Sonegação fiscal: caso de polícia?
“Está na hora de declarar o Imposto de Renda.
Vai começar o jogo de esconde-esconde.”
Millôr Fernandes
Victor Hugo Rodrigues Alves Ferreira*
A sonegação fiscal atingiu níveis endêmicos no Brasil. A banalização da prática sonegatória é hoje um fato que se vê nas ruas e no noticiário. O problema é nocivo, menos por diminuir a arrecadação do governo do que por fazer imperar a injustiça generalizada no mercado, uma vez que o empresário que sonega tem custos menores e, em razão disso, torna-se mais competitivo que seu concorrente, incentivando que este adote a mesma prática, muitas vezes por questão de sobrevivência, gerando um círculo vicioso na economia.
É certo que um dos fatores que contribuem para o aumento do problema é a progressiva elevação de nossa carga tributária, fazendo com que a sonegação fiscal atinja as raias da desobediência civil. No entanto, seria ingenuidade afirmar que a simples diminuição das alíquotas dos tributos seria suficiente para reduzir a sonegação a níveis civilizados, até porque já experimentamos períodos em que o Fisco era menos voraz e, ainda assim, os ilícitos tributários eram freqüentes.
É certo também que, quanto mais se eleva a alíquota de um tributo de natureza declaratória – Imposto de Renda, ICMS, IPI, Cofins – menor é a relação entre esta elevação e o aumento de arrecadação, uma vez que, com o aumento da alíquota, muitas empresas são levadas à inadimplência e à prática de ilícitos fiscais, quando não são simplesmente empurradas à informalidade. Em qualquer hipótese frustra-se a expectativa de geração de receita, em razão da diminuição da base de arrecadação. As empresas que não sucumbem aos aumentos de alíquotas repassam seus custos aos preços de seus produtos e serviços, gerando inflação, que é controlada pelo governo com o aumento dos juros, elevando ainda mais nossa já altíssima dívida pública.
E estamos aqui, portanto, diante de um novo círculo vicioso, uma vez que o aumento da carga tributária aumenta a informalidade na economia; o aumento da informalidade diminui a base de arrecadação do governo; este tem de aumentar as alíquotas dos tributos para compensar a perda na base de arrecadação. Quem já conhece este filme sabe que o mocinho morrerá no final.
O combate aos ilícitos fiscais no Brasil custa muito caro aos cofres públicos. No atual sistema tributário, a atividade exatória envolve, no mínimo, quatro esferas de burocracia: a federal, a estadual, a municipal e a previdenciária, isso sem contar a do contribuinte. Como o sistema é confuso, com uma infinidade de normas1, há margem para questionamentos jurídicos de todo tipo por parte do contribuinte e, por isso, na cobrança do tributo, freqüentemente é necessário envolver também o Poder Judiciário (nas esferas estadual e federal) e as procuradorias (federais, estaduais e municipais), quando não o Ministério Público Federal e dos Estados e as Polícias Civis e Federal.
Para o contribuinte, na maioria das vezes, é mais vantajoso gastar dinheiro com advogados do que com o pagamento de sua dívida à vista. As ações judiciais muitas vezes têm por finalidade apenas protrair no tempo uma demanda que se sabe desde o início que será derrotada no mérito, uma vez que as leis processuais brasileiras, com sua infinidade de recursos, e o Poder Judiciário, com sua falta de tradição na punição de litigantes de má-fé, fazem com que o custo de rolagem da dívida na justiça compense, em razão dos baixos índices de correção que serão aplicados ao final da ação. Assim, atraído pela possibilidade de utilizar o valor da dívida como capital de giro de baixo custo (ou mesmo pela aplicação deste valor no mercado financeiro), o devedor ingressa na Justiça apenas para “ganhar um tempo”, arrastando o processo o máximo que puder.
Para se ter idéia do custo envolvido nas demandas judiciais geradas por essa sistemática, estima-se que mais da metade das ações que tramitam na Justiça Federal diga respeito a matéria tributária. Como o orçamento da Justiça Federal para 2005 é de R$ 3.714.600.000,00, mais de 1,8 bilhão de reais estão comprometidos com o julgamento desses processos. Some-se a isso que também está empenhada na cobrança de passivos tributários na Justiça Federal a Procuradoria da Fazenda Nacional. E, por fim, que muitos dos processos envolvem crimes fiscais, implicando também participação da Polícia Federal e do Ministério Público Federal. Tudo sem contar a Justiça Comum que, embora não tenha um percentual tão elevado de ações envolvendo matéria tributária, tem uma estrutura muito maior e mais dispendiosa que a primeira, e a ela se somarão os custos das procuradorias das fazendas municipais e estaduais, as polícias civis e o Ministério Público dos Estados. Todo esse custo é insuportável para um país com tanta miséria como o Brasil.
Pelo que vimos até agora, é certo que a solução do problema da sonegação fiscal em nosso país passa longe dos órgãos diretamente envolvidos com seu combate: Receita, Polícia e Ministério Público. O governo deve despender sua energia na racionalização do sistema tributário, e não na repressão dos ilícitos fiscais gerados precisamente por falhas crônicas deste sistema.
O ponto fundamental da questão é que o grosso de nossa arrecadação se assenta em tributos de natureza declaratória, em que o contribuinte calcula o quanto deve por conta própria e declara esse valor ao Fisco, que homologa a declaração. Nem é preciso dizer da impossibilidade de conferir todas as informações que chegam à Fazenda Pública e do impulso natural do contribuinte em declarar sua renda e suas vendas a menor.
Os impostos declaratórios são injustos por natureza, uma vez que são altamente sonegáveis, já que o cálculo do montante devido fica a cargo do contribuinte. E todo imposto sonegável é iníquo, na medida que permite que alguns deixem de pagá-lo através dos mais diversos ardis. O atual modelo deve ser radicalmente reformulado, dando-se prioridade aos tributos modernos, que privilegiam a arrecadação automática, feita através de processos eletrônicos, como, por exemplo, a CPMF, que é praticamente insonegável.
Há propostas de reforma neste sentido. Uma delas é a de Luiz Roberto Ponte, ex-deputado federal, que propôs um novo sistema, que se assentaria basicamente em dois grandes tributos: o ITF (imposto sobre transações financeiras), instituído nos moldes da atual CPMF, mas com a arrecadação desvinculada, e o IGP (imposto sobre grandes produtos), monofásico, que seria cobrado na fonte, incidindo sobre energia elétrica, combustíveis, veículos, telecomunicações, tabaco e bebida. O primeiro imposto é praticamente insonegável, pois é cobrado automaticamente por software bancário; o segundo é de sonegação dificílima, uma vez que é calculado por equipamentos eletrônicos de vazão ou produção, a serem instalados nas fábricas de cigarros e bebidas, refinarias, centrais elétricas e telefônicas e montadoras de veículos.
Na proposta seriam mantidos os impostos de natureza extrafiscal, tais como os incidentes sobre o comércio exterior, para dotar o governo de instrumentos que lhe permitam controlar a balança comercial, e os que incidem sobre a propriedade imobiliária, que possibilitam ao governo desestimular a especulação no ramo. Substituir-se-ia o ITR e o IPTU pelo IP federal (imposto sobre a propriedade imobiliária). Permaneceriam também o Imposto de renda (em caráter supletivo) e a contribuição social dos segurados da Previdência Social (que poderia ser implementada nos moldes da experiência chilena, com contas individuais de contribuição). Proposta semelhante foi apresentada pelo deputado federal Luiz Carlos Hauly (PSDB-PR), acrescentando ao rol do IGP eletroeletrônicos, eletrodomésticos, saneamento, pneus, autopeças e armas de fogo.
Ambas os projetos apresentam várias vantagens em relação ao modelo atual, pois os novos tributos tornam a sonegação extremamente difícil, redundando:
a) na ampliação da base de arrecadação, alcançando os sonegadores e a economia informal e repartindo também entre estes a carga tributária, o que permitira sua redução (estudos da empresa McKinsey & Company apontam que a taxa brasileira de informalidade na economia é uma das maiores do mundo, girando em torno de 40%);
b) na eliminação da vantagem que têm os empresários sonegadores em relação aos que pagam seus tributos, uma vez que os primeiros têm menos despesas e maior possibilidade de lucro do que os demais;
c) na diminuição dos custos das empresas com a burocracia interna e com contratação de consultoria nas áreas jurídica e contábil3, o que contribuiria para tornar o produto brasileiro mais competitivo no mercado externo, permitindo que o empresário desloque seus esforços da atividade-meio para a atividade-fim, e possibilitando que o valor economizado seja reinvestido na produção, com a conseqüente geração de empregos;
d) na liberação de auditores-fiscais para outras áreas de atuação, tais como a fiscalização de portos e aeroportos;
e) na concentração dos esforços de fiscalização em menos contribuintes, com conseqüente aumento na eficácia da fiscalização;
f) na diminuição de gastos do governo com a atividade exatória, diminuindo a depreciação do valor do tributo que há no iter que vai entre sua cobrança e a efetiva aplicação dos recursos;
g) na diminuição da corrupção dos agentes públicos que atuam na área de fiscalização;
h) na redução das demandas judiciais de contribuintes que contestam a cobrança de tributos aproveitando-se da complexidade do modelo atual, que gera margem a discussões sobre minúcias contábeis e interpretações normativas;
i) na atenuação do tráfico de influência e da corrupção na intermediação dos repasses, uma vez que, no novo modelo, os agentes coletores repassariam a receita diretamente à União, aos Estados e aos Municípios, o que novamente diminuirá a depreciação do valor do tributo entre a arrecadação e o gasto;
j) na desoneração da folha de pagamento das empresas, fomentando a geração de empregos com carteira assinada;
k) na eliminação das quatro esferas sobrepostas de burocracia fiscal existentes no atual modelo, gerando novamente economia aos cofres públicos e simplificação das leis tributárias;
O último ponto merece uma observação. Percebe-se que, com a implementação das mudanças, haverá concentração da atividade arrecadatória nas mãos do governo federal. Dirão alguns que isso violaria o princípio federativo, pois se estaria centralizando na União as atribuições dos Estados e dos Municípios. Entretanto, a afirmação é incorreta na medida em que estes terão disponibilidade direta e imediata de seu percentual nas receitas, que lhes será repassado diretamente pelos agentes coletores, na proporção estabelecida por lei, e – o mais importante – continuarão votando seu orçamento e definindo suas prioridades de gastos e investimentos. Além disso, permanecerão livres para instituir taxas de serviços que prestarem e pedágios em suas rodovias. Se crermos que a autonomia de um ente federativo está assentada na manutenção de uma burocracia independente e sobreposta de arrecadação, devemos admitir também que os poderes Legislativo e Judiciário não têm autonomia em relação ao Executivo, uma vez que aqueles não mantêm máquinas independentes de recolhimento de tributos, mas recebem recursos que são arrecadados pela União e pelos Estados. Haverá também mais eficiência com a concentração. Estima-se, por exemplo, que atualmente cerca de metade dos 6.000 municípios existentes no país não cobrem o ISS em razão do alto custo de arrecadação.
É mais vantajoso buscar soluções para evitar a sonegação do que procurar fazer justiça social na cobrança do tributo. Vão no segundo caminho as várias propostas de criação de mais uma faixa da alíquota de imposto de renda, superior aos atuais 27,5%. Jamais se deve ter em mente a realização da justiça social através do imposto de renda, uma vez que ele é intrinsecamente injusto só pelo fato de ser facilmente sonegável. A melhor distribuição de renda se faz não na atividade exatória, mas pela destinação dos recursos arrecadados, que deve sempre ser pautada pelo atendimento às necessidades básicas da população pobre.
O combate à sonegação em nosso país só terá êxito se nosso sistema tributário passar por uma ampla reforma ou, para quem prefira o termo, por uma verdadeira revolução. As fazendas, as polícias, as procuradorias, a Justiça e o Ministério Público permanecerão impotentes frente ao problema enquanto perdurar a atual sistemática. E essa reforma passa longe de soluções ortodoxas como a proposta do IVA – Imposto Sobre Valor Agregado, que pretende unir em um único imposto federal o PIS/Cofins, o IPI, o ICMS e o ISS. Isso porque a única vantagem do IVA sobre o atual modelo é que ele aglutina numa só burocracia as várias esferas de arrecadação existentes. Nenhuma das demais vantagens da proposta do ex-deputado Luiz Roberto Ponte que foram expostas acima é alcançada com o IVA, uma vez que este tem a mesmíssima natureza declaratória dos tributos que pretende aglutinar, o que levou o falecido economista Roberto Campos a afirmar que o projeto introduz aperfeiçoamentos numa carroça em plena era do avião a jato, fabricando uma bela carruagem.
Por fim, como é impossível agradar a todos com tão radical reforma de um sistema já consagrado, resta-nos saber quem perderá com a mudança. O governo não será, pois conseguirá ampliar a base de arrecadação, mantendo a estimativa de receitas a um custo menor; o empresário também não, pois será duplamente beneficiado: com a eliminação da concorrência desleal de sonegadores contumazes e com a redução do custo burocrático com contadores e advogados tributaristas; quanto aos sonegadores, só sairão perdendo aqueles que deliberadamente fraudam o fisco visando lucro fácil, uma vez que grande parte daqueles que são equivocadamente chamados de “sonegadores” são, na verdade, empresários inadimplentes e que se encontram na informalidade, levados a tal situação pela atual sistemática de arrecadação e pela concorrência desleal dos sonegadores strictu sensu.
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1Para se ter uma idéia, um estudo do Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário apontou que, nos 16 anos de vigência da Constituição Federal, foram editadas 216.795 regras tributárias nos três níveis de governo.
2O prof. Marcos Cintra, doutor em Economia por Harvard e vice-presidente da Fundação Getúlio Vargas, cita tese apresentada na FEA-USP por Aldo Bertolucci, onde se estima que a burocracia que gera o sistema tributário nacional (controles, planejamento tributário, contencioso fiscal etc.) custe às empresas em torno de 5,3.
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*Delegado de Polícia Federal e da Delegacia de Repressão a Crimes Financeiros em São Paulo
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