao projeto tal como hoje se apresenta, com sérias deficiências que não poderão ser sanadas no curso do processo legislativo, retirassem-no de pauta e constituíssem uma comissão de juristas, congregando os nossos melhores comercialistas (entre os quais o signatário deste artigo, evidentemente, não se inclui), para discutir e, se for o caso, preparar um consistente anteprojeto de lei de aprimoramento da nossa legislação empresarial – o que muito mais facilmente poderá ser obtido através da revisão das leis empresariais em geral, notadamente do Livro II do Código Civil.

Esse desiderato, segundo nos parece, não pressupõe um novo Código Comercial, o qual não tinha sido reclamado por ninguém até agora, e seguramente não será alcançado pelo projeto que ora tramita no Congresso Nacional.

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*Erasmo Valladão Azevedo e Novaes França é advogado e Professor Doutor de Direito Comercial da Faculdade de Direito da USP.

 

 

 





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